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quinta-feira, 21 de junho de 2018

"Em Portugal há líderes islâmicos a recomendar a mutilação genital feminina"

O assunto "ainda é tabu" em Portugal, mas o projeto com a Guiné-Bissau serve para os dois países erradicarem a excisão. A presidente do CNAPN diz que a chave está nos líderes das mesquitas e pede mais apoio do Alto Comissariado para as Migrações.

Catarina Marques Rodrigues, Pedro A. Pina (imagem) - RTP21 Jun, 2018, 08:09 / atualizado em 21 Jun, 2018, 08:10 | País

Ela versus tradições de séculos. É uma batalha difícil, mas Fatumata tem conquistado algumas vitórias. A presidente do Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas, Saúde da Mulher e Criança (CNAPN) da Guiné-Bissau dedica-se a tentar destruir práticas e rituais como o casamento infantil, os casamentos forçados e a Mutilação Genital Feminina. Tudo práticas que atentam contra as mulheres "pelo simples facto de elas serem mulheres". Uma das raízes está, pois, na desigualdade de género, garante: "Só elas é que são submetidas aos casamentos infantis, só as mulheres é que são dadas em casamento forçado, às vezes não conhecendo os maridos nem gostando deles. A violência doméstica, a violência sexual, os sistemas tradicionais de herança. São sempre as mulheres as vítimas".

A mutilação genital feminina (MGF) é uma das práticas mais violentas. Consiste no corte parcial ou total dos órgãos genitais externos da mulher, como o clitóris e/ou os lábios vaginais, a sangue frio, com uma navalha, uma lâmina ou com um pedaço de vidro. O nome mais comum é "fanado", ato executado pelas "fanatecas", mulheres imcumbidas de excisar as meninas e raparigas. De 2010 a 2014 houve uma diminuição do número de mulheres submetidas à prática na Guiné-Bissau na ordem dos 5%, mas ainda há 44,9% das mulheres guineenses entre os 15 e os 49 anos que são vítimas de MGF.

A prática também acontece em Portugal e há líderes de mesquitas a defender que a excisão é uma "recomendação islâmica", inscrita no Corão, em nome da "pureza" das raparigas. São revelações de Fatumata Djau Baldé à RTP. A responsável do CNAPN esteve em Portugal no âmbito do projeto que liga os dois países e que, em Portugal, é implementado pela P&D Factor - Associação para a Cooperação sobre População e Desenvolvimento. Há também uma campanha nos aeroportos portugueses para evitar que as meninas sejam levadas nas férias aos países de origem para serem excisadas.

Fatumata foi submetida à MGF em criança e, em adulta, transformou a sua história em força para mudar o destino das mulheres no seu país. A mulher que já foi secretária de Estado da Solidariedade Social e do Emprego e ministra dos Negócios Estrangeiros não tem vergonha de andar de porta a porta, de reunir com os mais altos representantes políticos nem tem medo de partilhar os seus objetivos: quer ser a primeira mulher primeira-ministra ou presidente da República da Guiné-Bissau.

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Em 2011 a Mutilação Genital Feminina passou a ser crime na Guiné-Bissau. Ainda assim, segundo um estudo divulgado este ano pela Liga Guineense dos Direitos Humanos, 44,9% das mulheres guineenses são vítimas de MGF, das quais 29,6% são meninas com menos de 14 anos. As coisas mudaram com a lei ou a lei foi uma operação de charme do Governo?

A Guiné-Bissau não tem problema de leis. Temos muitas leis e até fazemos parte de várias convenções regionais e internacionais. Temos é um problema de implementação dessas leis. A lei que criminaliza a MGF está a ser aplicada mas precisamos de mais tribunais na Guiné-Bissau. Nos sítios em que há tribunais, se o crime for cometido, as pessoas são julgadas. Já tivemos casos de pessoas que foram a tribunal, que tiveram sentenças e que foram presas. Hoje toda a gente na Guiné-Bissau sabe que a MGF é proibida e, por isso, quem descobrir que a sobrinha, a filha ou a neta foi submetida à prática, pode entrar em contacto com o CNAPN, com a Polícia Judiciária ou com a Polícia de Ordem Pública. A polícia vai ter com aquela família e a criança é levada ao hospital para ser observada. Se os médicos confirmarem, os pais são levados.

E incorrem numa pena de entre 1 e 5 anos de prisão.

Os pais, sim. A fanateca (mulher que fez a excisão) incorre numa pena de entre um a oito anos. Se a criança morrer, a pena é de um a dez anos. A decisão é do juíz e o parecer médico é tido em conta. Ninguém é condenado a menos de um ano de prisão. O máximo que vimos a ser aplicado foi uma pena de 3 anos.

Há casos de fanatecas que tenham deixado de o ser?
Muitas...
Pessoas com 40 anos, 50 anos...
Ui, com 70 anos... As fanatecas tradicionais são mulheres adultas que já estão na menopausa. Algumas fanatecas vivem daquele trabalho, então é preciso dar-lhes algum apoio financeiro para poderem abandonar a prática.


Como é que se muda a mentalidade de uma pessoa com uma idade tão avançada?
Tem a ver com a forma como falamos com a pessoa. É preciso escolher bem quem é que vai conversar com ela.

Marcha do Dia da Mulher, a 8 de março, na Guiné-Bissau

O trabalho do CNAPN é informar, sensibilizar e educar para o abandono da prática. Como é que isto se faz?


No início fizemos muito trabalho porta a porta, uma a uma. Passa sempre por mostrar os perigos que a MGF tem para a saúde. Vamos às comunidades praticantes da MGF, vamos ter com as fanatecas e mostramos-lhes fotografias para elas verem as consequências físicas da prática. Antes de apresentarmos as imagens avisamos logo: 'O que vamos ver é o nosso corpo, tal como ele está'. É o que é. Há quem queira muito ver mas depois fecha logo os olhos quando as imagens começam, porque não aguentam. Muitas das fanatecas ficam surpreendidas, porque não têm noção de como é que a rapariga fica.

Os dirigentes do CNAPN são pessoas originárias das comunidades praticantes de mutilação genital feminina. São islamizados e sabem como chegar às fanatecas. Essa proximidade ajuda muito. Eu, por exemplo, que sou submetida à prática, quando chego à frente de uma mulher que faz a prática, eu sei como cumprimentá-la, sei como falar com ela. Há uma música que elas dançam e eu sei que, se eu chegar lá, tenho de me ajoelhar primeiro para pedir autorização para entrar. Elas dão um sinal e só depois é que eu me posso misturar com elas. Mas quem não conhece aquele rito de dança, chega e entra.

A diminuição dos números deixa-a orgulhosa?

Eu vou orgulhar-me quando a prática acabar. Mas sim, segundo o inquérito oficial, em 2014, 29,6 por cento as crianças entre os zero e os 14 anos tinham sido submetidas à prática, enquanto quatro anos antes eram 39 por cento. Acredito que em 2018 ainda temos menos. Temos sempre de nos focar nos números das crianças, porque as mulheres, uma vez submetidas à prática, ficam sempre submetidas à prática.

