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quinta-feira, 21 de maio de 2020

Índice do Citacionismo. Marcelo entre a tenaz de dois candidatos anti-sistema

por estatuadesal

(Vítor Matos, in Expresso Diário, 20/05/2020)

Quatro frases da semana: o fator Ana Gomes, a candidata que é um embaraço; César, o presidente de um estranho partido político que não quer discutir política; Costa, o primeiro-ministro que decretou o fim de uma crise cheia de buracos por explicar; e Ventura, o taberneiro da segunda República.


"Se a democracia não está suspensa no país, também não pode estar suspensa no PS. O PS não é o partido do dr. Costa".
Ana Gomes, militante do PS, dia 18 de maio, em declarações ao Expresso. 17 valores no índice agarraram o Marcelo, vou-me a eles.


O efeito foi exatamente o contrário. Se a intenção de António Costa com o número pró-Marcelo na Autoeuropa era (também) travar uma candidatura de Ana Gomes, o que fez foi incentivar a ex-eurodeputada e arranjar um sarilho no PS (já lá vamos à questão do congresso na citação seguinte). Para a diplomata - que já tinha dito ao Expresso que não avançava -, a indignação é um combustível e a entrada na corrida presidencial pode resultar tanto contra Costa como contra Marcelo.

Uma candidatura de Ana Gomes, que depois desta manifestação de disponibilidade pouca margem de recuo terá, vai ser um incómodo para o Presidente, uma maçada para o primeiro-ministro e uma dificuldade para André Ventura. Conhecendo a agenda da ex-eurodeputada, o professor Marcelo deve começar a preparar-se para temas como a entrada de Isabel dos Santos no BPI, o caso de Manuel Vicente e as relações com Angola, ou a não recondução da Procuradora-Geral da República e ainda Tancos. Veremos se Ana Gomes vai seguir os instintos ou moderá-los.

O facto de já ter classificado Marcelo com um "político do sistema" é todo um programa que permite agregar temas como aqueles: uma concorrência destas à esquerda vai colocar Marcelo sob um escrutínio que ainda não teve e não era Marisa Matias que o faria. Será uma dificuldade para Marcelo que precisa mais do que nunca de votos à sua esquerda.

Mas Ana Gomes, com a suas tentações populistas, que também tem, pode servir de antídoto ao populismo de André Ventura e assim, de certa forma, também pode servir de escudo ou almofada a Marcelo Rebelo de Sousa à direita. Atacar Ventura com os créditos de quem tem trabalho para mostrar na corrupção e no escrutínio da classe política (mesmo no seu partido) gera competição no mesmo terreno eleitoral e desarma o candidato que quer acabar com o regime. Resta saber como reagirá Marcelo entalado dentro desta tenaz de dois candidatos anti-sistema à direita e à esquerda: responderá, não responderá, será agressivo nos debates? É um paradoxo que, com tanta popularidade, esta eleição pareça mais difícil do que a anterior (embora acredite que ganhe à primeira volta).

Quanto a Costa, a crítica de que não se pode comportar como dono do PS, é uma pequena amostra do que está para vir: na pele de candidata transversal e de consciência do PS (papel que já foi de Alegre), não vai poupar o primeiro-ministro e o PS oficial, de Carlos César a Augusto Santos Silva. Será uma candidata livre e à solta a quem o PS não saberá o que fazer. Com um discurso mais suave e com um candidato oficial do PS tão popular como Soares, Manuel Alegre teve um milhão de votos em 2006.

Em cima disto tudo, a diplomata ainda cria um problema à esquerda, sobretudo ao Bloco: valerá a pena avançar com Marisa Matias? O dilema do BE será este: importa entrar na corrida e arriscar um resultado abaixo dos 10% - que será sempre visto como uma derrota -, ou deixar Ana Gomes ocupar toda a praça da esquerda (menos a do PCP)?

