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segunda-feira, 8 de junho de 2020

Quem salva as democracias?

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 05/06/2020)

Como se as catástrofes naturais, a explosão demográfica e as agressões ambientais não bastassem para enegrecer o futuro e infernizar o presente, chegaram à chefia dos países mais poderosos do mundo uma série de dirigentes perigosos, nacionalistas, autoritários e belicistas.A China e Rússia, onde a democracia liberal é desconhecida, têm líderes autoritários.

Os EUA, Brasil, Índia e Filipinas, em eleições formalmente livres, não lograram melhores líderes. As teocracias do Médio Oriente são o que se sabe. Benjamin Netanyahu, Israel, é um perigo global e Mohammad bin Salman, Arábia Saudita, assassino de longo curso.

Quando julgávamos que a impreparação, a truculência e a inanidade seriam punidas nas urnas, eis que surgem, legitimados pelo voto, o mitómano agressivo e belicista Trump, o delinquente imbecil e demente Bolsonaro, o grotesco assassino Duterte e o nacionalista belicoso Narendra Modi.Da Hungria à Turquia, da Polónia à Sérvia, da Chéquia à Albânia, na Europa Central e do Leste, sob o pretexto da luta contra o coronavírus, aumentam os países autoritários e são cada vez mais repressivos.

Os regimes despóticos aumentam em número e ampliam a repressão dentro de cada país. Os ataques à liberdade de imprensa, a neutralização das oposições, a desvalorização dos parlamentos e a captura do poder judicial são instrumentos dos novos líderes, que usam o nacionalismo, a xenofobia e o medo para se perpetuarem no poder.

A corrupção é uma arma usada contra a democracia, o único sistema em que é possível denunciá-la, sem qualquer prova de que essa lepra, que corrói o poder, seja mais intensa e frequente nos regimes democráticos do que nas ditaduras.A insegurança e o medo são inimigos da democracia e a retórica dos líderes autoritários vive da sua exploração.

Ao ambiente que, no século passado, criou as condições para os regimes ditatoriais, junta-se agora uma pandemia para facilitar a vitória dos demagogos, que prometem ordem e segurança em troca do silêncio e da submissão.As novas tecnologias, que permitiram democratizar a informação, cedo foram usadas por quem detinha a capacidade de as capturar ao serviço dos poderes autoritários que proliferam.

Não há uma opinião pública esclarecida, participativa e empenhada, na defesa da nossa civilização, onde a liberdade e a defesa dos direitos humanos gozem generalizado apoio. À medida que as consciências adormecem, o medo nos tolhe e o desânimo se instala, esmorece a vigilância cívica e ficamos mais expostos a ser vigiados e oprimidos por biltres que vão assaltando o poder.

domingo, 7 de junho de 2020

Big brother

Posted: 06 Jun 2020 03:37 AM PDT

«A crise pandémica que vivemos acelerou a corrida tecnológica no mundo ocidental. Inúmeros estudos apontam para as mudanças que ocorreram nas relações laborais e sociais num curto espaço de tempo. É inegável que as sociedades foram "obrigadas" a adaptar-se, mas também é verdade que todas as implicações decorrentes dessa adaptação devem ser cuidadosamente analisadas, em particular no que respeita aos impactos para o trabalho.

Esse é um debate que está por fazer para além das evidências e é fundamental que seja feito. Há, no entanto, uma área tecnológica que tem sido protagonista e cujas implicações estão muito além das promessas vendidas. Refiro-me às chamadas aplicações de rastreio. Governos, um pouco por todo o mundo, acenam com a solução tecnológica para controlar os contágios por coronavírus, mas será mesmo assim?

As aplicações de rastreio têm sido apresentadas por vários governos como uma espécie de magia: com a sua introdução consolida-se a perceção de que se está a fazer alguma coisa, mesmo que não seja o caso. Nesta conceção de "solucionismo tecnológico" esbate-se o debate sobre as reais medidas de combate ao vírus, como sejam o alargamento dos testes à população, a necessidade de melhorar as condições de prestação de cuidados de saúde ou a necessidade de contratação de mais profissionais de saúde. Um exemplo claro dos problemas associados ao recurso às aplicações é o que se passa nos Estados Unidos, onde a aceitação de partilha de dados vem com o prémio de se ter vantagem nos tratamentos médicos.

