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quinta-feira, 4 de junho de 2020

O Momento Chernobyl de Trump e Bolsonaro?

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 02/06/2020)

Pode ser que Trump e Bolsonaro resistam, se conseguirem acumular a violência suficiente para submeterem os seus países. Não deixam de ser o que são, gente cuja mesquinhez não hesita perante a traição ao seu povo.


Não foi o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, que derrubou o regime soviético, que se viria a desagregar irreversivelmente com a queda do Muro, em 1989, e com o golpe militar, em 1991. O poder de Gorbachov, que já representava uma transição, fracassou cinco anos depois, no fim de um longo processo em que foi corroído por contradições internas, pelo esgotamento económico e pelo desgaste social, acentuado pela derrota na guerra do Afeganistão. O acidente foi somente um choque que se sobrepôs a essa exaustão. Mas, por isso, foi também um momento trágico que revelou a fragilidade do Kremlin, sobretudo pela tentativa de ocultação, pela revelação da impotência e pela impopularidade que multiplicou. O tempo de Chernobyl foi a mentira e a revelação da mentira e, com isso, o início do fim de uma era.

A pandemia pode ser o Momento Chernobyl da extrema-direita no poder em países poderosos, como os Estados Unidos ou o Brasil. O caso com maiores implicações internacionais será o de Trump que, nas suas deambulações justificativas e na verve desculpatória, revela uma obsessão pelo interesse económico de curto prazo contra a proteção das vidas. E aí entra o efeito Chernobyl: ele precisa de ocultar o desprezo pela população e, sobretudo, a sua calculista impotência perante a doença.

Ora, como estamos nas vésperas da eleição presidencial e as escolhas de Trump são sobredeterminadas pela campanha, sendo este efeito Chernobyl a maior ameaça à sua recondução, todas as suas estratégias assentarão paradoxalmente em multiplicar a chernobylização da política. Para ocultar a ocultação, ele só tem um instrumento poderoso, a poluição política. Nesse sentido, o Presidente soterra o espaço comunicacional com guerras sucessivas, primeiro contra a China, depois contra os médicos, a seguir contra os governadores democratas, depois contra o Twitter, agora contra os protestos antirracistas. A informação pública vive assim em modo de sobressalto, provocado pela técnica angustiante que mobiliza o pânico em modo contínuo. É esta a batuta da sociedade do medo. Ou seja, Trump quer radioativar-se para sobreviver ao seu Chernobyl e, por isso, se esta analogia ilustra o perigo, não contará necessariamente a conclusão da história, sendo que a extrema-direita quer sair mais forte da pandemia aterrorizando a sociedade e impondo o autoritarismo como o novo normal.

Bolsonaro repete a estratégia mas em registo de milícia carioca, como não podia deixar de ser. É a família e os seus negócios que estão em causa e entende que tudo se conjuga numa conspiração universal para revelar os seus podres. Nesse confronto, resta ao Presidente recuperar a tradição do mandonismo das elites brasileiras e de um coronelismo que parecia exilado em telenovelas de cordel, mas a coligação que o suporta, de empresários que esperam as privatizações do petróleo a deputados interesseiros e a neopentecostais iluminados, começa a fraquejar. Mais uma vez, é o efeito Chernobyl: ele ignora ou esconde o perigo, promovendo a irresponsabilidade sanitária com a desenvoltura de um garoto que fuma o primeiro cigarro, e esse impudor tem um custo reputacional.

Uma revista médica de referência, "The Lancet", publicou este 9 de maio um editorial defendendo uma política de saúde pública no Brasil contra as investidas do Presidente: “Ele deve mudar drasticamente a orientação ou ser o próximo a demitir-se.” O médico e editor da "Lancet", Richard Horton, explicou à "Folha de São Paulo" porque critica tão duramente a estratégia Chernobyl do Presidente: “A política criada por Bolsonaro pode ser chamada uma guerra contra a ciência, e ela colocou o Brasil numa situação de grande risco. O país está certamente mais fraco e vulnerável por conta disso. Em vinte anos da "Lancet", acompanhámos o desenvolvimento da ciência no Brasil como um dos grandes sucessos do país, com polos internacionais de excelência. Os cientistas brasileiros são líderes globais em muitos domínios, e esse é um recurso poderoso no qual um país deve apoiar-se para o bem da sua população. E é nada menos que uma tragédia que o Governo não reconheça, abrace e apoie essa comunidade. É por isso que chamo ao comportamento de Bolsonaro uma traição ao seu povo. E isso é imperdoável.”

