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sábado, 16 de maio de 2020

O Ronaldo dos jogos a feijões

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 14/05/2020)

A minicrise desta quarta-feira, que corresponde ao prenúncio da despedida de Mário Centeno muito em breve (sair em junho é sair agora), conta-nos muitas coisas sobre a interminável e milionária novela do Novo Banco, sobre Mário Centeno e sobre António Costa.

Ficámos a saber que, faça o Novo Banco o que fizer com o dinheiro que lhe é entregue pelo Fundo de Resolução, que em grande parte corresponde a empréstimos a longuíssimo prazo do Estado, o ministro das Finanças tem o compromisso de entregar o cheque assinado de cruz e sem direito a perguntas. As auditorias não têm qualquer função. É pagar e calar. É este o acordo que Centeno conseguiu e no qual se escuda, como se nada tivesse a ver com isso.

Recordo que foi o próprio ministro das Finanças a defender, há um ano, que as várias auditorias previstas não eram suficientes e que era “indispensável a realização de uma auditoria para o escrutínio do processo de concessão dos créditos incluídos no mecanismo de capital contingente”. Ficámos a saber que elas não têm qualquer consequência nos deveres presentes e futuros do Estado. E isso foi confirmado pelo próprio primeiro-ministro, no comunicado em que se humilhou perante o seu ministro das Finanças, porque não o pode perder em vésperas de orçamento retificativo e quando ele é presidente do Eurogrupo.

Ficámos a saber que o primeiro-ministro não faz a menor ideia do que se passa com o Novo Banco. Não conhece sequer os pormenores da venda desastrosa que liderou – e que é, para que o PSD não se arme em esperto, resultado da resolução desastrosa do BES, quando Portugal aceitou ser cobaia do experimentalismo europeu. Nem sabia a que auditoria realmente se referia. Nem parece conhecer as condições contratuais. E não pergunta. Entregou essa pasta a Mário Centeno e ele não acha, nem nisto nem em tudo o que dependa dele, que tem de dar explicações políticas a ninguém. Nem àquele que o nomeou.

Ficámos a saber que o ministro das Finanças não sente que tenha de ter em conta a sensibilidade política deste dossier. Não tem de dar explicações a ninguém, incluindo ao primeiro-ministro. Nem sequer depois de ter ouvido o seu compromisso, perante uma pergunta do PAN, a 22 de abril, de que essa transferência só aconteceria depois de se conhecerem os resultados da auditoria. Deixou-o na ignorância e com isso levou-o a mentir 15 dias depois, quando o BE o voltou a questionar, já a transferência tinha sido feita. Mário Centeno não quer saber. Não é ministro de Costa. Não responde perante Costa. Não tem nada a ver com os compromissos públicos de Costa.

Depois de Costa ter tentado salvar a honra do convento com “falhas de comunicação”, Mário Centeno fez questão de desautorizar de novo o chefe do Governo, que acontece ser o seu chefe. Chegou a dizer que "o primeiro-ministro entendeu que devia fazer um pedido de desculpas ao Bloco de Esquerda", como se mentir no Parlamento (por sua responsabilidade) não tivesse importância alguma. As farpas foram tantas que é inconcebível não ter anunciado a demissão na hora. É como se fosse ele o primeiro-ministro. E faz tudo isto num momento especialmente sensível para o país. Está-se nas tintas. Ele é o Ronaldo, o presidente do clube que tem a sorte de o ter descoberto na academia que trate dessas minudências que são a política.

Ficámos a saber que o Ministro das Finanças está desesperadamente à procura de uma saída, quando as coisas deixaram de ser fáceis. Fez o que qualquer ministro no seu lugar conseguiria fazer numa boa conjuntura – cativar, cortar, aproveitar uma boa situação económica, repetindo em tempo de vacas gordas o essencial do raciocínio de Vítor Gaspar no tempo das vacas magras.

Tudo o que o governo da “geringonça” fez de positivo para os que mais precisavam e em defesa dos serviços públicos, na legislatura passada, não foi feito por causa de Centeno, foi apesar e muitas vezes contra Centeno. Digo-o há cinco anos. E se algumas dúvidas houvesse sobre a sua postura, o papel obedientemente irrelevante que tem tido no Eurogrupo, transformando cada coisa nenhuma em imensas coisas sem precedentes, demonstram o engano que nos tem sido vendido.