Mas há muitos mais problemas escondidos pelo véu da urgência. Especialistas de vários quadrantes apelam aos riscos associados a estas tecnologias. Vigilância em massa, numa espécie de big brother em versão sanitária, violação da legislação da proteção de dados, violação de direitos humanos, abusos de entidades patronais sobre os seus trabalhadores, confidencialidade dos dados não relacionados com o rastreio da doença, apropriação de dados pessoais por empresas do setor privado e as utilizações abusivas para favorecer o negócio, o reforço dos poderes dados às grandes plataformas como a Google e a Apple são apenas alguns dos problemas já mencionados.

Acresce ainda o dado que nos chega dos países que já têm aplicações em funcionamento, que é o da sobreconfiança dos utilizadores. Dados mostram que nestes países, como é o caso da Coreia do Sul, a descarga da aplicação traduziu-se num incumprimento das normas de segurança, uma vez que os utilizadores passaram a ter uma perceção errada de proteção.

Numa altura em a maioria dos países da União Europeia, incluindo Portugal, estão envolvidos no desenvolvimento destas aplicações, não é ainda tarde para recuar. Parece cada vez mais evidente que não só não são necessárias como não substituem as reais respostas à crise pandémica. Abrir esta porta é como abrir a caixa de Pandora. Daqui não virá nada de bom.»

Marisa Matias

Deixar a bonacheirice de vez

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 06/06/2020)

Clara Ferreira Alves

Em Portugal, nação valente e imortal, morre-se clandestinamente. O Presidente e o primeiro-ministro andam por aí em concertos, almoços e praias como se nada se tivesse passado, no torvelinho de regras de desconfinamento que obedecem a conveniências económicas e a contraditórias indicações da nova autoridade sobre as nossas vidas, a DGS. Posso ir ao Campo Pequeno, não posso ir à praia nem ao ginásio. Para as vítimas de covid, nem uma palavra pública e sonante.

Nem um ramo de flores. Como sempre, envergonhado, horrorizado pela sua condição de pobreza ou de doença, ou das duas, o país fez de conta que nada se tinha passado. Há enterros de covid clandestinos, morreu de quê, ninguém sabe, e pessoas que estiveram doentes e fingem que nunca estiveram doentes. Psicologicamente, os danos permanecem invisíveis e confinados, dentro das famílias. O atavismo faz de nós sobreviventes medrosos e clandestinos. Ninguém conhece ninguém que tenha morrido de covid, não vá dar-se o caso de sermos confundidos com putativos portadores do vírus. Teve uma pneumonia, não era covid, era outra coisa. Em Portugal, tudo é sempre outra coisa.

Ao contrário de países onde os mortos tiveram um rosto e um nome, aqui tornaram-se o que só acontece aos outros. Uma psicóloga veio dizer que era melhor assim, para não traumatizar. Os ricos têm horror de dizer que apanharam, exceto se tiver sido “na neve”, chique, e os pobres têm horror de perder qualquer coisinha. Incluindo o emprego ou o subsídio. Quanto aos trabalhadores da saúde, não sabemos quem teve e não teve. Nem quantos, nem onde, muito menos porquê.

Há uma razão atávica para isto, classista e estratificada na consciência coletiva, que aprecia a clandestinidade como um serviço público, assim tendo sobrevivido ao apagão da História secular e a uma ditadura, e uma razão turística para isto. Quanto menos se souber sobre o covid em Portugal, melhor. Por mais que este período aconselhasse recolhimento intelectual e pensativo sobre o futuro, sobre o clima, o ambiente, o modelo, a infraestrutura, o uso dos fundos europeus, sobre a educação e a saúde públicas, a agricultura intensiva e os usos e abusos da mão de obra imigrante, sobre as terras, as águas e o ar, sobre os meios de transporte, o que vai acontecer é o que costuma acontecer. Lisboa como a grande estalajadeira da Europa e do mundo, e Portugal como lar de terceira idade para pensionistas ricos.