A palavra não é excessiva. Este Chernobyl, como o anterior, chega-nos pelos caminhos do acidente, mas a resposta tornou-se uma traição. Pode ser que Trump e Bolsonaro resistam, se conseguirem acumular a violência suficiente para submeterem os seus países. Não deixam de ser o que são, gente cuja mesquinhez não hesita perante a traição ao seu povo.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Trump não é responsável pelo caos. Trump é o caos

rump não é responsável pelo caos. Trump é o caos

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/06/2020)

Daniel Oliveira

É evidente que nada do que está a acontecer nos Estados Unidos é obra de Trump. Não é por causa de Trump que os EUA são uma panela de pressão, sempre à beira de rebentar numa orgia de violência. Não foi Donald Trump que escreveu uma história marcada pela escravatura, que se prolongou na restrição de direitos cívicos até meados do século passado e foi subsistida por uma política penal que criminaliza a comunidade negra. Não foi Donald Trump que criou a ideia de que a melhor forma de uma sociedade se defender é deixar que todos tenham armas, transformando o trabalho das forças de segurança uma caminhada pelo fio da navalha.

Também não foi Donald Trump que fez dos EUA um dos países mais desiguais do mundo desenvolvido. E onde essa desigualdade, contrariando o mito da mobilidade social, é incrivelmente persistente e hereditária. O sonho americano é na Suécia, não é seguramente nos EUA, ouvi uma vez alguém dizer. Não foi Donald Trump que decidiu que uma tragédia como esta pandemia se tem de viver sem serviço nacional de saúde público, gratuito e universal, sem proteção no desemprego, sem os mínimos de segurança. Não foi por causa de Donald Trump que se abriram valas comuns em Nova Iorque. Não foi por causa de Donald Trump que se fizeram filas para a compra de armas. Não foi Donald Trump que criou brutais bolsas de miséria que transformam boas partes dos Estados Unidos em países de terceiro mundo. Não foi Donald Trump que criou a cultura de violência que domina a vida social, cultural e política dos EUA. Em resumo: Trump não é a causa do que vemos, é a consequência.

Tenho um fascínio por tudo o que é dinâmico, contraditório e brutal nos EUA. Não partilho a arrogância europeia para com o novo mundo. Pelo contrário, acho o estilo afetado, aristocrata e altivo dos europeus profundamente maçador. Entusiasma-me bem mais o pioneiro, o emigrante e o refugiado do que colono saudoso do império perdido. Mas sei o que sabemos todos: que enquanto não enfrentarem a sua pornográfica desigualdade os EUA estão condenados ao motim cíclico. E que, em tudo isto, a questão racial é constitutiva da desigualdade estrutural que os domina. Tão profunda que é estranho que haja quem tenha acreditado que a eleição de um presidente negro anunciava uma América pós-racial.

Se não foi Trump que fez nada disto, porque se fala tanto de Trump? Porque Trump explorou o ódio racial para se fazer eleger. Porque deu todos os sinais de impunidade para que a violência policial e o racismo se sentissem livres. Porque se alimentou e se alimenta da violência social e cultural, da incomunicabilidade, da desumanização do outro. Porque mesmo com o país a ferro e fogo, é isso que continua a fazer. Trump vive do conflito. E não do conflito revolucionário, com projeto ou construtivo, de onde nascem sínteses que mudam as sociedades para melhor ou para pior. De um conflito regressivo, que bloqueia qualquer solução.

Trump não colocou os Estados Unidos no beco sem saída em que parecem estar. Trump é o beco sem saída. É a consequência de uma democracia que não se regenerou e não respondeu à injustiça. E escusam os que procuram uma desculpa para o voto irresponsável vir dizer que é um grito de revolta. Esse grito está do lado dos que o combatem. Ele precisa deste beco sem saída porque o impasse é tudo o que tem para oferecer.