Ficámos a saber que falta a Mário Centeno o sentido de dever que, num cargo político, só um político que não procura outras carreiras pode ter. Preparar a sua saída no momento em que Portugal vai entrar numa crise sem precedentes revela falta de grandeza. Mas a sua saída imediata poderia impedir uma possível nomeação para governador do Banco de Portugal, agora que a Europa começa a parecer um sonho mais distante. Todos os cálculos são possíveis, nenhum parece incluir os interesses do país.

Não lamento a saída de Mário Centeno, que não teria, para o tempo que aí vem, rigorosamente nada de diferente para oferecer do que aquilo que conhecemos em 2011. A pergunta é se António Costa, que à boa moda dos políticos dos anos 80 acha que não tem de se saber de economia para fazer política, tem alguém que o substtua. Não tem de ser um amigo. Tem de ser quem pense no Ministério o que o primeiro-ministro anda a dizer ao país desde que a pandemia começou.

Em tudo isto, esteve bem o Presidente da República, ao tentar, sem grande sucesso, recordar a hierarquia do Governo. Centeno está de partida. Ao contrário de quem andou a transformá-lo num Ronaldo, não o lamento. Nem me espanto que o queira fazer no momento em que nenhum político com algum sentido de missão o faria. Só tenho pena que, no fim, ainda exista a possibilidade de ser premiado. Mas sabendo que é candidato a substituir Carlos Costa, o homem que depois do desastre do BES ficou no lugar como se nada se tivesse passado, há uma certa coerência.

Jogos pré-estivais

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 16/05/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 Em 15 de Abril já estávamos em plena crise económica resultante do coronavírus, certo? Nessa altura, já o Governo se vira forçado a injectar milhares de milhões na economia — “os impostos de amanhã”, como lhes chamou o ministro Siza Viera —, não é verdade? Então, nessa data, quando, respondendo a uma pergunta deste jornal sobre se o Governo iria injectar também os 850 milhões já previstos no Orçamento do Estado e que o Novo Banco iria fatalmente pedir outra vez, António Costa respondeu textualmente que “o que está no Orçamento é para ser cumprido”, e acrescentou que não se tratava de “despesa”, mas sim de um “empréstimo”. E é, no papel: o Estado vai emprestar, em nome do Fundo de Resolução, até 3,89 mil milhões aos gestores autopremiados do NB, e depois o Fundo de Resolução (os outros bancos) terão até 2047 para devolver ao Estado o dinheiro “emprestado”, assim acabando eles por pagar a dívida acumulada pela gestão premiada do NB: acredite se quiser.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Temos, pois, que o primeiro-ministro não fez depender o pagamento de qualquer auditoria (ao contrário do que subentenderia uma semana depois, na AR), antes o assumindo como uma inevitabilidade. E as cinco verificações das contas do NB, a cargo de outras tantas instituições, nacionais e europeias, das quais dependia a viabilidade do pedido do banco, todas lhe deram luz verde — enquanto que a “auditoria” de que falou o PM, a cargo da Deloitte e que deveria estar pronta em Maio, está atrasada para Julho. Sabemos que António Costa não foi avisado a tempo por Mário Centeno de que o pagamento já fora feito. Mas não sabemos se foi avisado que ia ser feito, só não sabendo quando. E custa a creditar que desconhecesse que, nos termos do contrato de venda do NB, verificadas as contas pelas entidades externas, este tinha o direito de pedir o dinheiro do Estado e o Estado tinha 30 dias para o transferir, após a recepção do pedido: foi o que fez Mário Centeno, no último dia do prazo. Foi uma “falha de comunicação”, como disse o ministro das Finanças, mas não foi um azar de 24 horas. Muito antes de 15 de Abril, já eu, que não sou governante, mas apenas contribuinte, me interrogava se o NB teria o descaramento de, este ano, em plena crise inimaginável, vir outra vez esmolar o seu estipêndio. E já no ano passado, quando eles vieram assaltar-nos pelo terceiro ano consecutivo — e terceiro após a venda (não falharam um!) — no assomo geral de indignação que se seguiu, toda a gente se perguntou como seria em 2020. Portanto, meus caros, arranjem as minudências e sinuosidades processuais que acharem por convenientes, mas tenham o decoro de não passar ao lado do essencial: não pagar ao NB era uma decisão política, que envolvia uma quebra contratual e que o primeiro-ministro não quis assumir. Agora, se António Costa está farto de Mário Centeno e Mário Centeno farto de António Costa, isso é outra questão. Mas encerrar a crise com Centeno como bode expia­tório, dá muito jeito a várias partes, mas é apenas fumo para os olhos.