O Presidente veio anunciar uma “boa notícia” lá para agosto, quando estivermos entretidos na fila do semáforo para a praia. Champions, um campeonato de futebol, pode vir cá parar. Estamos salvos. O país da Web Summit e das magnas reuniões e cimeiras, do turismo religioso e laico, o país dos estádios e recintos, marcha em frente com glória. Venham os turistas, infetados ou não porque o aeroporto vai abrir sem restrições, venham todos, somos o país covid free. Os mortos não falam. Há para aí uns surtos, em regiões sem interesse para o turismo, nos subúrbios de Lisboa e nos meios de operários e imigrantes. Estamos salvos.

A qualidade do ar em Lisboa, cidade verde, não esqueçamos, que nunca foi boa conforme atestam os medidores mundiais, em breve vai voltar a ser péssima e altamente poluída porque os carros regressam em força, e as horas de ponta também. Se pensam que meia dúzia de pistas de bicicletas vão mudar isto, pensem duas vezes. Com o desespero acrescido da paragem forçada, vamos ter o abandono de todas as regras e o salve-se quem puder. Mais alojamento local, mais barato, mais turismo, mais barato, mais voos, mais carros, mais poluição. As lojas grandes não podem abrir, dentro dos aviões voa-se lado a lado. E os turistas vão desembarcar, claro. Covid free, não esqueçam. O que são mil e tal mortos? A Grécia, menos mortos e infetados, acolheu já um avião do Qatar (a Qatar Airways nunca parou e o hub de Doha também não, sendo agora o único hub ativo da Ásia) com 12 pessoas com covid lá dentro. E recuou. Imaginem o movimento entre Portugal e o Brasil. Ou Espanha. Não interessa, covid free, enfiem-se dentro dos carros porque os transportes públicos são perigosos, e venham trabalhar. Em agosto, podemos ter Champions. E estamos em saldos.

O turismo vai ser repensado? Não. Podemos continuar a depender do turismo low cost e que consome escassos recursos naturais? Não. É assim a vida, a nossa vocação não é inventar, é servir.

Depois de tantos meses de sacrifícios e privações, regressar à normalidade significa o quê? Regressar à normal normalidade de ver Lisboa histórica convertida num parque temático onde não existia uma casa para arrendar e os alojamentos locais se tornaram, com a famosa hospitalidade, o único modelo de negócio? Ouvir as rodinhas no empedrado, esbarrar nos tuk tuks e ouvir os aviões aterrar e descolar da Portela de dois em dois minutos? Abrir as portas de par em par a todos os estrangeiros que queiram fugir de países infetados? A Tailândia, que depende mais do turismo do que nós, não abrirá à Europa e aos Estados Unidos antes do último trimestre, para acautelar novos surtos, e nós falamos de estabelecer corredores bilaterais com o infetadíssimo Reino Unido, que ultrapassou os 50 mil mortos. Aproveitando o facto de a Espanha exigir quarentena e que baixe o britânico número de mortos e infetados. Corredores bilaterais significam apenas que os ingleses desembarcam quando e como querem em Portugal, sem serem maçados pela vigilância. E nós desembarcaremos no Reino Unido? Não, obrigado, podem ficar com as praias. Ninguém por aqui passa férias em Margate ou Blackpool. E, se vier o ‘Brexit’, cada vez mais hard devido à incompetência épica de Boris e amigos, abriremos corredores nos aeroportos, para não serem maçados com a fila dos não europeus. Lá para o sr. D. Fradique é o que quiser. É este o interesse da pátria. Temos o Algarve à disposição de Vexas. E damos a água para o golfe.

Apreciar-se-ia um plano económico de um Governo que respeitasse o ambiente, diversificasse do turismo para outras formas de criação de riqueza e de investimento, pusesse um travão no desenvolvimentismo sem regras e sem gosto, preservasse regiões do Norte e do Alentejo (o Algarve perdeu-se), cuidasse do interior e das zonas costeiras, diminuísse a selvajaria imobiliária e especulativa das capitais e dos capitais e pensasse, por uma vez, não nos estrangeiros mas nos portugueses. Nos que pagam impostos e não nos que não pagam impostos. Usando os fundos europeus não para meia dúzia de compinchas do crony capitalism, ou para empresas e empreendimentos fictícios, para enriquecimento sem causa e para obscuros negócios escorados na banca e aconchegados nos escritórios da advocacia milionária.