"[Um congresso] no último trimestre deste ano resultará em prejuízo quanto à participação e transformará o congresso num debate sobre presidenciais"
Carlos César, presidente do PS, dia 16 de maio, ao "Púbico". 17 valores no índice da minha política é o trabalho

A justificação com a pandemia ainda vá que não vá: era pausível e bastava. Agora, dizer que um congresso de um partido político fica contaminado pela discussão política sobre umas eleições que estão aí à porta, é rejeitar aquilo que justifica a existência e a essência dos próprios partidos políticos (e depois admirem-se dos populistas crescerem). Se um partido não deve pode ter um congresso para debater presidenciais porque não dá jeito, serve para quê? O PS não quer um congresso, quer um festival de cheerleaders a louvaminhar o chefe. Esta frase de Carlos César é a imagem estampada do incómodo de ter em Marcelo o candidato implícito ou explícito do Governo e a necessidade de retirar palco a Ana Gomes e a outras vozes críticas que possam aparecer neste contexto.

E Pedro Nuno Santos, o que pensa disto?

“Quanto à instabilidade… a estabilidade está restabelecida e tudo corre normalmente”.
António Costa, primeiro-ministro, dia 16 de maio, em conferência de imprensa. 16 valores no índice de acenar e sorrir

Nada, já não se passa nada. A instab... aliás, a estabilidade voltou, nada temei bom povo, continuamos firmes no leme e certos do rumo. É um alívio ter um primeiro-ministro assim, que abre e fecha crises como a porta de um frigorífico. Os chefes do Governo habituam-se a estas coisas de decretar sobre tudo e depois decretam o fim dos assuntos, não se fala mais disso.

Pelo menos reconheceu que havia instabilidade, mas a responsabilidade na maior parte do psicodrama foi sua: a) ainda não percebemos porque é que quis enterrar o ministro das Finanças em público e abrir uma crise política lui même com o presidente do Eurogrupo; b) ainda não percebemos porque é que quis fazer depender a injecção no Novo Banco daquela auditoria em particular, quando conhece o contrato e o Orçamento do Estado; c) que consequências estaria disposto a suportar se a transferência não tivesse sido feita naquela data? d) porque é que no comunicado final acabou por admitir todas as justificações de Mário Centeno?

O assunto foi encerrado, mas ainda há muito que explicar. Será que a auditoria nos vai trazer mais surpresas desagradáveis? Para já, o melhor é acenar e sorrir. Já passou... Qualquer dia, mais cedo que tarde, Centeno seguirá feliz para a próxima reencarnação. Mais tarde que cedo, saberemos o que motivou esta novela.

“Cabe-nos a nós deputados da nação portuguesa, representantes desse povo, a quem muitos aqui chamam tasca ou de taberna, cabe-nos a nós representar esse mesmo povo ou a tasca e a taberna será maior do que nós".
André Ventura, líder do Chega, num discurso no Parlamento. 19 valores no índice de tabernização parlamentar

"Oportunista", como à direita lhe chamou Francisco Mendes da Silva. "Abutre", como à esquerda classificou Daniel Oliveira. Aproveitar o homicídio de uma criança para desencaixotar a prisão perpétua, a pandemia para confinar os ciganos, ou mandar calar o Quaresma porque é um futebolista, é de uma vileza que o Correio da Manhã já percebeu: André Ventura é tóxico, provoca danos reputacionais, e já não tem mais palco na Cofina. Ajudaram a criá-lo e ele aí está.

A frase de cima foi tirada do discurso em que apresentou o seu "Projeto Valentina", uma indecência total perante a tragédia de uma inocente que não merece o nome apropriado para alimento político de um populista que quer acabar com o regime (e instaurar o quê?).

Cada vez mais apostado numa estratégia populista clássica - nós, o povo, contra eles, a elite que olha para o povo como frequentador de tabernas - André Ventura tenta fazer da representação parlamentar uma conversa de tasca. Faltam sete meses para as presidenciais e o homem está em esforço a reproduzir tudo em estilo 'casa de pasto'. Talvez o portugueses entretanto percebam melhor a natureza do que ali está. A responsabilidade de secar aquele discurso está sobretudo à direita, ou a própria direita deixará de ser alternativa.