2 Numa coisa, Centeno (e Costa) dividem responsabilidade: na infeliz venda do Novo Banco à Lone Star, um negócio que já se sabia que só podia acabar mal. Mas também é verdade que Sérgio Monteiro andou ali uma eternidade para vender o banco e tudo o que arranjou foi estes piratas, com fama de atacarem animais feridos e abandonarem-nos cadáveres, que é o que vão fazer com o NB: sugarem tudo o que puderem dos contribuintes e, quando a mama acabar, fazem um garage sale daquilo ou entregam-no à falência. E também é verdade que mais uma vez o nosso querido Estado conseguiu assinar um contrato de milhares de milhões com privados em que eles ficam com o nosso dinheiro e nós com a experiência deles.

3 Desta vez, a administração do NB pediu ao Fundo de Resolução (aos contribuintes, como já vimos) 1037 milhões de euros, mas só lhe deram 1035. Recusaram-lhes 2 milhões para “prémios de gestão” dos administradores. Mesmo assim, quando Centeno apelou a que tivessem o bom senso de não retirar o prémio dos remanescentes 1035 milhões, os senhores gestores demoraram apenas minutos a produzir um comunicado a dizer que não prescindiam de tal. Estes tipos mereciam, como nos livros de banda desenhada do Far West se fazia aos mal-comportados do saloon, ser cobertos de alcatrão e penas e expulsos da cidade.

É preciso ter perdido qualquer vergonha pública para querer receber prémios de gestão do único banco que perdeu dinheiro em 2019 e que só fechou as contas no positivo com a esmola contratual dos contribuintes. De uma só penada, o NB leva o triplo do que a TAP pediu ao Governo — mas a TAP voa, não rasteja — ou o dobro do aumento previsto para o SNS — mas o SNS combate a pandemia e salva vidas, não é ele próprio um vírus ruinoso para o país e para a vida dos outros.

Não pagar ao NB era uma decisão política, que envolvia uma quebra contratual e que o primeiro-ministro não quis assumir

4 E numa coisa Centeno teve toda a razão: a Resolução do BES foi “desastrosa”. Aliás, foi bem pior do que isso: foi o mais ruinoso negócio feito em nome dos contribuintes portugueses nos últimos 50 anos. Obra de três personagens principais: Carlos Costa, Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque. Mas, diga-se em abono da verdade, com o apoio quase generalizado de todos os partidos, sobretudo da esquerda apaixonada pelas nacionalizações, e a contribuição de alguns personagens menores, cujos nomes talvez um dia vejam a luz do dia. Segundo as contas de Vítor Bento, o primeiro presidente do NB, a Resolução custará no final entre 8 e 10 mil milhões, mas eu creio que ele não está a incluir nas contas coisas como os 4000 milhões perdidos com a desastrada gestão do assunto do BESA ou as vendas a desbarato de activos do ex-BES. Pelas minhas contas, o saldo final nunca será menos de 12 mil milhões de euros. Nada que tire o sono a certa gente: os pavões não dormem à noite.

5 Cordas, cercas metálicas, pulseiras de acesso, nadadores-salvadores virados ao contrário, polícia marítima, fuzileiros navais, sensores e drones a pairar sobre as cabeças para as contar e vigiar as distâncias sociais, não só na areia mas também na água: sob o comando da incansável Drª Graça Freitas, eis o Verão nas praias de Portugal que nos preparam. Mas também se fala de outros planos que regularão o tipo de calçado obrigatório, quando e como pôr e tirar a máscara (todo um manual de instruções!), o que é e o que não é um “desporto náutico” e o eventual alargamento das zonas concessionadas, em prejuízo das zonas para os banhistas normais. E tudo isto porque a maioria dos banhistas não é comunista, o Governo sabiamente não confia neles, como confiou e confia nos comunistas da CGTP ou da Festa do Avante, para se autodisciplinarem sanitariamente. E assim pretende não só incentivar o “faça férias cá dentro” como ainda atrair o pouco turismo estrangeiro que aparecer.