Deixemos de vender o país a retalho a quem quer comprar, a angolanos e chineses, e de vender os esmaltes e joias. Portugal tem uma nova geração qualificada e empreendedora que não obedece às regras do passado e ousa arriscar. Está na altura de deixarmos de exportar os cérebros e empreendedores que educámos e qualificámos, os verdadeiros champions, e importarmos turistas baratos e capitalistas infames. De deixarmos de vez a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros e irremediavelmente estraga toda a disciplina e toda a ordem.

O estranho mistério das mortes que não param

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 06/06/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 Uma eurodeputada do PS indignou-se porque a Grécia excluiu os portugueses da lista dos visitantes que está disposta a receber como turistas este Verão. Ela quer que a Comissão Europeia intervenha junto dos gregos, revertendo uma decisão que lhe parece inaceitável face ao conhecido “sucesso” de Portugal no combate ao coronavírus. Parece-me uma pretensão absurda: a Grécia — um dos países europeus que realmente registou um sucesso notável na luta contra a pandemia, apesar de albergar centenas de milhares de refugiados sírios — tem todo o direito de decidir quem são os visitantes que considera seguros ou perigosos do ponto de vista da saúde pública. Nós é que, como se vai vendo, não temos critério algum: entram todos livremente e a todo o tempo e venham de onde vierem, desde que venham fazer turismo e até, se necessário for, através de “corredores turísticos” — a favor de ingleses, por exemplo — que os dispense, aqui e no regresso, de quaisquer maçadas sanitárias.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Por sua vez, Eduardo Cabrita, o ministro da Administração Interna, interrogado sobre quando reabriria a fronteira com Espanha, deu uma de macho lusitano, respondendo que não antes de 15 de Junho, pois que a Espanha ainda tinha a situação de saúde por controlar. Porém, adiante descaiu-se e lembrou que a própria Espanha tinha determinado o encerramento da fronteira até ao final do mês. Assim é: desta vez, e sem nos consultar, ao contrário do que ficara estabelecido quando do encerramento por mútuo acordo, a Espanha anunciou, já há semanas, que a fronteira terrestre com Portugal permaneceria fechada, seguramente até 1 de Julho. E a Renfe, a operadora pública da ferrovia espanhola, acaba de encerrar as duas ligações a partir de Portugal a Espanha e à Europa. (Houve depois uma pequena confusão, com a ministra espanhola do Turismo a anunciar que a fronteira abriria a 22, o nosso ministro dos Estrangeiros a afirmar que quem decidia a abertura da nossa fronteira éramos nós e Madrid a confirmar que vai abrir dia 1). Confusões diplomáticas à parte, dá-se coincidentemente o caso de a situação ainda descontrolada de que fala o ministro português em Espanha vir registando, desde há vários dias, menos casos de novos infectados que Portugal e registar, de segunda a esta quinta, um total de seis pessoas mortas do coronavírus (quando chegaram a morrer quase mil por dia...), enquanto que no mesmo período morreram 50 em Portugal. Eu, obviamente, não percebo nada do assunto, e, quanto mais oiço os especialistas, menos esclarecido fico. Mas, se repararmos que Portugal é um dos poucos países na Europa onde o vírus continua a matar paulatinamente, creio que o tal caso de “sucesso” já foi, mas já não é.

Foi muito bom enquanto foi preciso evitar o crescimento exponencial e a sobrecarga do SNS, cujas UCI nunca estiveram acima dos 60% e só episodicamente. Continuou muito bom quando nos pediram para continuar em casa para que a malfadada curva se achatasse. Mas, uma vez achatada, o raio da curva nunca mais passou daí, do estado de chata. São focos localizados, são populações particularmente vulneráveis, são testes a mais, é isto ou aquilo, mas os números aí estão, teimosamente iguais, dia após dia, semana após semana.