O trabalho de prevenção é em crianças que vão nascer agora. É fundamental investir na camada juvenil, na escola, fazer com que os professores introduzam esse tema no currículo escolar, falar desses aspetos aos jovens que serão homens de amanhã. Em 2010, 36 por cento de mulheres das comunidades praticantes ainda queriam que a prática continuasse. Em 2014, só 13 por cento dessas mulheres é que queriam que a prática continuasse. Isso já demonstra o impacto da mudança de mentalidades. O que não significa que a prática tenha diminuido só por isso, porque a mulher não toma a decisão sozinha.


Quem é que tem mais responsabilidade? A mulher ou o homem?

Continua a ser o homem, porque é ele que manda. Ele é o chefe da família e a mulher faz o que ele disser. Se ele disser "não", é "não", mas se a mulher for autónoma também pode decidir por ela. Se bem que é difícil definir onde está a autonomia, porque temos exemplos de mulheres que até são escolarizadas, estão a trabalhar, mas ainda dependem muito da decisão do marido. A minha mãe submeteu-me à prática, mas eu não submeti as minhas filhas. Sou escolarizada, tive oportunidade de decidir por mim mesma e também tenho um marido com quem me entendo muito bem.

Portugal tem uma comunidade de imigrantes guineenses. Quando as comunidades praticantes imigram, levam consigo as tradições e os rituais.

Sim. Apesar de estarem a viver num país europeu, muitas mulheres destas comunidades comportam-se como se estivessem nos países de origem. Elas foram educadas para passarem aquelas práticas de séculos à geração seguinte. Quando lhes dizemos que a MGF tem de parar elas ficam: "Então e agora como é que fazemos? Temos a responsabilidade de passar tudo o que é dos nossos antepassados para os nossos filhos. As nossas mães passaram-nos aquela tradição, nós também temos obrigação de passá-la para os nossos filhos". Ainda mais nesta prática, em que são as mulheres as responsáveis por preparar as suas filhas, as suas sobrinhas, as suas netas, para serem aceites dentro das suas comunidades.

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O que é que esteve a fazer em Portugal?

Fizemos intervenções no terreno com as comunidades guineenses cá em Portugal. Em Odivelas ouvimos homens a dizer que a prática acontece aqui. Não sabemos exatamente onde, mas se dizem que acontece é porque acontece. Também reunimos com vários organismos que são parte do projeto, como a secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, a Comissão para a Igualdade de Género, as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, a Assembleia da República e o Alto Comissariado para as Migrações (ACM). Precisamos que o ACM trabalhe connosco, junto dos imigrantes africanos.

Quais as principais dificuldades que encontraram em Portugal?

Muitas pesssoas não querem falar. Quando estivemos em Odivelas não havia nenhuma mulher no nosso encontro. São os homens que dão autorização às mulheres para poderem comparecer nos encontros, então elas não aparecem. Na Guiné é igual: quando vamos intervir num terreno novo, primeiro temos de ir ter com os homens, porque se eles não autorizarem, elas simplesmente não aparecem. Na Guiné já falamos abertamente sobre a excisão, mas aqui ainda é tabu. Em Portugal estamos a ter dificuldade em ter pessoas a falar sobre o assunto, por isso é que queremos mais envolvimento sobretudo do ACM para trabalharmos com as lideranças islâmicas.

Entre 2014 e 2017, foram detetados em Portugal 237 casos de mutilação genital feminina

Porque os líderes islâmicos têm poder sobre os muçulmanos e ainda se diz que a prática é recomendada no Corão.

Em Portugal encontrámos líderes islâmicos de alguns locais de culto (como mesquitas) a dizer que a mutilação genital feminina é uma recomendação do Islão. Isto acontece. Por isso é que temos de começar pelas lideranças islâmicas e, através delas, chegar às mulheres. Poder-se-á, à semelhança do que está a acontecer na Guiné, introduzir estes temas nos conselhos que os líderes dão à sexta-feira antes da reza desse dia. Há conselhos que os imãs passam, por exemplo sobre a importância da vacinação, de ir à consulta pré-natal, de se cuidar da higiene pessoal, e nesse pacote o tema da MGF já é introduzido. É o que também queremos que se faça cá, com as lideranças islâmicas cá.

Na Guiné-Bissau conseguimos juntar mais de 200 líderes islâmicos da Guiné Bissau a dizerem "não" à prática. Aqueles líderes são pessoas que toda a gente conhece, que têm o domínio do Corão, são grandes conhecedores da sabedoria islâmica. Apresentarem-se publicamente contra a MGF foi muito forte. Permitiu desmistificar aquela ligação que se fazia entre a prática e o Islão. Mas, claro, há alguns que continuam a dizer que é recomendação islâmica porque toda a vida ouviram isso e hoje sentem-se constrangidos a voltar atrás. Alguns nem sabem ler. A geração nova, que tem mais domínio do Al Corão, que sabe ler e interpretar árabe, já está a trazer uma nova visão.

Fatumata Djau Baldé com Alice Frade (P&D Factor) à sua esquerda, num encontro com o Sheikh David Munir (Imam da Mesquita Central de Lisboa)

Às vezes é cansativo tantas reuniões, tanta conversa, que depois nem sempre resulta em mudança efetiva?
Às vezes sim. É preciso estar-se preparada. É o que escolhemos fazer. Temos de bater, bater, até perfurar. Só o facto de conseguir abertura para falar, eu já considero uma vitória. Hoje já falei com duas pessoas, amanhã peço a essas duas pessoas: 'Cada um de vocês pode trazer mais duas pessoas?' Então eles trazem mais duas pessoas e já somos seis. Peço àqueles seis: 'Cada um pode trazer mais duas pessoas?' Então já passámos de seis para doze. E assim, a pouco e pouco, vamos lá chegar.

Acha que foi esse perfil que a faz chegar a secretária de Estado e a ministra?

Não sei (sorri). Eu comecei muito cedo a trabalhar, tornei-me militante do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde muito cedo, sempre me envolvi em causas sociais. Ajudei a fundar o Sindicato dos Professores, era muitas vezes porta-voz nos dias das greves e nas negociações com o patronato e depois comecei a aparecer mais publicamente quando me tornei membro da Liga Guineense pelos Direitos Humanos. Trabalhámos muito a igualdade de homens e mulheres, organizámos marchas. Depois fui a primeira presidente do Instituto da Mulher e da Criança e depois fui nomeada secretária de Estado. Se me tivessem perguntado, eu tinha preferido ficar no Instituto da Mulher e da Criança porque estava mais próxima das pessoas, mas aconteceu assim. Fui subindo e cheguei a ministra.

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Havia muitas mulheres quando começou?

Não havia muitas, mas hoje já somos mais. Mesmo nas comunidades mais longíquas, hoje encontra-se muitas mulheres ativistas. Temos que lutar para conquistar. Se ficarmos caladas os homens não nos vão libertar. Por exemplo, já houve várias mulheres ministras.