Prevejo o pior. Prevejo qualquer coisa próxima de uma guerra civil, com os portugueses — ansiosos por férias, por praia, por descontrair, por ver amigos — a guerrearem-se nos estacionamentos, a atropelarem-se nas passadeiras, a acotovelarem-se nas filas de entrada, a atirarem com a Festa do Avante à cara das autoridades, a discutirem o direito à sombra com os concessionários, a reclamarem o lugar ocupado com o guarda-sol e as toalhas da família que chegou às oito da manhã, marcou o seu espaço e depois foi à sua vida, deixando lá os preciosos dez metros quadrados reservados o dia inteiro. Prevejo que a fúria regulamentadora da DGS leve a que, em lugar de deixar que as pessoas, sabendo que neste Verão não haverá practicamente turistas estrangeiros, se distribuam tranquilamente e ao longo do dia por praias com muito mais espaço naturalmente disponível, acorram todas em magote e ao mesmo tempo, com medo que lhes roubem a praia. Temo que, entregue nas mãos dos “praiaocratas” aquele que eu pensei que poderia ser o melhor Verão desde a minha infância, se torne no maior Inferno que a imaginação deles conseguir parir. E começo a temer que o Verão seja apenas um sinal do que nos espera: quando oiço os “especialistas” dizer e repetir que o vírus veio para ficar durante muito tempo (e, infelizmente, são capazes de ter razão), também me interrogo se eles, as suas regras e a sua volúpia de controlar a nossa vida ao detalhe, não vieram para ficar durante muito tempo. Porque, diz quem experimentou, o poder é inebriante.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Abutres há muitos

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 13/05/2020)

Daniel Oliveira

A abjeta morte de Valentina revira-nos as tripas, como qualquer crime sobre uma criança, que antes de todos temos de proteger. Ainda mais quando o forte suspeito é o próprio pai. E é por ser especialmente revoltante e nos entregar a uma incontrolável náusea, que os mais sensatos respiram fundo antes de gritar. Porque este é, naturalmente, um momento em que a emoção se impõe à razão. Felizmente, as leis são abstratas. Não são feitas para nenhum criminoso com nome, para nenhuma vítima com rosto. E são assim porque a diferença entre a justiça e a vingança não é a ausência de sentimentos, é a vontade que a razão se imponha às emoções. Sabemos que é isso que nos salva do caos e da arbitrariedade de que todos, justos e pecadores, acabamos por ser vítimas.

Só uma sociedade plenamente convicta dos valores que lhe ofereceram previsibilidade, segurança e liberdade pode resistir à revolta e não ceder a sistemas penais que a História mostrou serem menos eficazes na luta contra o crime. E que têm sobre os nossos a enorme desvantagem de levar o Estado a assemelhar-se ao criminoso.

Se eu pedir prisão perpétua para o pai da Valentina poucos se vão opor. Se eu pedir a pena de morte dirão que é melhor, porque se poupa dinheiro. Se eu pedir a tortura acharão excelente, porque é um monstro. Se eu pedir o apedrejamento público, a forca, o desmembramento... Tudo será aceite e sem limite, porque nada parece ser suficiente perante a suspeita de um pai matar a sua própria filha, sobretudo nas condições que se descrevem. Cuidam que vingam alguma coisa, mas apenas cedem à ignomínia, acompanhando-a. Não foi a compaixão pelo criminoso que nos fez escolher outro caminho. Foi a compaixão por nós mesmos. A de não nos querermos assemelhar aos piores entre os piores de nós.

Podemos debater tudo, incluindo a pena de prisão perpétua (eu não debato a pena de morte, porque não reconheço a nenhum Estado ou pessoa o direito de assassinar). Mas temos de estar capazes de o fazer com base em argumentos, não apenas na fúria. Todos por vezes aproveitamos a emoção do outro para fazer passar um argumento. É irresistível. O adversário está mais frágil e o público mais disponível para nos ouvir. Mas a diferença entre as pessoas decentes e as outras é sempre a fronteira das coisas. O momento em que, sabendo que usamos o outro como instrumento, não o conseguimos fazer com o assassinato de uma criança para tentar mudar uma lei penal. Porque há momentos que são para emoção, não para a razão.