Desconfinar o juízo à direita

Posted: 20 May 2020 03:17 AM PDT

«Os leitores mais jovens do PÚBLICO podem não acreditar, e de facto, olhando para 2020, ninguém diria, mas houve tempos em que a direita se esforçava por ser vista como não poeirenta. Quando cheguei aos blogues, as pessoas de direita tinham a azougada ambição de mostrar ao mundo que havia uma direita cosmopolita, que lia, viajava, escrevia, ia ao teatro e cinema, fugia a sete pés do salazarismo – juro!

A direita – entenda-se para estas linhas a parte mais à direita do PSD e tudo o resto até ao Chega –, por estes dias em que PS e Centeno lhe roubaram o único valor que permanecia (défice orçamental controlado), já não é a favor de nada. Só é contra. Furiosamente contra. Tudo o que tenha um leve aroma de posterior a 1959 é encarado com histeria e corridas para pôr os comprimidos da tensão arterial debaixo da língua.

A direita é contra as realidades perigosas que incomodam a vida à gente de manhã presa no trânsito ou nos transportes públicos, e que atrasam consultas no SNS: o marxismo cultural, o politicamente correto e a ideologia de género. São, como se sabe, as grandes causas da baixa produtividade nacional e dos baixos salários. Atormentam diariamente a vida das populações. Por isso a direita escolheu-os para as suas grandes causas. Fez muito bem. Temos de ver que são realidades abrangentes. Propor qualquer política que contrarie desigualdades e injustiças é politicamente correto. Promover a participação política de grupos tradicionalmente excluídos é politicamente correto. Já a ideologia de género, como se sabe, pretende transformar qualquer criança em gay e/ou transexual.

Falei no trânsito? A direita é contra o consenso científico das alterações climáticas. E contra facilitar a vida às populações e a mobilidade sustentável. Uma das medidas mais populares do Governo anterior – o embaratecimento dos passes sociais – desagradou à direita. (A Câmara de Cascais, do PSD, tem transportes intra concelhios gratuitos desde o início do ano. Grandes marxistas culturais.) O corajoso apoio de Assunção Cristas à primeira greve climática em frente à Assembleia da República (fotografou-se com o filho) foi vista como uma deriva esquerdista e prova (juntamente com a defesa das quotas) da desadequação para líder de direita.

A direita é contra o PREC. Já terminou há mais de quarenta anos, nem existe “geringonça”, mas os lados direitos imaginam-se resistindo de armas na mão a uma invasão comunista inexistente. Se à esquerda houve quem sempre fizesse render o peixe do Estado Novo, agora a direita que se preza não fica mais de uma semana sem referir o perigo do PREC. De resto, a direita vive em permanente estado de calamidade: é que estamos todos prestes, a minutos, de sermos engolidos pelo socialismo. No momento em que o debate internacional (presente até nos certamente marxistas The Economist ou Financial Times) anda à roda do capitalismo demasiado desregulado, gerando excessivas desigualdades, sobrepondo-se aos direitos humanos – há almas que vêem perigos no socialismo engavetado.

A minha preferida: a direita é contra o feminismo, invenção diabólica. Oh, o esforço que opinadores da direita fazem para mostrar o feminismo como o maior mal do mundo e promover o papel tradicional da mulher. Ensaios, crónicas, linhas compulsivas já foram escritas pelos ideólogos e opinadores à direita propondo dar cabo das perspetivas profissionais das mulheres para as obrigar a ir para casa produzir filhos (não, não foi Margaret Atwood em The Handmaid’s Tale), da liberdade ameaçada de uma mulher poder escolher ficar em casa tomando conta dos filhos (todos os dias existem manifestações pelas ruas contra essas escolhas – nas cabeças delirantes), de, claro, feminismo como expoente de marxismo cultural. Não são maluquinhos das redes sociais, são políticos e pessoas com acesso à comunicação social. De resto, temos três partidos claramente hostis a políticas que aumentem a representação feminina nos lugares de poder e decisão e a qualquer narrativa feminista: CDS, IL e Chega.