Mas há direitos básicos que a mulher não tem, como a questão da herança.
A mulher ainda não tem a terra. Ela trabalha a terra, mas a terra pertence sempre ao homem. Imaginemos: um casal compra uma terra em conjunto. Os dois contribuíram para comprar aquela terra mas, se a mulher morrer, a família da mulher não vai reclamar a terra. Parte-se sempre do princípio que a terra é do marido. Mas se é o marido que morre, a família do marido vem cobrar. Se a mulher não aceita que um dos irmãos ou um dos familiares do marido herde a terra, corre o risco de ser expulsa de casa com os filhos e tudo. Segundo a lei do sistema de herança, isto não é permitido. Mas, como disse, uma coisa é o que está na lei e outra é a prática do dia a dia. Muitas mulheres ainda não vêm que têm a lei do seu lado e acabam mesmo por abandonar a terra.

Qual é a sua maior ambição?

Ver a mulher independente, livre e autónoma. Vê-la ao lado do homem. Acredito que a mulher faz diferença quando tem poder, porque as mulheres não se preocupam só com elas mas preocupam-se com os outros também. Eu costumo dizer que eu não vivo por mim mesma, eu vivo por mim, pela minha família, pelos meus amigos. Temos de pôr os seres humanos à frente de tudo. Quero um dia ver uma mulher primeira-ministra na Guiné-Bissau, quero ver a mulher presidente da República. Se calhar eu poderei fazer parte de uma dessas mulheres no meu país. É o que mais almejo nesse momento.

“Cruel” ou “legal”? 10 respostas para entender a separação de famílias nos EUA

20 Junho 2018

Cátia Bruno

Testemunha no local revela ao Observador as condições das celas onde se colocam menores. Trump assinou ordem executiva para impedir separação, mas problema legal mantém-se. O que se passa afinal?

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“Próximos passos para as famílias.” É assim que se intitula o folheto que tem sido distribuído aos migrantes que atravessam a fronteira que separa o México dos Estados Unidos com os filhos — e que são apanhados pela Guarda Fronteiriça norte-americana. “O/a senhor/a foi acusado/a do crime de entrada ilegal nos Estados Unidos”, diz o papel, onde se explica que os menores de idade que acompanham o adulto serão colocados “num abrigo temporário ou recebidos por uma família de acolhimento” e que os organismos competentes poderão ajudar a “facilitar a reunião” entre pais e filhos.

O objetivo do folheto é apaziguar, mas para os pais muitas outras perguntas continuam sem resposta. Quando poderei voltar a ter a custódia do meu filho? Quais as condições do local onde o vão colocar? Posso pedir asilo juntamente com ele? Para estas perguntas, o Departamento de Segurança Interna não lhes dá ainda respostas.

É muita a desinformação relacionada com esta política de “tolerância zero” aplicada desde o início de maio pela Administração Trump. Certo é que, de acordo com números do próprio Departamento, 2342 crianças foram separadas dos pais na fronteira, entre 5 de maio e 9 de junho. Pelas redes sociais, multiplicam-se as fotografias de menores retidos em estruturas semelhantes a gaiolas ou jaulas. Há desde bebés de colo a adolescentes próximos da maioridade, todos colocados no mesmo espaço, alguns tapados com mantas de sobrevivência. Em algumas fotografias, um guarda observa-os.

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David Begnaud

@DavidBegnaud

These images were just released by border patrol @CBP showing the McAllen, Texas detention facility that we were allowed to tour today. For now, we can only rely on what they give us. They will not allow us inside to film on our own. Why? “Privacy”; they don’t want faces shown

23:41 - 17 de jun de 2018

Informações e privacidade no Twitter Ads

As críticas à Casa Branca têm-se multiplicado, agravadas pelos testemunhos emocionais como a carta de uma mãe desesperada e a gravação divulgada pela organização jornalística sem fins lucrativos ProPublica onde se ouve o choro de algumas crianças.

As Nações Unidas e representantes políticos dos maiores partidos norte-americanos pedem a Trump que ponha fim a esta situação. O Presidente e a sua equipa começaram por manter que estão apenas a cumprir a lei e que o Partido Democrata tem responsabilidades nesta matéria — mas, esta quarta-feira, Trump assinou uma ordem executiva que passa a prever a possibilidade de pais e filhos ficarem juntos nos centros de detenção. O problema? Essa solução já tinha sido tentada por Barack Obama e enfrentou problemas legais.

O que está afinal a acontecer na fronteira dos Estados Unidos? O Observador falou com Michael Bochenek, responsável pela divisão de Direitos Infantis da Human Rights Watch (HRW) — que está atualmente no terreno — e com dois analistas políticos para perceber o que se passa.

Por que razão estão as famílias a ser separadas?

Tudo se resume a uma expressão: política de “tolerância zero”. Isso mesmo foi confirmado pelo próprio procurador-geral dos EUA, Jeff Sessions: “Estamos a levar a cabo uma política de ‘tolerância zero’ relativamente às acusações na fronteira”, afirmou Sessions. “De acordo com as leis deste país, a entrada ilegal é um pequeno delito. Entrar de novo depois de se ter sido deportado é um crime de maior gravidade. Segundo a lei, temos de acusar as pessoas por estes crimes.”

Vamos por partes. Para começar, a lei prevê, de facto, estas infrações. No caso de ser a primeira vez que alguém é apanhado a cometer o delito de entrada irregular, a lei norte-americana trata este crime como uma infração menor e aplica um castigo civil e não penal: o pagamento de uma multa de “pelo menos 50 dólares e nunca mais de 250 dólares” ou, em alternativa, “pena de prisão que não ultrapasse os seis meses”. Isso significa que, os migrantes antes de serem enviados para tribunal, têm de ser colocados numa prisão federal — onde não podem ter os filhos consigo.

Até agora, as administrações anteriores optavam por não avançar com estas acusações, precisamente para não separar famílias. Em vez disso, os que eram apanhados a cruzar a fronteira aguardavam com os filhos em liberdade até à data em que teriam de ir a um tribunal de imigração. Aí, um juiz estabelecia se deveriam ser todos deportados em conjunto ou não.

Guarda fronteiriço vigia grupo de migrantes acabado de ser encontrado a atravessar ilegalmente a fronteira (John Moore/Getty Images)

Na base desta prática estava a interpretação das presidências anteriores das leis do Acordo Flores e do estatuto anti-tráfico. O primeiro foi assinado por Bill Clinton em 1997 e estabelece que os menores que cheguem aos Estados Unidos sem a companhia de um adulto devem ser entregues aos pais, a um guardião legal, a um familiar ou ficarem à guarda do Estado até serem entregues a um adulto. O segundo, assinado por George W. Bush em 2008, estabeleceu que os menores sozinhos não podem ficar num centro de detenção de imigrantes durante mais de 72 horas. Isto significa que, na prática, cada Governo americano está perante três hipóteses: deixar famílias inteiras em liberdade até irem a tribunal, alterar a lei para que os menores possam ser detidos juntamente com os pais ou separar as famílias.