Poderão pensar que neste texto estou a falar do abutre residente, que se insurgia contra o populismo penal quando não precisava de votos e agora usa-o sem limites. Mas não é o único caso nem o mais grave. A juíza Clara Sottomayor, que em boa hora abandonou o Tribunal Constitucional, para onde tinha sido indicada pelo Bloco de Esquerda, e Dulce Rocha, uma das mais assombrosas desilusões que tive em toda a minha vida cívica, acompanharam este aproveitamento. Confundido guarda conjunta com o debate em curso sobre o regime de residência, quiserem transformar todos os pais homens em suspeitos potenciais da mais abjeta das monstruosidades. Apesar de não precisarmos de muito esforço para nos lembrarmos que o filicídio não tem género.

Só que o tema não tem qualquer relação com este caso. Partindo das notícias conhecidas, a menina estava a viver transitoriamente com o seu pai por causa da pandemia, e não por qualquer decisão de um tribunal: “Valentina vivia com a mãe no Bombarral, mas encontrava-se a passar um período mais longo do que habitual com o pai, por não ter escola, encerrada desde meados de março para evitar a propagação da covid-19. ‘A mãe tinha de trabalhar’, desabafa João Silvestre [tio-avô de Valentina]”. A utilização deste caso para discutir qualquer regime jurídico ou decisão judicial sobre a regulação de responsabilidades parentais ou residência habitual é, com base nos dados conhecidos, um aproveitamento descarado para uma agenda que, sendo legítima, não tem aqui cabimento.

Mais grave: a juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça Clara Sottomayor não hesitou em especular publicamente sobre o caso, imaginando o que podia ou não podia ter acontecido, o que teria sido ou não decidido por um juiz, que queixas teriam ou não existido, em direto e ao sabor do que as televisões iam dizendo. Como se fosse uma transeunte. Nada a distingue, no julgamento sumário feito nas redes sociais e na utilização do alarme geral para proveito de agendas legislativas, de André Ventura. Até é mais grave, porque Clara Sottomayor ataca tudo o que deve defender: presunção de inocência e direito a um julgamento baseado em factos, não em conjecturas. Para além, claro, do seu dever de reserva.

Por fim, a CMTV. Instalada em Atouguia da Baleia, Peniche, montou o circo macabro com que costuma garantir negócio. Não faltou nada. Das perguntas idiotas a familiares próximos e distantes às "postas de pescada" de vizinhos sedentos do seu minuto de fama, acrescentando zero de informação ao tema. Num desses momentos, foi o próprio jornalista, sentindo que as audiências podiam estar a fraquejar, que perguntou a um senhor se não achava que devia existir, naquele caso, “justiça popular”, acicatando o povo para o crime. No mesmo sentido, foram visitar a página da madrasta, também suspeita, relatando os insultos deixados pelos corajosos de teclado. O negócio da CMTV é este mesmo: usar os cadáveres para entreter o público.

São abutres todos os que tratam a morte de uma criança como uma oportunidade eleitoral ou comercial. Mas os suspeitos estão presos e a justiça não será feita pela CMTV, pelos linchadores das redes sociais, por alcoviteiros sedentos do seu bocadinho de fama, por políticos para quem a morte é um momento de campanha ou por magistradas que fazem julgamentos em comentários de Facebook. Será feita por juízes a sério, em tribunais legítimos e usando a lei que impede a arbitrariedade e o caos. Tudo o que nos faz ser diferentes dos assassinos de Valentina. Como sempre, a civilização contra a barbárie. A justiça contra criminosos e linchadores, que sempre se assemelharam.

O relaxamento de Centeno

O relaxamento de Centeno

por estatuadesal

(Joaquim Vassalo Abreu, 14/05/2020)

Erros todos cometemos e muito mais num preciso momento em que o PM tem tantas coisas e preocupações na sua cabeça, tantas coisas a prever e tantas respostas a dar. E a grande verdade é que Costa, sempre omnipresente, o tem feito com todo o denodo e competência. É verdade mas…um lapso destes não podia acontecer, dê por onde der.