A direita é contra o ensino de História. Não só o episódio de Rui Tavares sobre a Exposição do Mundo Português no #EstudoEmCasa, mas também a nova disciplina de História, Culturas e Democracias para o 12.º ano. Li que era ideologia, lavagem cerebral e antipatriótica. Apesar de a disciplina conter no programa o PREC (esse mesmo), a Revolução Cultural Chinesa e os anos de Pol Pot como momentos traumáticos, ensinar História é definitivamente marxismo cultural.

Mas sou injusta. Há realidades de que a direita gosta. Gosta de negar que a extrema direita é extrema direita. O Vox (que tem elementos que protestaram pelas sentenças aos violadores do grupo La Manada vendo-as como torpedo à heterossexualidade e diktat das feministas) não é de extrema direita – asseverou Nuno Melo enquanto candidato ao Parlamento Europeu. Também há quem lave com detergente potente a imagem de André Ventura. Um candidato do PSD, cheio de vontade de perder votos, nas últimas primárias do partido admitia coligar-se com o dito. Nem refiro, por economia, a vergonha alheia que me toma quando vejo defesas, umas explícitas outras implícitas, de Trump e Bolsonaro.

Poderia continuar horas. A direita não adota estas guerras culturais sem objetivo. Está convencida de que por aqui vêm votos. Enquanto isso, a população, apesar de se entreter nas redes sociais a despejar ódio na tribo oposta, ocupa-se sobretudo com os ordenados ao fim do mês, o acesso à saúde e à educação, a mobilidade e os transportes, que planeta deixamos para os filhos, e gosta de concertos, festivais e até de teatro. Não quer que as filhas tenham as mesmas escassas oportunidades que as avós em 1950. Os mais novos têm como valores quase sagrados a preservação ambiental e questões de inclusão. As empresas desejam uma procura interna forte e estabilidade. Diria eu que os votos vão para quem dê soluções aos problemas em vez de se ocupar com diletantismos.

A estratégia de radicalizar a direita é tão bem-sucedida que anda, toda junta, por 35% das intenções de voto nas sondagens. A única pesquisa recente onde intenções de voto lhe deram mais, na globalidade, foi pelo crescimento no PSD – e Rui Rio sai destes esquemas todos. Donde, verifica-se, é uma estratégia ganhadora. A minha aposta é que a direita vá insistir nela.»

Maria João Marques

Rui Rio tem um pezinho a fugir para o Ventura

Curto

David Dinis

David Dinis

Director-adjunto

21 MAIO 2020

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"São sete mil milhões mil milhões em impostos sem que a justiça tenha tido a capacidade de julgar quem quer que seja"
"É o maior crime de colarinho branco cometido em Portugal"
"A forma eficaz como o Conselho de Administração tem conseguido sacar dinheiro ao Estado"
"Houve ou não calotes para receber mais dinheiro do Estado?"
"Eu quase que sei o que aconteceu [no Novo Banco]"