Pior, e verdadeiramente intrigante: o número de mortos não há maneira de se apagar, variando sempre entre os 10 e os 16 (com excepção dos 8, de quinta-feira). Tanto mais intrigante quanto o número de doentes em UCI — os mais graves — vem caindo sustentadamente. Há menos doentes graves e sempre os mesmos mortos? Quem explica isto?

2 Sou admirador sincero de Bruno Nogueira e ainda mais nos tempos que correm, em que ele parece ser a única alternativa consistente ao humorista oficial do regime e às suas estafadas entrevistas às figuras do regime. Porém, ao contrário de muitos, não tive ocasião de o seguir na sua empreitada de confinamento, pois que não tenho vida nas redes sociais, ocupado que ando na outra vida, a qual pouco tempo de sobra e nenhum interesse me deixa para partilhar a vida dos outros ou andar a oferecer o diário da minha. (Sim, já sei que se passam lá coisas interessantíssimas. Mas também sei e estou informado que se vomitam lá coisas que, podem crer, é um privilégio não ter de acompanhar, poupando-me diariamente ao espectáculo da alarvidade humana à solta em todo o seu esplendor).

Adiante, ao Bruno Nogueira e à Manuela Azevedo, de quem também sou admirador, há anos. Na belíssima Praça de Toiros do Campo Pequeno — que, como o nome indica, foi construída para correr toiros, mas que entretanto foi comprada por quem se dedica a outro ramo de espectáculo — resolveram eles dar o primeiro grande concerto de música ao vivo pós-covid. Aliás, dois concertos, com 2200 pessoas cada um — com distância de segurança nas entradas, nos lugares, etc. e tal. E bilhetes esgotados na net em 11 minutos, como não se cansaram de nos repetir. Não sei se foi autorizado previamente pela DGS ou só a posteriori, ou se nem chegou a ser: nestas matérias, abunda a confusão e o casuísmo, como já vamos aprendendo. O certo é que, apesar de, tanto quanto sei, ainda estar em vigor uma norma que proíbe ajuntamentos de mais de 20 pessoas, apesar de Lisboa registar 90% dos casos de novos infectados, seguramente que quem de direito não viu qualquer perigo para a saúde pública destes dois concertos. De outro modo nem se perceberia que no primeiro estivesse o primeiro-ministro e no segundo o Presidente da República. E não será, seguramente, a sua simples presença que tem o dom de tornar legal o que a lei classifica como ilegal: isto não é uma monarquia nem o governo do Sr. Boris Johnson, onde, para efeitos, de covid, uns são mais iguais do que outros.

E, justamente porque assim é, coloca-se a pergunta: se na Praça de Toiros do Campo Pequeno pode haver concertos de música, porque não pode haver touradas — ali e em praça alguma, mantendo as mesmas regras? Porque razão a senhora ministra da Cultura (presente no concerto, ao lado do PM), apoia os músicos e nem sequer se digna responder ao pessoal da tauromaquia? Achará que eles também não têm despesas para pagar, empregos para manter, famílias para sustentar? Ou, hipótese que me recuso a equacionar, a sua conhecida repulsa pelas touradas determina as suas decisões como governante, confundindo o que é uma legítima opinião de cidadã com um inadmissível abuso de autoridade democrática?

Mas deixem-me esclarecer que não sou frequentador de touradas, só ocasionalmente e na televisão, quando ainda estavam autorizadas transmissões televisivas. Sou, sim, frequentador da liberdade — a minha e a dos outros. E, sobretudo, há uma coisa, na política, que me repugna, muito mais do que as touradas repugnam a Graça Fonseca: a subserviência dos políticos perante o politicamente correcto. Se a ministra da Cultura, o PM e o PR foram a correr ver o concerto de Bruno Nogueira e viram as costas àqueles (e outros haverá) que têm o direito de exigir igual tratamento, é porque lhes disseram que “Bruno Nogueira é que está a dar”, enquanto que andar próximo do mundo das touradas não é recomendável. Saudosos tempos em que os políticos tinham ideias próprias de que não abdicavam, a vida de cada um era a vida de cada um e o povo que hoje eles beijam nas redes sociais e com que tiram selfies lia jornais e procurava andar informado, em lugar de os exterminar depois de ódio e difamações no conforto das redes sociais!