Podemos dizer que neste princípio de “distanciamento social”, o que preocupa Costa não é o Orçamento aprovado e que vinha sendo aplicado, e no qual já estava prevista a verba a injectar no Novo Banco, verba decorrente do acordo de venda à Lone Star e responsabilidade do Fundo de Resolução, mas sim o próximo Orçamento Suplementar, esse sim de muito difícil feitura e projecção.

Eduardo Galeano disse um dia que “A Memória é aquilo que torna o passado em presente”. E por isso, para não cometermos erros inúteis, temos que permanentemente a ela recorrer. E a memória mais recente, no que ao último Orçamento de Estado diz respeito e onde, como disse a referida verba vinha contemplada, é que tanto o BE como o PCP o aprovaram.

Eles leram, eles estudaram o seu conteúdo e debateram o mesmo tanto na generalidade como na especialidade. A minha memória não tem presente qualquer objecção a esse prudente “item”, pelo que me soa agora a aproveitamento político, que não ouso chamar de ilegítimo, o verberar do facto.

Mas recorrendo à minha memória: Em 15 de Novembro de 2019, há poucos meses portanto, revelava o Expresso que os acionistas do Novo Banco, Lone Star e Fundo de Resolução, já estavam a estudar a hipótese da antecipação da injecção do capital do Estado. Leia-se Fundo de Resolução, dos Bancos do Sistema, a quem o Estado antecipa fundos remíveis em trinta anos.

E no mesmo Expresso, em 29 de Fevereiro deste ano, estava a Pandemia a ser decretada, numa entrevista ao Presidente do Novo Banco, este informa que ia pedir mais 1.037 milhões de Euros ao Fundo de Resolução para colmatar falhas de capital decorrentes de prejuízos na actividade provocados por imparidades que o Banco não consegue suprir, sob pena de ver os seus rácios deteriorados e, por via disso, não poder continuar a sua actividade por falta de financiamento para a mesma.

De modo que eu pergunto: o BE, o PCP e os restantes Partidos que acerca desta importante questão nunca se pronunciaram, andavam distraídos? Já era coisa assumida e portanto agora não relevante? Sim, não fosse a Pandemia. E claro, quando todo esse dinheiro era mais preciso para tudo menos para injectar num Banco, novo mas sem futuro à vista…

Se eu estou contra este acordo de repartição e venda do Novo Banco? Estou e completamente! Se me sinto perplexo com as Auditorias até agora feitas de análise aos seus Activos e Créditos sobre Clientes? Aqui ainda muito mais, nomeadamente desde o início em que na separação entre Banco Bom e Mau, o Bom ficou com imenso Crédito duvidoso que deveria pertencer ao Mau. Mas, não sofrendo eu de injenuidade precoce,  já há muito era  para mim muito claro que isso obedeceu a uma estratégia de “chico espertice”: A de que, para vender, isto é largarmo-nos de problemas, era deixar para quem viesse a solução. O costume…

Se eu estou contra tudo isto? Estou completamente e de princípio, Mas…É que o problema advém de um pecando original deste “Sistema”: O de criar Bancos inimputaveis, Gestores inimputaveis, Administradores que internamente decidem sobre seus salários e prémios mas nunca são responsáveis pelos erros cometidos. Gente a quem nós confiamos, ou melhor somos obrigados a confiar as nossas poupanças, das quais fazem o que bem entendem e lhes convém, mas num desprezo total pelas suas consequências, que eles sabem nunca os irão atingir…

Mas este “Sistema” instituído por este Capitalismo sorvedor e egoísta, deve-nos levar a pensar, pois a ele estamos de pés e mãos presos: Quando um Banco está na eminência de entrar em falência (não possuir mais recursos nem suas fontes para fazer frente às obrigações), três coisas podem acontecer:

  1. Conseguir uma injecção de liquidez que permita a manutenção dos rácios de Capital e Solvabilidade necessários ao seu financiamento. Mas quem injecta dinheiro num Banco falido? Só um Estado possui essa possibilidade. Mas em nome e a troco de quê?
  2. O Banco ( mais o seu nome e marca) é vendido por  “tuta e meia” e quem o compra ficando apenas com a “operação” ( negócio), remete para o resto do “Sistema” ( que tem receio do risco sistemico), todos os riscos da sua “limpeza”. E tudo, mais uma vez, vai inevitavelmente recair sobre o Estado…
  3. A “ Nacionalização”! Mas aqui o BCE, a CE e tudo quanto seja Tribunal ou Regulação não a permitem nem apoiam, não só pelo precedente mas principalmente pela carga ideológica que encerra. Eles, no fundo, pretendem que isso seja feito mas sob outra capa. Como agora nas Companhias de Aviação, entendem?