Ontem, no debate quinzenal, Rui Rio usou todos estes termos para relançar a discussão sobre o Novo Banco. O tema é quente, sabemos como agitou o Governo. Mas o líder do PSD fez menos para atacar o Executivo ou António Costa do que para pôr em causa o próprio banco e, até, a investigação judicial que está em curso. É um modo particular de fazer política para o principal partido da oposição.
Não é fácil classificar o método de Rui Rio. Um dia, apresenta-se como agente político de responsabilidade máxima, disposto a apoiar o Governo no combate à epidemia, travando até as críticas do próprio partido; no outro, o mesmo Rui Rio usa de todos os meios para criticar as instituições do país - sobretudo onde as sente mais frágeis oi impopulares.
A banca, sabemos, é uma delas. Na crítica de ontem, Rui Rio fez como nas conversas de café se faz: misturou dúvidas pertinentes com insinuações e julgamentos pré-concebidos. Para pôr em causa a célebre transferência de 850 milhões de euros, tão badalada na semana passada. Bastaram 30 segundos para que Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, pusesse em causa a base da sua argumentação: se era assim tão má (a transferência), por que é que o PSD não votou o projeto do Bloco que fazia depender todas as transferências para o Novo Banco da autorização do Parlamento? Rio já não tinha tempo para responder, mas é fácil antever a resposta (que não poderia dar): por que isso empurraria o Novo Banco para a sua segunda crise sistémica em seis anos, desta vez por responsabilidade dos políticos. O preço seria elevadíssimo, também para ele - como político e como contribuinte.
A Justiça, já sabemos, é outra instituição que Rui Rio nunca hesita em criticar. Sabendo que até hoje (quase seis anos depois da resolução do BES) não há ainda uma acusação, o líder do PSD também sabe quão complexa é a investigação. Assim como sabe (ou devia saber) que uma investigação é uma investigação e que, numa Democracia, ninguém é culpado antes dela -muito menos antes de ser julgado. A ouvi-lo, ninguém diria.
O líder do PSD não hesita em apontar o dedo à banca, nem à Justiça, assim como não hesita em atacar os media. Já os equiparou a "fábricas de calçado" quando criticou pela primeira vez o pacote de apoio que o Governo lhes destinou. Esta semana, porém, quando viu os números desses apoios, Rui Rio disparou mais um Tweet - aquela arma política que ficou colada à imagem de um outro político, do outro lado do Atlântico: “15 milhões de impostos para ajudar a pagar programas da manhã e o Big Brother”, disse ele. Não vale a pena explicar a Rui Rio que está a tomar a árvore pela floresta. Mas vale a pena registar a resposta de Nuno Artur Silva, secretário de Estado da Comunicação Social, nesta entrevista ao Expresso ontem: “Ele próprio foi a um programa da manhã”. O líder do PSD respondeu com outro tweet, noite fora: "Olha! Este acha que os sítios onde vou merecem subsídio público!". Eu não, só acho que Rui Rio brinca com coisas sérias.
Por isso, e como Rui Rio tem um pezinho a fugir para o Ventura, registo o que escreveu Thomas Jefferson em 1787, no momento fundador da Democracia americana:
"O povo é o único censor dos seus governantes. E até seus erros tendem a mantê-los dentro dos verdadeiros princípios de sua instituição. Punir esses erros com muita severidade seria suprimir a única salvaguarda da liberdade pública. A maneira de impedir essas interposições irregulares do povo é dar-lhes informações completas sobre os seus assuntos através dos jornais, e conseguir que esses jornais cheguem a toda a massa do povo. Sendo a opinião do povo a base do nosso governo, o primeiro objetivo deve ser manter esse direito; e se me fosse dado a decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria um momento em preferir o último. Mas com isto quero também dizer que todos os homens devem conseguir receber esses jornais e serem capazes de lê-los."
Eu, como escrevo aqui no Expresso e estou a escrever para si, acho que não preciso de acrescentar mais nada.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Uma auditoria "indispensável"

Posted: 19 May 2020 03:43 AM PDT

«Depois de, por duas vezes, ter garantido que não haveria uma nova injeção no Novo Banco sem antes conhecer a auditoria às suas contas, António Costa deu o dito por não dito.

O Governo sente-se agora confortável para continuar a alimentar o banco com dinheiro público, e dispensa saber pormenores sobre a forma como os créditos estão a ser geridos.

Para sustentar o volte-face, António Costa repetiu os argumentos que Mário Centeno tinha usado ao romper o compromisso do primeiro-ministro. Esse discurso assenta em vários equívocos:

1. Esta auditoria foca-se apenas na concessão inicial dos créditos pelo BES? A auditoria especial da Deloitte - anunciada na sequência do anúncio da injeção de 1147 milhões no Novo Banco em 2019 - visa analisar a concessão dos créditos, mas também a sua gestão e venda por esta administração, num período que vai de 2000 a 2018.