Às vezes dou comigo a pensar que, se se trata de avaliar um político, é mais honesto ser como Donald Trump, que não pretende enganar ninguém: é um dos maiores malfeitores que a Humanidade já pariu e desgraçadamente tem o poder e o narcisismo patológico suficientes para rebentar com a Humanidade inteira. Mas esse não disfarça, não beija nem abraça qualquer um e insulta livremente quem lhe apetece. Num Twitter perto de si.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Obviamente demitam-se!

por estatuadesal

(José Soeiro, in Expresso Diário, 05/06/2020)

José Soeiro

(Um Governo que mantém esta quadrilha em funções e permite estas práticas, quando jura o seu amor aos trabalhadores, só podemos considerar tal jura como algo do mesmo jaez que as declarações de Trump: fake news.)

Comentário da Estátua)


Não vou repetir o que escrevi num outro lugar sobre o comportamento repugnante da Administração da Casa da Música. Os precários, a maioria a falso recibo verde, foram primeiro tratados como se não existissem e, quando começaram a ser mais visíveis por se terem organizado e terem começado a falar, foram pressionados, vítimas de assédio moral, filmados quando fizeram uma vigília (denúncia feita por escrito pelos trabalhadores e nunca desmetida) e dispensados - por retaliação - das atividades já agendadas com eles para junho. O que aconteceu é gravíssimo e envergonha a cidade, a cultura e o país.

Até hoje, ninguém da direção da Casa da Música deu a cara publicamente por estas decisões. A Casa da Música tem um Diretor-Geral, Paulo Sarmento e Cunha, que se recusa a comentar o que faz. E tem um Conselho de Administração, com sete membros (2 nomeados pelo Governo, um pelo município e área metropolitana e outros 4 por privados) que, segundo os Estatutos, reúne mensalmente, mas tem permanecido em silêncio, apesar de ter como competências, entre outras, “contratar e dirigir o pessoal da Fundação”.

Quem é esta gente? Como é possível que este Conselho continue em silêncio e não seja escrutinado? E o Governo e a Câmara, que nomeiam uma parte do órgão, também não dizem nada? A Casa da Música é financiada em dois terços pelo Orçamento do Estado (mais de 9 milhões de dinheiro dos contribuintes em cada ano), mas quem a dirige parece sentir-se impune perante a lei do trabalho, a Constituição que garante a liberdade de organização e de expressão, e sem responsabilidades perante a comunidade que os financia e que deveriam servir.

A gestão da Casa da Música é um espelho de como muitas destas instituições (Serralves é outro exemplo, e parece que fez o mesmo com 21 precários do Serviço Educativo) são dirigidas: por gente que vem maioritariamente do mundo dos negócios, que replica as piores práticas empresariais, que pouco tem a ver com a cultura, que faz uma rotação endogâmica nestes e noutros cargos de poder, que nem fala com os trabalhadores e que se está nas tintas para as suas condições de vida e de trabalho. De quem falamos, afinal?

O Diretor-Geral da Fundação Casa da Música chama-se Paulo Sarmento e Cunha. Executa as decisões do Conselho de Administração ou toma decisões sem dar conta ao Conselho? Aparentemente, não se sabe bem. Mas é quem, no quotidiano, exerce o poder na instituição. Já tinha estado na Porto 2001 e desde 2007 que tem funções na Casa da Música, primeiro como diretor administrativo, depois como Diretor-Geral. É um dos rostos principais desta vergonha. Recusa falar com os jornalistas sobre o que está a acontecer.

O presidente do Conselho de Administração chama-se José Pena de Amaral. Vem do mundo da banca: foi administrador do BPI e da Allianz, pertencia ao Conselho de Administração do Banco de Fomento Angola até rebentar o escândalo do Luanda Leaks. Mas esteve também na política, como chefe de gabinete do Ministro das Finanças do governo do Bloco Central (PS-PSD, em meados da década de 1980), chefiado por Mário Soares.

As duas pessoas nomeadas pelo Governo para o Conselho de Administração são Teresa Moura e José Luis Borges Coelho.