Em 2014, a Casa Branca de Barack Obama decidiu tentar a segunda hipótese ao manter famílias com menores em centros de detenção especiais até serem presentes a tribunal — mas um juiz federal na Califórnia concluiu que tal violava a lei, já que os menores não podem ser mantidos em estabelecimentos semelhantes aos prisionais. Assim, e para impedir a separação de pais e filhos, Obama decidiu manter tudo como estava.

Durante os primeiros 15 meses da presidência Trump, e apesar do desagrado de muitos apoiantes do Presidente, este modus operandi de “apanhar e libertar” migrantes até serem presentes a tribunal manteve-se. Ao todo, segundo o Washington Post, 100 mil pessoas apanhadas na fronteira foram deixadas em liberdade, incluindo mais de 37 mil menores e 61 mil familiares.

Agora, com o número de entradas ilegais no país a voltar aos níveis do tempo de Obama, a Casa Branca resolveu mudar de estratégia. “O Governo tem muita margem de manobra para aplicar a lei. Mas separar crianças dos pais e colocá-los em celas… Não há nada na lei que dite isso, é uma interpretação que eles fazem da lei”, explica ao Observador Seth Masket, professor de Ciência Política da Universidade de Denver, no Colorado.

Esta quarta-feira, o Presidente assinou uma ordem executiva que permite que pais e filhos fiquem juntos nos centros de detenção. A decisão pode ser vista como uma espécie de recuo, já que acaba com a separação de famílias, mas tem pela frente uma batalha legal anunciada. Afinal, esta é a mesma ação que a administração Obama tomou no passado e que enfrentou problemas legais.

Como tem sido feita a separação de pais e filhos?

Michael Bochenek, representante da HRW que está na fronteira no Texas, explica o que acontece quando um migrante é apanhado pelos guardas fronteiriços ou se entrega às autoridades para pedir asilo: “Primeiro são levados para celas de imigração, conhecidas como ‘congeladores’ pelo frio que lá faz. Estas são pequenas salas de cimento, com um banco ao longo da parede. Normalmente os imigrantes são colocados nestas celas durante algumas horas. A maior parte sai dali ao fim de 24 horas — e é nessa altura que pais e filhos são separados”, explica o responsável da ONG.

As crianças ficam detidas em celas que parecem jaulas

Várias testemunhas no local dão conta de que as autoridades não explicam aos pais com exatidão o que se vai passar a seguir. A ONG Texas Civil Rights Project garante que muitos pais com quem falaram não tinham qualquer informação sobre o paradeiro dos filhos. Outros revelam que lhes foram ditas mentiras. É o caso de um casal que conta ao Washington Post ter sido informado de que os filhos iriam apenas ser interrogados e que regressariam em breve. Também a advogada Azalea Aleman-Bendiks revelou ao Boston Globe que a muitos dos seus clientes foi dito que estavam a levar as crianças apenas para lhes dar banho.  “Os pais perguntam ‘para onde levam o meu filho?’ e os guardas fronteiriços só lhes respondem ‘não sabemos’ ou então ‘eles vão cá estar daqui a pouco’, o que é mentira. Fazem isto porque não querem enervar os pais e porque querem acreditar que estão apenas a cumprir ordens”, analisa Bochenek.

Responsáveis do Departamento de Segurança Interna afirmaram entretanto ao Los Angeles Times que toda a informação está a ser dada aos pais. “As acusações de tentativas de separação furtivas são totalmente falsas”, declararam, preferindo não se identificar.

Os pais são então enviados de autocarro para uma prisão federal, enquanto os filhos são transportados para outros locais.

Para onde são enviadas as crianças?

Numa primeira fase, as crianças são enviadas para os chamados “centros de processamento”, as instalações que se assemelham a grandes armazéns onde as crianças são colocadas atrás de grades nas famosas estruturas que se assemelham a jaulas — e que equivalem a centros de detenção de imigrantes.

O maior centro de detenção deste género é conhecido como o “centro Ursula”, por se encontrar na Rua Ursula em McAllen, no Texas. É o maior centro de detenção e processamento do país e é o local para onde está a ser enviada a maioria destes menores. Ao fim de 72 horas — como determina a lei — as crianças e adolescentes são enviados para abrigos pertencentes ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos do Governo norte-americano.

Não é claro em qual destas instalações os menores poderão ficar com os pais depois de o Presidente ter assinado a ordem executiva. Isto porque as duas primeiras são consideradas instalações “semelhantes a estabelecimentos prisionais” e a lei proíbe um menor de ficar num local desses durante mais de 72 horas. Caso fiquem num abrigo, os pais aí já não estariam numa prisão federal, como prevê a lei em casos de criminalidade.

Quais as condições dos locais onde são colocadas?

Nas celas onde as famílias passam as primeiras 24 horas — os “congeladores” — não há cobertores nem colchões, nada a não ser um banco de pedra. “Numa dessas celas contei 28 rapazes. Não conseguiam dormir todos esticados, porque não cabiam todos”, revela Bochenek.

Nos centros de detenção como o Ursula — a que um senador chegou a chamar de “canil” — a situação é ligeiramente melhor. “Há colchões, mas não chegam para todos. Há comida melhor, a refeição passa a ter fruta, por exemplo. Podem tomar um banho enquanto lá estão e recebem produtos de higiene, como pasta de dentes”, resume Bochenek.

O "centro Ursula", no Texas (Foto cedida pelas autoridades dos EUA)

Mas, para ONGs como a HRW, as condições continuam a ser francamente insuficientes para acolher crianças: “São centenas de crianças engaioladas, à espera que algo aconteça. Não há adultos a não ser os guardas que de vez em quando vão ver se está tudo bem. Não há ninguém para parar com as brigas, ninguém para os consolar quando choram. Não há brinquedos, nem jogos, nem livros, nem espaço para correr. É esperado que fiquem sentados quietos no chão durante três dias.

A Guarda Fronteiriça e outras autoridades têm revelado desconforto pelo uso de expressões como “celas”, “jaulas” ou “gaiolas” para referir o local onde as crianças estão colocadas. O site Breitbart, conhecido órgão de extrema-direita pró-Trump, publicou um texto a criticar o uso dessa expressão por um repórter da Associated Press que visitou o centro Ursula, dizendo que seria preferível utilizar a expressão “áreas de contenção com uma vedação de corrente”. Mas, seja qual for a expressão utilizada, certo é que os menores são colocados dentro daquela estrutura, como as fotos oficiais divulgadas pelas autoridades norte-americanas revelam.

Nos abrigos para onde os menores são enviados posteriormente, as condições são melhores. Na Casa Padre, o maior abrigo apoiado pelo Estado que se localiza em Brownsville, no Texas, há camas, um refeitório e os menores podem ir à escola e passar duas horas numa espécie de recreio. Atualmente há cerca de 1500 menores só neste abrigo. Contudo, até nestas instituições há críticas às condições de acolhimento. A responsável máxima da Academia Americana de Pediatria denunciou os relatos que lhe foram feitos por atuais e antigos trabalhadores destes abrigos que dão conta de regras apertadas que os impedem, por exemplo, de abraçar as crianças.