A ausência de tudo isto seria a falência pura e dura. Mas quem seriam principais prejudicados numa falência assim: os depositantes! Os mais desprotegidos num caso destes pois apenas podem recorrer ao Fundo de Garantia de Depósitos ( até € 100 mil) mas, falando de recursos (depósitos) de 70 ou 80 mil milhões de euros nele existentes, para parca miséria serviria a sua  capitalização!

Finalmente: Era inevitável a injecção deste capital no Novo Banco e na precisa data em que foi feita. E não me venham com alegorias nem menções a Auditorias: tinha que ser feita e se Costa afirmou que não sabia ou esperava o final da Auditoria para antes dessa data, não deveria nunca ter dito o que disse no Parlamento.

Mas, tratando-se infelizmente de uma inevitabibidade, eu não deixo de realçar o facto político mas, quanto ao que todos os “Midia” falam, da crescente incompatibilidade entre Costa e Centeno, eu estou convicto que elas não têm por fundo a política ou economia nacionais, mas sim profundas divergências a propósito da Europa e do seu futuro.

Centeno, que fez tão grande trabalho e tão grande que todos devemos louvar, há muito que encena um “tabu”, um ‘tabu” feito de meias palavras, de incógnitas e indecisões, mantendo sempre um pé fora e um pé dentro, nunca evidenciando estar no seu cargo em pleno. Por isso e  porque um Ministro das Finanças nunca pode estar na sua imprescindível função sem ser em pleno, Centeno tem que optar: ou está ou não está!

E o seu “relaxamento”, por mais que eu o aprecie enquanto brilhante Ministro das Finanças, não colhe…E, por tudo isso, estou com COSTA!

A fase adulta da pandemia

Posted: 13 May 2020 03:18 AM PDT

«Já todos conhecíamos os riscos de um regresso a uma normalidade que nunca será normal. Por isso não vale a pena fingirmos que fomos apanhados desprevenidos.

Não será possível recuperar um pouco da vida que nos foi sequestrada sem que haja contactos, sem que haja proximidade. É essa a ameaça, sempre foi essa a ameaça. O distanciamento social não é uma bolha para onde entramos ao sair de casa de manhã e de onde saímos imaculados ao final do dia. Será inevitável estarmos próximos, ainda que não demasiado.

Esta é a fase adulta da pandemia. Em que, passado o susto e o confinamento musculado, terá de imperar o bom senso, o sentido cívico, a responsabilidade individual. A maturidade. Não queiramos prolongar esta "ditadura social" para além do necessário. Ninguém está a pedir libertinagem, mas, que diabo, precisamos de espaço, de uma perspetiva, uma frincha, um horizonte que nos devolva o equilíbrio (emocional, físico) perdido. E precisamos muito, mesmo muito, de um raio de luz económico que pulverize o rasto sombrio deixado pelo desemprego, pelo desespero, pela fome.

Nenhuma cartilha sanitária sobre comportamentos coletivos pode ter a pretensão de querer ser aplicada de forma cega. Jamais teria uma eficácia transversal. A realidade é moldada por milhões de pessoas irrepetíveis. Haverá excessos. O país é muito desigual na forma como se defende e, sobretudo, na forma como capta as mensagens. E porque podemos ter de voltar à casa de partida caso tudo corra mal, é fundamental não negligenciarmos os cuidados: com as máscaras, com a higienização das mãos, enfim, com aquilo que tem sido a nossa vida em 2020.

Das autoridades de saúde esperamos linhas orientadoras claras. Das autoridades policiais uma fiscalização proporcional, não demasiado branda, não excessivamente intrusiva. Dos portugueses, só podemos esperar que voltem a estar à altura nesta fase da batalha em que começamos a sair das trincheiras para lutar com as armas que temos. As únicas armas possíveis.»

Pedro Ivo Carvalho