2. Esta é só mais uma de várias auditorias? Esta é a única auditoria que visa olhar para a gestão da carteira de créditos tóxicos que está na origem da garantia de 3900 milhões que o Estado deu ao comprador do Novo Banco. As outras auditorias que o Governo refere são a certificação legal das contas anuais; o relatório da Comissão de Acompanhamento; a análise do Fundo de Resolução, e a verificação da consultora Oliver Wyman. Nenhuma destas análises tem o âmbito ou o propósito da auditoria especial, e nenhuma garante que o Novo Banco não esteja a apressar o registo de perdas para aumentar a conta do Estado. A certificação legal, que acontece em todos os bancos, não visa analisar a utilização da garantia pública. Os poderes de verificação do Fundo de Resolução são limitados. Quanto à Comissão de Acompanhamento, falta-lhe um terceiro membro há mais de um ano. No Parlamento, o seu presidente remeteu a avaliação do valor dos créditos vendidos para a certificação de contas e para o próprio banco, e ainda acrescentou que há "casos [mediáticos] que um dia terão de ser tratados".

3. A transferência tinha de ser feita independentemente da auditoria? Os prazos que o Governo tem referido não são públicos e não podem ser verificados. O Orçamento do Estado continha um limite de despesa para o Fundo de Resolução, mas de forma nenhuma isso cria uma obrigação de prazos ou montantes a transferir (o Governo previa usar 600 e acabou a injetar 850). Além disso, o Governo tem o direito a desconfiar e exigir saber pelo que está a pagar.

Ficamos sem saber porque é que o primeiro-ministro se comprometeu perante o Parlamento a fazer uma coisa que, afinal, acha inútil. E porque é que entendeu que era necessário pedir a auditoria que agora dispensa conhecer atempadamente. Fez mal. A auditoria não era apenas útil, era "indispensável", tal como se lia no comunicado do Governo que a determinou, em março de 2019.»

Mariana Mortágua

Portugal precisa do Totoloto, mas não conta para o Totobola

por estatuadesal

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso Diário, 19/05/2020)

Pedro Santos Guerreiro

A Alemanha e a França vão quebrar o lacre que proibia dívidas conjuntas para subsídios a fundo perdido com esta dimensão. Porque a Itália é “grande de mais para falir”. Mas se pensa que 500 mil milhões de euros é dinheiro a rodos, faça as contas, porque não chega para combater a crise.


Merkel e Macron mostraram esta segunda-feira garrafas magnum sem dizer ainda se lá dentro está champanhe ou água. Um número é um número, 500 mil milhões de euros a fundo perdido impressiona, até porque é difícil apreender a escala real de números com tantos algarismos. O anúncio do pacote para a recuperação carece de muitos detalhes, mas comecemos pelo número. Parece grande? E é. Mas calcule a percentagem que cabe a Portugal e divida por sete anos. Dá menos de 1% do PIB anual.

O Governo está a esconder o pânico com os cenários económicos atrás do sorriso para projetar confiança. O maior sinal é ver o primeiro-ministro às compras na Baixa de Lisboa para as câmaras de televisão e o Presidente da República fotografado numa fila de supermercado. Nesses exemplos está uma súplica: depois do feche-se em casa, o abra-se a carteira. Gaste à francesa e, se necessário, viva afinal à sueca. Porque a destruição económica, as falências, o desemprego, as dívidas, a pobreza, a fome não se extinguem no segundo trimestre maldito: começam nele.

Os primeiros indicadores económicos não são os mais relevantes. Março trouxe uma recessão a pique (provavelmente próxima de 10% na segunda quinzena) e abril será uma tragédia de dois dígitos. Isso não surpreende. A depressão será funda como um poço até junho, mas o Governo já percebeu que a destruição não será um desamor de primavera, que se enterre na areia quando formos para a praia. O turismo, que aguentava o país, no terceiro trimestre estará de maré rasa. E mesmo com todas as ajudas ao lay-off, linhas de liquidez e moratórias de créditos e de impostos, o que os números ainda não registam os olhos já veem.