Todas estas condições já existiam previamente durante a presidência de Barack Obama, quer nos centros de detenção, quer nos abrigos, destaca a HRW. “Em qualquer outra instituição para crianças, este tipo de condições seria considerado digno de maus-tratos, não seria permitido pelas agências governamentais em qualquer outro contexto”, ressalva Bochenek. A diferença agora está no facto de os menores estarem nestes locais sozinhos, ao contrário do que acontecia antes: “Destroçar famílias é algo completamente novo. Separar pais dos filhos a esta dimensão é inédito.”

O que acontece aos pais?

Depois de separados dos filhos, os pais são enviados para prisões até serem presentes a um juiz. Aí, são levados em conjunto com outros migrantes para sessões em massa em tribunal — o Houston Chronicle dá conta de um tribunal em McAllen onde a média passou a ser de mil casos por semana.

Os relatos dos jornalistas presentes nas sessões de tribunal dão conta de dezenas de pessoas que se dão como culpadas, aconselhados pelos seus advogados, na esperança de que isso facilite o processo de reunião com os seus filhos. Seja um homem que atravessou a fronteira com um filho de 11 anos, seja uma mulher a quem lhe retiraram dos braços a bebé que estava a amamentar.

Todos esperam para ouvir a pena e são depois levados de novo para a prisão.

Pais e filhos separados vão conseguir reunir-se?

Em teoria, sim. Na prática, é complicado.

Quando entra no sistema norte-americano, cada migrante recebe um número, mas os pais não sabem o número dos seus filhos. Para ter conhecimento dessa informação, podem ligar para o número de informações do Gabinete de Realojamento de Refugiados (ORR na sigla original). Contudo, como relembra um migrante à revista New Yorker, na prisão é difícil telefonar com regularidade ou receber chamadas de volta.

Para além disso, ainda não há procedimentos definidospelo próprio ORR ou outros organismos públicos para promoverem a reunião de pais e filhos. “Esta política ainda é relativamente nova”, explicou à Vox Steven Wagner, secretário-assistente da ORR no Governo. “Ainda estamos a trabalhar no processo de reunir as crianças com os pais depois da adjudicação”, ou seja, depois de a situação legal do pai estar resolvida, através da concessão de asilo, por exemplo. Esse processo pode demorar anos.

A isto juntam-se as falhas no terreno. Um dos números de telefone apontados pelo ORR num folheto chegou a estar errado, assegura a Vox. E as ONG dão conta de situações em que crianças e familiares estão inclusivamente no mesmo centro de detenção, mas não conseguem encontrar-se por falta de registos — foi o caso de uma menina que acabou por ser tratada por algumas adolescentes que lhe iam mudando a fralda, quando afinal a sua tia estava no mesmo edifício.

Angela Dodge, porta-voz do Departamento da Justiça no Texas, admitiu ao Washington Post que quando os pais são levados a tribunal não há registos sobre se tinham filhos consigo ou não aquando da entrada no país. “Não temos estatística sobre se alguém é um pai ou não”, afirmou, sublinhando que essa informação “não é relevante” para a acusação.

Também não está definido o que acontece aos menores depois de serem colocados nos abrigos. “Alguém vai tomar conta das crianças. Vão ser institucionalizadas ou coisa assim”, resumiu John Kelly, chefe de Gabinete do Presidente, em maio, quando esta política começou a ser gizada.

Isto aplica-se só a imigrantes ou também a requerentes de asilo?

Em teoria, apenas a imigrantes. Na prática, tendo em conta que muitos estão impedidos de chegar sequer a pedir asilo, tem-se aplicado em ambos os casos.

A distinção é relevante já que, tendo em conta que muitas destas famílias vêm de países na América Central onde a violência dos gangues é endémica, possivelmente alguns destes casos terão direito a que lhes seja concedido asilo nos Estados Unidos. Jennifer Harbury, advogada responsável pela divulgação de uma gravação de som vinda de um centro de detenção, ilustra quais são os antecedentes de alguns destes menores, recordando à CBS o caso de um antigo cliente seu: “Ele fez 15 anos nas Honduras e é nessa idade que os cartéis batem à porta e dizem ‘ou trabalhas para nós ou morres’. Perguntaram-lhe a primeira vez e ele recusou, à segunda atropelaram-no.” Depois, fugiu para os EUA com ajuda da mãe, para tentar pedir asilo.

A lei determina que as famílias que fizerem um pedido de asilo num posto de entrada determinado têm direito a ficar juntas até o processo estar concluído, mas há denúncias de casos em que tal não foi cumprido. É o caso de uma mulher congolesa, que requereu asilo e foi separada da sua filha de sete anos, abrindo uma batalha legal. “O Serviço Luterano de Imigração e Refugiados documentou 53 incidentes de separação familiar nos últimos nove meses”, denunciou a NPR. Esta já era a situação ainda em fevereiro, antes da “tolerância zero” ser anunciada.

Esta segunda-feira, a secretária da Segurança Interna Kirstjen Nielsen admitiu num briefing com a imprensa que, tendo em conta o fluxo de pessoas na fronteira, as autoridades não estão a registar pedidos de asilo. “Estamos a dizer-lhes que queremos cuidar deles da melhor forma. Atualmente não temos os recursos para o fazer, voltem depois.”

A lei norte-americana continua a prever a atribuição de asilo em alguns casos com caráter humanitário, mas esta administração tem denunciado o que considera ser “buracos” na lei que permitem que criminosos se aproveitem para entrar no país. Esses buracos “permitiram a membros do gangue MS-13 e a outros criminosos infiltrarem-se na nossa comunidade”, declarou o próprio Presidente no Twitter, justificando assim esta política de tolerância zero que também tem afetado os requerentes de asilo, mesmo que indiretamente.

Donald J. Trump

@realDonaldTrump

Crippling loopholes in our laws have enabled MS-13 gang members and other criminals to infiltrate our communities - and Democrats in Congress REFUSE to close these loopholes, including the disgraceful practice known as Catch-and-Release. Democrats must abandon their resistance...

20:35 - 23 de mai de 2018

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Quais são os argumentos dos que defendem esta política?

Até ao anúncio desta quarta-feira de que a ordem executiva do Presidente manterá as famílias juntas, a Casa Branca mantinha que estava apenas a cumprir a lei. “Ao entrarem ilegalmente no nosso país, muitas vezes em circunstâncias perigosas, os imigrantes ilegais colocam os seus filhos em risco”, avisou a secretária Nielsen esta semana.

O procurador-geral Jeff Sessions já tinha iniciado esta linha de argumentação na semana passada, colocando a responsabilidade nos próprios imigrantes, que sabem estar a violar a lei: “Não se ganha imunidade só por trazer uma criança”, disse. Sessions foi ainda mais longe, citando a Bíblia para responder às críticas que surgiram de alguns sectores das Igrejas Católica e Evangélica: “Cito-vos o Apóstolo Paulo e o seu mandamento claro e sábio em Romanos, 13: obedecer às leis do Governo”.