Trump não é responsável pelo pé no pescoço de George Floyd. Trump é o pé no pescoço de George Floyd. Cada palavra sua sufoca a América no ódio que sempre lá esteve. Trump não é responsável pelo motim. Trump depende do motim. Porque ele vive do caos. Só no meio do desespero e do ódio as coisas que ele diz podem ser ditas. Só no meio do caos ele pode existir sem ser aberrante.

A procissão europeia ainda vai no adro

Posted: 02 Jun 2020 03:51 AM PDT

«Desta vez a União Europeia não pode seguir a sua própria doutrina nem aplicar as receitas que criou. As regras europeias - da proibição aos estados de investir em empresas nacionais aos múltiplos constrangimentos orçamentais - afundariam a Europa e por isso foram suspensas.

A perspetiva de uma derrocada descontrolada das economias italiana e espanhola parece mesmo ter conseguido arrancar uma proposta à Comissão Europeia e as notícias multiplicam os biliões que a Europa irá entregar "sem condicionalidade", ou seja, sem austeridade. Mas será mesmo assim?

Quase metade dos 2,4 biliões (milhões de milhões) anunciados para salvar a Europa, já eram os fundos previstos no Quadro Financeiro de Apoio negociado após o Brexit e que, por sinal, penalizava bastante Portugal. Depois, há 540 mil milhões que vêm do pacote apresentado pelo Eurogrupo: são duas linhas de empréstimos, ou seja, mais dívida, sendo que uma delas foi até rejeitada pelo Estado português.

Temos, finalmente, os 750 mil milhões apresentados como "Nova Geração UE". Desses, 250 mil milhões são mais dívida e 60 mil milhões são garantias. Sobram os 440 mil milhões que interessa, porque são a fundo perdido. Parece muito mas representa, para toda a UE, metade do que a Alemanha anunciou para investir na sua economia. O plano é que a UE emita dívida própria no valor dos apoios a fundo perdido, dívida que depois será paga com impostos a lançar a nível europeu. Mas não sabemos se haverá consenso para isso. E se não houver? Nesse caso, segundo a presidente da Comissão, esse valor será cortado dos orçamentos europeus futuros, ou seja, é como se fosse dívida dos países.

De resto, duas outras dúvidas assombram este plano. O financiamento obrigará à negociação de um pacote de medidas com Bruxelas. Quais? Não sabemos. Por outro lado, este programa não impedirá o aumento generalizado das dívidas públicas. E quando a suspensão acabar, sabemos o que dizem as regras: dívida é austeridade.

Devemos então simplesmente confiar no instinto de sobrevivência do establishment europeu e da sua poderosa burocracia? Sabemos como a austeridade é um alicerce bem enterrado na estrutura ideológica de Bruxelas. E isto sem falar nos outros governos, alguns da família socialista europeia, como o da Suécia e da Dinamarca, que não farão a vida fácil aos "preguiçosos do Sul".

Sim, face ao currículo vergonhoso da UE, o programa é inédito. Mas isso não faz dele um bom programa. A verdade é que a procissão ainda vai no adro e não sabemos para onde levará. Fizeram bem, por isso, os governos italiano e espanhol que não desistem de lutar por melhores condições e mais garantias. Fez mal António Costa em declarar já que a proposta "está à altura do desafio que a Europa enfrenta".»

Mariana Mortágua

terça-feira, 2 de junho de 2020

Cântico de Zacarias

por estatuadesal

(César Príncipe, in Resistir, 01/06/2020)

Bendigamos

As bobinas de papel higiénico. Restarão para a posteridade como metáfora do açambarcamento-confinamento no brotar da Pandemia-19. As populações urbanas interiorizaram que o desfecho seria dirimido entre Sanitas & ETAR`S. As populações rurais sempre dispuseram de uma folha de couve nas hortas de subsistência. Haverá que apurar a fonte do pânico e quais os interesses ocultos das corporações ou se apenas emergiu no contexto de um rumor relacionado com o inimigo invisível (embora o mundo esteja prenhe de agentes excre(mentais) tão ou mais tenebrosos que ele, o mundo, o que não enxerga Trumps & Bolsonaros). Uma interrogação decorre desta corrida consumista. Ao que parece, perdida a Fé nos Homens, em vez de fazer cumprir o disposto no Novo Testamento, o Criador envenenou os criados com as próprias fezes. O Apocalipse acaba de ser reescrito em Rolos W.C. por João de Patmos. O apóstolo catastrofista.