A recessão será pesada, os riscos financeiros estão ao virar da esquina, as filas de desemprego e dos apoios alimentares estão a abarrotar; e o Estado terá de continuar a gastar em apoios à economia e sobretudo em apoios sociais, não se sabe durante quanto tempo, mesmo se não houver segundas vagas. Não ficar tudo bem e ainda pode ficar tudo mal. Por isso, "gastem". Por isso, "SOS Europa".

Portugal não tem peso político na UE, precisa de um Totoloto mas não conta para o Totobola. Paradoxalmente, a nossa salvação está na Itália, que é "grande de mais para falir", da mesma maneira que dizíamos dos grandes bancos quer eram "too big to fail". Trata-se de uma das maiores economias da Europa e tem uma das maiores dívidas públicas do mundo. Estás de rastos com a pandemia, que tudo agravou. Não salvar a Itália é agendar uma crise de dívidas soberanas no sul da Europa, no coração da UEM e na cabeça da UE. E se ajudas houver para Itália (como para Espanha), para outros países haverá. Incluindo Portugal.

Daí que o anúncio esta segunda-feira feito por Merkel e Macron avance até onde a UE nunca avançou, sobretudo por causa de Itália mas também de Espanha. Falta conhecer detalhes e a articulação com outros planos já anunciados (incluindo o programa SURE e o papel do BCE), mas já parece possível dizer o que de melhor e de pior se prepara.

A proposta de Merkel e Macron passa pela criação de um pacote de 500 mil milhões de euros, em dívida conjunta da UE e paga mais tarde pela UE, dinheiro que será distribuído a fundo perdido pelos Estados-membros, supostamente em proporção das suas contribuições para o orçamento comunitário, que por sua vez crescerá com a cobrança de novos impostos, designadamente de negócios digitais.

O modelo parece correto. Isso é o melhor deste plano: contemplar não apenas dinheiro a fundo perdido, "pedido" por todos em conjunto e "pago" por todos em conjunto, mas também um aumento do orçamento comunitário. A Europa perderá a virgindade nos financiamentos conjuntos desta monta. E como o que custa sempre é quebrar o tabu, depois será mais fácil aprofundar este tipo de mecanismos.

O pior do plano é que é pouco dinheiro. Sim, pouco. Veja o caso português: se for à proporção das contribuições para o orçamento comunitário, mesmo que Portugal receba 2%, serão dez mil milhões de euros. Ao longo de sete anos (2021-2027), o que dá uma média (que provavelmente será distribuída com mais dinheiro no principio do que no fim) de 1,4 mil milhões de euros por ano. É menos de 1% do PIB. 140 euros por português por ano. Não, não é muito. Para o que precisamos, não é muito.

Os subsídios deveriam ter em conta não apenas a proporção no orçamento mas também o impacto da pandemia e o ponto de partida da dívida pública de cada país. Se assim não for, Alemanha, França, Itália e Espanha (quatro países) receberão quase dois terços dos 500 mil milhões, dividindo-se o pouco mais de um terço final pelos outros 23 países, entre os quais Portugal.

Falta saber mais para fechar conclusões, incluindo as decisões finais do Conselho Europeu daqui a poucas semanas. Este anúncio prévio de programa de recuperação significa que se está a preparar terreno político, comunicação com as opiniões públicas e tranquilização dos mercados, que estão de dedo nervoso no gatilho. A dimensão, repartição e contrapartidas nunca serão politicamente fáceis, até porque as instituições europeias não pensam todas da mesma maneira, e repito que as medidas desbravam os muros que eram invioláveis. Mas não se encandeie com a grandeza do número. Para que tudo não se resuma a um "toma lá 140 euros e não digas que vais daqui". Para que o "a fundo perdido" não se seja na verdade um fundo perdido.