A primeira foi Secretária de Estado dos Assuntos Europeus no primeiro governo de António Guterres. O mais curioso é, no entanto, que esta pessoa, que atualmente representa o Estado no Conselho de Administração, estava antes no mesmo Conselho mas em representação da EDP. Como a empresa deixou de poder nomear um membro, o Ministério da Cultura nomeou-a pela sua quota, apesar de Teresa Moura continuar a ser chefe de gabinete do Conselho Geral e de Supervisão da EDP…

O outro representante do Estado, nomeado pelo Ministério da Cultura, é o conhecido e respeitado maestro portuense José Luis Borges Coelho, a única pessoa com ligação ao mundo da música que faz parte do órgão. Borges Coelho assume também as funções de vice-presidente do Conselho de Administração. É conhecido pelo seu longo e consistente envolvimento cívico e político (entre outras coisas, foi mandatário e depois eleito da CDU na Assembleia Municipal do Porto).Os trabalhadores dizem que, de todo o Conselho, foi o único que os contactou, a título individual, manifestando solidariedade.

Do Conselho de Administração fazem ainda parte Rita Mestre Mira Domingues, mais uma pessoa vinda do mundo empresarial, fazendo parte dos órgãos de gestão da BA Glass, holding que foi presidida por Carlos Moreira da Silva (Sonae Indústria), e que agora tem à frente o próprio Paulo Azevedo; e António Marquez Filipe, outroempresário, neste caso ligado ao negócio do vinho do Porto, sendo administrador da Symington Family Estates, a maior proprietária de vinhas no Douro, que vende 24 milhões de garrafas por ano.

Os restantes membros são Lobo Xavier e Luis Osório.

António Lobo Xavier é conhecido do público como comentador televisivo na “Circulatura do Quadrado” (com Pacheco Pereira e Jorge Coelho), foi deputado do CDS em vários mandatos (chegou a ser líder parlamentar do partido), faz parte do Conselho de Estado por indicação do Presidente da República, é gestor da Sonaecom e está, ainda e paralelamente, no Conselho de Administração de outras grandes empresas, como a Mota-Engil ou a NOS. É uma espécie de figura omnipresente deste tipo de órgãos. Esteve, por exemplo, nas direções da Associação Comercial do Porto (a associação que representa a burguesia industrial e comercial da cidade), do Futebol Clube do Porto ou da Fundação de Serralves (na segunda metade dos anos 2000), cujas práticas laborais têm sido, como se sabe, semelhantes às da Casa da Música.

Luís Osório é um triste caso de estudo. É deputado municipal do PSD e foi o escolhido de Rui Moreira para representar o município. A sua nomeação gerou um tumulto no próprio partido. O PSD veio dizer que não lhe reconhecia qualquer experiência, competência ou ligação ao sector da cultura, e que a escolha era uma “uma manobra de Rui Moreira de dividir para reinar". A acusação foi aliás mais longe. Como Moreira não tem maioria na Assembleia Municipal, na concelhia do PSD houve quem dissesse aos jornais que a nomeação de Osório era “mais uma tentativa do presidente da Câmara comprar votos com convites, como já fez no passado”. A reação de Osório dá vergonha alheia: disse que aceitava o convite por considerar ser “importante que o PSD esteja representado nas mais marcantes entidades da cidade”. Só que não é suposto, obviamente, que o representante do município represente um partido nas decisões de gestão da Casa da Música! Tudo mau de mais…

São estas pessoas que tomam decisões na Casa da Música. São elas, quer se queira quer não, as responsáveis em última instância pelo que ali acontece – e já acontece há demasiado tempo. Quem tomou as decisões em concreto, quem dispensou as pessoas, quem contratou um operador de vídeo para andar a filmar os precários para depois a Administração retaliar contra eles? Sinceramente, não sei. Mas o que se passa é grave, muito grave. Quem tem responsabilidades e se opõe a isto, tem a obrigação de falar já publicamente e de se demitir de uma Administração com estes comportamentos miseráveis. Quem decidiu e apoia estas práticas, tem a obrigação de ser demitido por quem tem o poder de fazê-lo. E sim, se os próprios não o fizeram ainda (porque já mostraram do que são capazes), o Estado pode requerer a sua destituição. Na verdade, já devia tê-lo feito. É uma questão de decência.