Vários responsáveis da Casa Branca, bem como o próprio Presidente, têm sublinhado que não gostam de ver crianças a serem separadas dos pais, mas afirmam não ter escolha. “É a lei”, repetiu até à exaustão a diretora de comunicação da Casa Branca, Sarah Huckabee Sanders, não conseguindo especificar a alínea da lei que dita a separação de famílias — porque não existe. “Eu detesto ver crianças a serem levadas. Os democratas têm de alterar a lei, é uma lei deles”, reafirmou o próprio Presidente no dia seguinte.

A secretária norte-americana do Departamento de Segurança Interna, Kirstjen Nielsen (Alex Wong/Getty Images)

Segundo o New York Times, há posições diferentes dentro da própria Casa Branca, com a secretária Nielsen alegadamente a entrar em choque com Trump sobre esta matéria várias vezes. Outros, como o conselheiro Stephen Miller (considerado o mentor da “travel ban”, que impediu a entrada de imigrantes de alguns países de maioria muçulmana) acham que Trump não deve apresentar desculpas para a sua própria política: “Foi uma simples decisão da administração de ter uma política de tolerância zero, ponto final. A mensagem é a de que ninguém está isento da lei de imigração”, declarou ao Times.

Quem ecoou essas declarações foi o antigo conselheiro e fundador do Breitbart Stephen Bannon: “É tolerância zero. Acho que [o Presidente] não tem de se justificar”, afirmou em entrevista à ABC. Recorde-se que tanto Miller como Bannon têm sido frequentemente associados ao novo movimento da extrema-direita norte-americana, a Alt-Right, que tem apoiado incondicionalmente Donald Trump.

Se alguns dos que estão ao lado desta política se dizem horrorizados mas admitem não haver alternativa, outros recusam-se a aceitar o que está a acontecer na fronteira: “Estes atores infantis a chorar e a berrar nas televisões a toda a hora… Não caia nisso, senhor Presidente”, disse a comentadora conservadora Ann Coulter. O argumento de que as crianças a chorar nos centros de detenção seriam atores corresponde a uma acusação recorrente feita por outros membros da Alt-Right e diferentes defensores de teorias da conspiração, como os que afirmam que as vítimas de tiroteios como o Newtown ou mais recentemente de Parkland são atores.

“Esta é definitivamente uma vitória para os defensores da linha dura contra a imigração dentro da Administração”, resume ao Observador Greg Wright, professor de Economia especialista em imigração da Universidade da Califórnia em Merced, que destaca Miller como o provável ideólogo por detrás desta estratégia.

Seth Masket concorda. “Se há assunto onde o Presidente tem sido consistente a toda a hora é este. Ele faz ziguezagues na saúde, nos impostos, na política internacional, mas o tema onde é mais consistente é a sua atitude perante a imigração, que penso ser o assunto mais ideológico da sua Administração.” Ou seja, para Trump e os seus conselheiros, o combate à imigração é uma prioridade e será necessário adotar quaisquer medidas que consigam reduzir os números das chegadas.

Quais são os argumentos dos que criticam esta política?

Vários congressistas norte-americanos, tanto republicanos como democratas, têm criticado esta política, acusando-a de ser cruel. A própria primeira-dama, Melania Trump, pediu um Governo “com coração” — apesar de ter sublinhado que “ambos os lados” poderiam resolvê-la, alinhando pela estratégia política do marido de culpar os democratas.

A senadora republicana do Maine Susan Collins fala numa política “contrária aos valores norte-americanos”, o antigo candidato presidencial Jeb Bush critica uma política “sem coração” e até o ex-diretor de comunicação de Trump Anthony Scaramucci diz que esta estratégia é “desumana e não resulta a longo prazo”.

Alguns congressistas, como o republicano Will Hurd, rejeitaram a ideia de que o ónus está exclusivamente no Partido Democrata: “Eles [Casa Branca] não precisam da legislação para mudar isto. Não precisam dos democratas para mudar isto. Esta é uma política do Departamento da Justiça que está a ser levada a cabo pelo Departamento da Saúde e dos Serviços Humanos”.

Também a antiga primeira-dama Laura Bush escreveu um artigo de opinião onde utilizou as palavras “cruel” e “sem coração” para definir o que está a acontecer na fronteira. O ator George Takei, conhecido pelo seu papel como Hikaru Sulu na série Star Trek, juntou-se às críticas escrevendo um artigo na Foreign Policy onde compara a sua experiência num campo de concentração norte-americano para japoneses: “Pelo menos no campo, quando eu tinha só cinco anos, não fui retirado aos meus pais”, afirma.

As Nações Unidas também criticaram duramente Washington: “Os EUA devem parar imediatamente esta prática de separar famílias e de criminalizar aquilo que não devia ser mais do que uma ofensa administrativa, a de entrada irregular”, declarou Ravina Shamdasani, porta-voz do Alto Comissariado para os Direitos Humanos. “As crianças nunca devem ser detidas por razões ligadas à situação de migração dos pais. A detenção nunca é no melhor interesse da criança e constitui sempre uma violação dos direitos da criança.” Recorde-se que os Estados Unidos fazem parte do grupo de três países-membros da ONU que ainda não ratificaram a Convenção dos Direitos da Criança, num processo que se arrasta desde 1995.

Que implicações políticas tem esta situação?

Vários democratas — incluindo o antigo Presidente Bill Clinton — têm acusado Trump de utilizar estes menores como “ferramenta de negociação”, referindo-se ao processo da reforma da imigração que decorre no Congresso. A teoria seria a de que a Casa Branca estaria a separar famílias como forma de pressionar os democratas a cederem na negociação no Congresso em matérias como o financiamento do muro na fronteira ou o fim das lotarias de imigração.

Donald J. Trump

@realDonaldTrump

The Democrats are forcing the breakup of families at the Border with their horrible and cruel legislative agenda. Any Immigration Bill MUST HAVE full funding for the Wall, end Catch & Release, Visa Lottery and Chain, and go to Merit Based Immigration. Go for it! WIN!

18:08 - 15 de jun de 2018

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“É o que parece, tendo em conta os tweets do próprio Presidente”, admite o professor Masket. “Parece uma tentativa de ganhar mais margem de manobra na negociação. Mas a minha impressão é que os democratas já tinham cedido nalguns destes pontos, portanto isto não era necessário.”

Atualmente, há pelo menos duas propostas de lei para uma reforma da imigração a serem discutidas esta semana no Congresso norte-americano. Uma, mais radical, não faz qualquer concessão aos imigrantes e aos seus filhos. Outra, mais moderada, prevê cidadania para os Dreamers (filhos de imigrantes que vieram para os EUA ainda em criança), mas em troca aumenta os fundos para o reforço da segurança na fronteira, entre outras medidas.

O Presidente Donald Trump na reunião com os congressistas republicanos (MANDEL NGAN/AFP/Getty Images)

“Tendo em conta que a maioria dos americanos apoia uma solução para os Dreamers, esta solução de compromisso faz com que possam tornar-se cidadãos. Este é o preço que os republicanos terão de pagar para lidar com a opinião pública. Mas, por outro lado, a proposta também acaba com a lotaria de vistos e não há grande argumento económico para isso, a não ser que se queira reduzir todos os tipos de imigração”, analisa Wright. “Políticas de imigração como as lotarias têm sido muito bem sucedidas, por isso acabar com este tipo de programa só pode ser por motivações ideológicas.”