Bendigamos

A Clausura da Salvação Nacional. O Estado voltou a desempenhar a função de tratador de pandemias & salvador de economias & estabilizador de psicologias. Para tal, accionou as sinetas das comunidades monásticas, fazendo recolher as ovelhas aos apriscos. Aplanada a curva, estão a espaçar os toques das cercas, quarentenas, clausuras e das campainhas dos gafados. Enaltecido seja o Estado, diabolizado pelos Donos Disto Tudo e pela chamada classe média ou remediada, mais uma vez abruptamente proletarizada, apostada em escapar entre as gotículas infeciosas e insidiosas. Já se vê: o povo é quem menos ordena.

Bendigamos

As Irmãs Descalças do Correio da Manhã & do Jornal de Notícias. Sem elas, as eternas esquecidas, as madrinhas de guerra do Covid-10, agravar-se-ia o DUCI/Défice de Unidades de Cuidados Intensivos. As Irmãs da Consolação são credoras de palmas e ramos de flores. Constituem a última reserva moral do patronato: mantiveram os postos de trabalho no Estado de Emergência e no Estado de Calamidade e nenhuma recorreu ao Lay-Off. Elas, as Irmãs, não desertaram nas horas que reclamavam espírito de missão, entrega, endurance, resiliência, patriotismo. Elas são dignas de um Ministério da Segurança Sexual.

Bendigamos

O sexo feminino em geral. Ao contrário dos holandeses que nos moveram guerra para saquear as Terras de Santa Cruz (1595-1663) e ainda hoje se admiram por tanto apreciarmos mulheres multicolor e copos de boa cepa enquanto eles (frugais e repugnantes) se deleitam com tetas de vaca turina e emborcam cerveja de hooligans. Bárbaros do Norte. Que mais dizer?

Bendigamos

O Novo Banco & o Pingo Doce & o Continente. Símbolos da sociedade da abundância. No desenlace viral, prontamente acudiram às necessidades derivadas da peste e desveladamente têm disponibilizado máscaras, luvas e gel. E além dos equipamentos de protecção individual, asseguram com mão firme e pródiga o abastecimento alimentar de 10 milhões de gentios e dos vindouros 20 milhões de forasteiros, contribuindo para a Pax da República, que sabiamente gere as filas da fome e do desemprego e dos recibos verdes e da mão-de-obra nepalesa.

No entanto, o optimismo (desconfiado e desconfinado) está de volta: as praias estão animadíssimas e contam com as selfies do Presidente de Todos os Veraneantes e Fátima reabre a Tenda dos Milagres e Cascais promove missas campais para as Tias da Linha e até as Feiras de Espinho e de Ponte de Lima recuperam o bulício e o regateio e os ciganos do Chega e a Empresa-Bandeira Autoeuropa já pode reconvocar os 6.000 trabalhadores e os passageiros já podem viajar à pinha nos aviões da TAP e demais companhias mais ou menos insolventes e até já se admite a Multitudinária Noitada Sanjoanina Portuense & etc. etc. etc.

Quase tudo no Novo Normal. Tudo. Tudo. Tudo. Tudo. Tudo. Tudo. Tudo.

Que pena a Festa do Avante! ter sido proibida pela Inquisição Multimédia.

Nem sequer tiveram pa(ciência) ou escrúpulo para esperar uns três meses.

Fujam! Fujam! Um tsunami coronário varrerá o Planeta a partir da Atalaia!

Fujam! Fujam do 25 de Abril & do 1º de Maio & do 4 & 5 & 6 de Setembro!

Benedictus ou Cântico de Zacarias. Prece de agradecimento do profeta pelo nascimento de João Baptista, seu filho.