Ou seja, mesmo na proposta mais moderada, há elementos que em teoria agradam à Casa Branca. Mas, mesmo assim, Trump tem-se recusado a deixar claro qual das propostas de lei prefere. Esta quarta-feira, o Presidente reuniu-se com os representantes republicanose declarou que aprovará qualquer projeto de lei que conte com o apoio do partido — continuando a não esclarecer qual dos projetos prefere e evitando pôr um ponto final na dispersão de votos dos republicanos.

Na tarde desta quarta-feira, Dia Mundial do Refugiado, os jornais norte-americanos anunciaram que o Presidente tentará arrumar de vez o assunto ao assinar uma ordem executiva que permita manter as famílias juntas nos centros de detenção. É a resposta à pressão pública: uma sondagem da CBS, por exemplo, dá conta de que 67% dos americanos consideram “inaceitável” separar os filhos dos pais que tentaram atravessar a fronteira ilegalmente.  “A pressão política para tirar isto das notícias é demasiado grande”, resume Masket, que assegura que nas presidências anteriores a pressão da opinião pública teria produzido efeitos muito mais cedo. “Mas Trump não funciona assim.”

Contudo, mesmo assinando uma ordem executiva, anuncia-se um desafio legal e o problema está longe de estar resolvido.

Monstruosidade e cobardia

Ladrões de Bicicletas


Posted: 21 Jun 2018 01:03 AM PDT

«Os norte-americanos foram confrontados com a ignomínia e obrigados a ver os rostos e a ouvir as vozes da crueldade do seu governo. A violência imposta a estas crianças, que são separadas dos seus num momento especialmente traumatizante e ficam sem qualquer apoio ou carinho de um adulto, entregues a si mesmas, transporta-nos para o passado. Mas o abjeto attorney general, Jeff Sessions, não se mostrou especialmente ofendido com a comparação. Disse que era um exagero. Explicou: os nazis prendiam as pessoas e separavam famílias para elas não fugirem, eles prendem e separam famílias para elas não entrarem. Faz toda a diferença.»
Daniel Oliveira, «Imigração: Contra a crueldade, política»
Uma das formas mais execráveis de tortura, pela sua monstruosidade e cobardia, consiste em forçar alguém a falar através da ameaça e exibição da dor e sofrimento infligidos a um familiar ou amigo. Monstruosidade porque a tortura se torna ainda mais cruel e inumana. Cobardia porque se retira ao próprio o derradeiro direito, de falar ou resistir.
Não sabemos se a ideia de separar na fronteira bebés e crianças imigrantes dos seus pais, e de as encarcerar como se fossem adultos e criminosos, partiu de Donald Trump ou dos seus próximos. Mas sabemos que apenas a uma mente muito tortuosa, e desprovida de qualquer resquício de humanidade e escrúpulos, poderia ocorrer uma coisa assim. Tal como num interrogatório sob tortura, infligida de forma indireta, para se obter uma «confissão», também aqui se instrumentaliza a dor de terceiros, neste caso crianças, para intimidar e suster a imigração. É grave, demasiado grave e insuportável para haver, sobretudo no espaço europeu, tanto silêncio no ar.

“Relembram-nos crimes hediondos”. Escritores portugueses condenam separação de famílias nos EUA

Jornal Económico com Lusa

Ontem 20:29

Entre os mais de cem subscritores estão os nomes de Richard Zimler, Lídia Jorge, Maria Teresa Horta, Mário Cláudio, Luísa Costa Gomes, Ana Zanatti, Possidónio Cachapa, Gonçalo M. Tavares, Mário de Carvalho, Afonso Cruz, Ana Margarida Carvalho, Ana Nobre Gusmão, Rui Zink e José Eduardo Agualusa, entre outros.

Reuters

Uma carta do escritor Richard Zimler, assinada pelos seus pares e por editores, condena a decisão do Presidente norte-americano, de separar crianças menores dos seus familiares, quando estes entram ilegalmente nos Estados Unidos.

“Tal separação provoca, indubitavelmente, um sofrimento e medo atrozes”, lê-se na missiva, que alerta para a possibilidade desta situação vir a causar “traumas duradouros”.

“Como que para enfatizar a natureza cruel e persersa desta política, o Governo federal [norte-americano] deu ordem aos agentes que trabalham nos abrigos para não tocarem ou agarrarem crianças assustadas”, nem “lhes oferecer qualquer espécie de conforto”, escreve Zimler, nascido em Roslyn Heights, no Estado norte-americano de Nova Iorque, e atualmente a viver no Porto.

O objetivo desta política da administração do Presidente Donald Trump é “brutalizar crianças fragilizadas”, lê-se no documento que recolheu mais de cem assinaturas, entre as quais as de Lídia Jorge, Maria Teresa Horta, Mário Cláudio, Luísa Costa Gomes, Ana Zanatti, Possidónio Cachapa, Gonçalo M. Tavares e Rui Cardoso Martins.

No texto, Zimler faz um paralelismo entre a situação existente no regime nazi, liderado por Adolf Hitler, na Alemanha, em meados do século XX, com a situação vivida na fronteira dos Estados Unidos com o México.

As imagens de rapazes e raparigas separados dos pais “tornaram-se o símbolo do desrespeito pelos Direitos Humanos, levado a cabo pelo Presidente Trump”, e “relembram-nos crimes hediondos cometidos contra a Humanidade noutros países, nomeadamente na Alemanha de Hitler”, lê-se na carta que recorda crianças judias e ciganas que eram retiradas à força dos pais, quando estes entravam nos campos de concentração.

A carta, subscrita entre outros, por Eduardo Pitta e Maria do Rosário Pedreira, alerta para as cerca de 1.500 crianças que atravessaram a fronteira mexicano-norte-americana sem companhia de adultos e, apesar de terem sido colocadas à guarda de tutores nos Estados Unidos, as autoridades de Washington perderam a sua localização.

Os Serviços Sociais admitiram em abril que, poucos meses depois de serem transferidos para famílias de acolhimento, foi perdida a pista de 1.475 crianças que tinham chegado completamente sozinhas aos EUA, por os tutores nomeados não atenderem o telefone.

Para Zimler e para os mais de cem subscritores, esta situação devia ter sido um alerta para a incapacidade do Governo federal pôr em prática uma política de “tolerância zero”, e separar filhos e pais migrantes.

Os escritores e editores portugueses, entre os quais Guilhermina Gomes, Vasco David e Cecília Andrade, manifestam desta forma o seu “protesto” por este “tratamento desumano”, e mostram-se esperançosos no fim desta política “ultrajante e indesculpável”, pelos protestos de “dezenas de milhões de americanos solidários e compassivos”.

Segundo o Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos, citado pelos subscritores, cerca de 3.000 crianças foram separadas dos seus familiares, nos últimos dois meses, ao entrarem sem autorização nos Estados Unidos, a partir do México.

Entre os mais de cem subscritores estão também os nomes de Mário de Carvalho, Afonso Cruz, Jacinto Lucas Pires, Ana Margarida Carvalho, Ana Nobre Gusmão, Rui Zink, José Eduardo Agualusa, Júlia Monginho, Nuno Saraiva, Miguel Real, Rita Ferro, Inês Pedrosa, Ana Pereirinha, Manuel Alberto Valente e Rui Couceiro, entre outros.

Imigração: contra a crueldade, política.

  por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 20/06/2018)

crianças

Para quem prefere enfiar a cabeça na areia e dar carta branca a demagogos para tratarem da sua “segurança” e “conforto”, uma imagem vale mais do que milhões de palavras. E a imagem de centenas de crianças, enfiadas em jaulas em armazéns no sul do Texas, torna mais difícil a hipocrisia que se instalou nos Estados Unidos. Os norte-americanos foram confrontados com a ignomínia e obrigados a ver os rostos e a ouvir as vozes da crueldade do seu governo.

A violência imposta a estas crianças, que são separadas dos seus pais num momento especialmente traumatizante e ficam sem qualquer apoio ou carinho de um adulto, entregues a si mesmas, transporta-nos para o passado. Mas o abjeto attorney general Jeff Sessions não se mostrou especialmente ofendido com a comparação. Disse que era um exagero. Explicou: os nazis prendiam as pessoas e separavam famílias para elas não fugirem, eles prendem e separam famílias para elas não entrarem. Faz toda a diferença.

A inumana separação de crianças dos seus pais não resulta de qualquer problema operacional ou de falta de meios. Faz parte da política de tolerância zero imposta por Sessions. E tem um propósito explícito: desencorajar os imigrantes de atravessar a fronteira. As crianças são, de forma expressa, instrumentos da política de imigração de Donald Trump.

É pior do que isto: as crianças estão a ser usadas para, através de uma aplicação cega e desproporcionada da lei (tratando os que entraram ilegalmente como presos de delito comum e separando assim as famílias), pressionar os democratas a negociar um endurecimento das leis anti-imigração e o pagamento do muro. Donald Trump deixou isso claro, em sede própria (o Twitter): “Separar famílias na fronteira é culpa de uma má legislação aprovada pelos democratas. As leis de segurança de fronteira devem ser alteradas! Começou o muro.” Não me recordo de um governo de uma democracia alguma vez ter assumindo que impunha sofrimento a crianças como forma de pressão política sobre opositores.

O preço da “tolerância zero” é quase sempre, neste tipo de assuntos, a crueldade. Incluindo a crueldade sobre crianças. Mas há sempre um antídoto para os efeitos das imagens: a desumanização dos outros. Na Europa, é bom percebermos antes de começarmos a pregar moral a um país historicamente muitíssimo menos fechado à imigração do que o espaço da União, ela vai bem avançada. Salvini, o ministro do Interior italiano que usou a recusa de entrada de um barco com mais de 600 africanos como marca política de uma nova era, quer fazer um censo dos ciganos para saber quais não são italianos e expulsá-los do país. E lamenta que esta expulsão etnicamente dirigida, como sempre foi gosto da extrema-direita, não se possa a alargar a todos: “Infelizmente vamos ter de ficar com os ciganos italianos em casa”. Os campos de concentração ainda não estão prontos. Mas esta história ainda vai a meio, pensará o animal.

Na Alemanha, também é a política de imigração e de refugiados que faz estragos. A CSU, versão bávara da CDU que governa a província que recebeu grande parte dos refugiados, quer que o país rejeite avaliar qualquer pedido de asilo de qualquer refugiado que se tenha registado num Estado do sul. Não preciso de explicar que tal decisão corresponderia a uma violação das regras europeias. E teria uma consequência prática: os países da linha da frente, sobretudo a Grécia e a Itália, ficariam sozinhos com a batata quente na mão, servindo de tampão para o resto da Europa. Para Salvini era a certeza de uma maioria absoluta (já está a crescer nas sondagens, aliás). Apesar de inaceitável, a posição da CSU tem um racional. A política de Angela Merkel permitiu receber 1,6 milhões de refugiados, desde 2014, e é rejeitada por 65% dos alemães. Uma imprudência que resultou na subida da extrema-direita e que levou a esta posição de Horst Seehofer, líder da CSU e ministro do Interior do governo de coligação com o SPD recém-formado. Há eleições na Baviera em outubro, e a CSU pode perder a sua maioria absoluta. Tem pouco mais de 40% nas sondagens, menos 7 pontos percentuais do que nas últimas eleições. A Alternativa para a Alemanha (AfD), está com 13%. Dirão que a posição é de puro oportunismo eleitoral, mas é bom recordar que se a AfD subir muito a abordagem alemã à imigração e aos refugiados não será nem a de Seehofer, nem a de Merkel. Será a de Salvini e de Trump.

Não atribuo, ao contrário do que tenho lido, a imprudência de Merkel apenas a mínimos de decência perante o sofrimento humano. Isso terá o seu peso, mas penso que um calculismo económico bastante frio, mas que resultou num erro de cálculo político, foi mais determinante. Numa coisa Merkel tem razão: só uma solução conjunta pode garantir que a Europa cumpre o seu dever moral e não soçobra perante o crescimento da extrema-direita. Se temos fronteiras internas abertas não há como recusar uma política de imigração e asilo coordenada. Mas Merkel também está a colher o que semeou. Quem castigou os países mais expostos à crise financeira, atirando para os preguiçosos povos do sul as culpas de uma moeda disfuncional, não tem grande autoridade para pedir solidariedade entre Estados.

Apesar da chegada de muitas pessoas fugidas da fome e da guerra (com as alterações climáticas serão cada vez mais), a “crise dos refugiados” é, antes de tudo, uma crise política. As sucessivas crises financeiras, a incapacidade em regular os efeitos económicos da globalização e o processo de contrarreforma social a que assistimos na Europa cria uma fundada sensação de insegurança nas pessoas. Direcionar essa ansiedade para os imigrantes, como sempre fez a extrema-direita, é fácil. A imigração não é de hoje, as condições políticas e sociais que ela encontra nos países do primeiro mundo é que são. Quando a política dá resposta à ansiedade das pessoas, a culpabilização dos estrangeiros tem resultados políticos marginais. Quando deixa a extrema-direita a falar sozinha para os excluídos da globalização eles são colossais. Querem derrotar Trump, Salvini e a AfD? A resposta é proteção social, emprego e regulação económica.

Os discursos morais sobre os nossos deveres para com os imigrantes, sendo imprescindíveis para que o abjeto não se transforme em normal, pouco resolvem. A direita que não se acobarde com a extrema-direita, repetindo em versão mole a sua política de imigração. A esquerda que não se acobarde com a direita liberal, repetindo em versão mole a sua política económica e social. Regressem ao que tornou possível meio século de paz e prosperidade. Se as duas coisas existirem os xenófobos militantes voltarão a ser uma pequena minoria.