Confinado ou desconfinado, o pobre lixa-se sempre

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 01/06/2020)

Daniel Oliveira

Não é possível, sem o trabalho de sociólogos, comparar o aumento da covid-19 com a condição social dos infetados. Mas desde o início de maio que sabemos, por trabalhos da Escola Nacional de Saúde Pública, que os concelhos com maiores taxas de desemprego e maiores desigualdades de rendimento eram os que tinham mais casos de covid-19. Olhando para o que está a acontecer em Lisboa, percebemos que são os mais pobres que estão a sofrer mais com o desconfinamento.

Os concelhos que registam maiores aumentos na região de Lisboa e Vale do Tejo foram Loures, Barreiro, Amadora, Moita, Seixal e Montijo. E não é por acaso que esta é a região mais massacrada. A caricatura irritantemente instalada de uma região privilegiada trata-a como uniforme. Só que Lisboa sofre o preço alto do centralismo, com periferias onde se concentra pobreza, precariedade e desigualdade, sobretudo entre os trabalhadores.

Os surtos na plataforma logística da Azambuja e no bairro degradado da Jamaica – é interessante a abissal diferença de comportamento das autoridades nas duas situações – mostram como há um país que esteve sempre em risco e que, com a pressão do regresso generalizado ao trabalho, levou a primeira pancada. Parece que os centros comerciais vão manter-se fechados.

Não contesto, mas não deixo de achar graça que os momentos de lazer, e não as condições de trabalho e de transporte, sejam a única preocupação que sobra com os pobres. Assim como não deixa de ser revoltante haver quem julgue pessoas que vivem em barracas por não ficarem fechadas em “casa” ou ouvir a ministra da Saúde a responsabilizar os trabalhadores da plataforma logística pelo contágio.

Defendi o urgente regresso das atividades económicas porque também foram os mais pobres quem mais sofreu com o confinamento. O tal estudo do início de maio dizia-nos que um quarto das pessoas que ganham 650 euros mensais perdeu a totalidade do rendimento e isso só aconteceu a 6% dos que ganham mais de 2500 euros. Ao fim de um mês penso que a situação será muito mais dramática. E não é só o rendimento. São as crianças afastadas da escola e sem acesso a computadores e Internet ou casas sem condições para lá permanecer durante quase dois meses.

O confinamento foi uma tragédia para os mais pobres, por causa da economia; o desconfinamento está a ser uma tragédia para os mais pobres, por causa do vírus.

É por isso que tenho recusado o absurdo combate de trincheiras que opõe “desconfinadores” e “confinadores”, corajosos e responsáveis. De um lado e do outro, ouvi absurdas certezas científicas sobre um vírus de que tão pouco se sabia. De um lado e do outro, se falou em nome dos pobres massacrados pelo desemprego ou pela pandemia. Defender a ponderação dos dois fatores sempre foi o menos sexy. Nunca garantirá a ninguém o estatuto de visionário, que percebeu a verdade antes de todos os outros. Mas parece-me que foi e continua a ser a única posição intelectualmente séria.

Quanto à pobreza, a questão é tragicamente mais simples. E resume-se assim: os pobres lixam-se sempre. Lixam-se confinados, lixam-se desconfinados. E é por isso que o problema não é o vírus inesperado ou o desconfinamento inevitável. O problema é a desigualdade. E essa não tem nada de inevitável.

Se houver um terramoto quem se lixa mais são os mais pobres. E quando chega a reconstrução são os mais pobres que são expulsos da nova cidade. Numa sociedade desigual, a catástrofe lixa o mais pobre tanto como o lixa a solução. Porque o problema nunca é a tragédia que bate no pobre, é a pobreza que lhe tira todas as defesas para lidar com essa tragédia.

É por isso que defendo, desde o primeiro dia, que o critério do confinamento e do desconfinamento tinha de ser sanitário e social. E que enquanto continuarmos a ser uma das sociedades mais desiguais da Europa não seremos exemplo de nada. O que corra bem deixará sempre de fora demasiada gente. Os outros, o país que se trama, são os moradores do Bairro da Jamaica ou os trabalhadores da Plataforma Logística da Azambuja. E, para tornar tudo um pouco mais chocante, uns e outros ainda são apontados como responsáveis pelo seu próprio infortúnio.