Translate

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Estas mãos que embalam a Bíblia

Curto

Pedro Candeias

Pedro Candeias

Editor

08 JUNHO 2020

Partilhar

FacebookGettyImages-1216826639.jpg
Twitter
Email
Facebook


Edward Colston tem várias ruas com o seu apelido na inglesa Bristol , a saber, Colston Avenue, Colston Parade, Colston Close, Colston Road, Colston Street, Colston Dale, Colston Street, Colston Fort, Colston Yard, Colston Hill; também deram o seu nome a três escolas e a um bolinho chamado Colston Bun. E até domingo à tarde havia uma estátua na Colston Avenue, em que era apresentado, sereno e pensativo, apoiado num bordão – ontem, a figura de bronze foi encordoada, arrancada pela base, arrastada pela estrada e por fim atirada ao rio Avon pelos manifestantes do “Black Lives Matter”.
Sucede que o benfeitor da cidade, que fora um filantropo generoso e a dada altura membro do Parlamento inglês, fizera parte substancial da sua fortuna a traficar escravos no século XVIII. Para o “Black Lives Matter”, Colston era um símbolo que precisava de cair e acabou por cair simbolicamente como a estátua de Saddam Hussein, em Bagdade.
O movimento nascido nos EUA – após a morte do afro-americano George Floyd, asfixiado aos joelhos de um agente da polícia de Minneapolis – viajou furiosamente de um lado para todo o lado através dos cabos submarinos que repousam no chão dos oceanos. Expandiu-se, tornou-se global e instalou-se em Lisboa, Milão, Roma, Madrid e Bruxelas, onde várias manifestações e marchas alertaram para desigualdades e para o racismo sistémico, e para os abusos físicos e verbais; em Londres, os protesters de caras tapadas pelas máscaras chegaram a enfrentar a polícia local.
Foram naturalmente levantadas as questões sanitárias, pois estamos a viver uma pandemia e os aglomerados e o inexistente distanciamento social são um rastilho para a covid-19; e também se discutiram, por outro lado, os excessos, sobretudo os ocorridos nos EUA, onde motins, pilhagens e violência desraizaram infelizmente a erva daninha do racismo e colocaram lá a semente da dúvida, que seria previsivelmente aproveitada por Donald Trump.
Então, o presidente norte-americano militarizou imediatamente o discurso, chamou “vândalos” aos manifestantes, pôs a Guarda Nacional à frente de lugares emblemáticos para conter os “criminosos” - e agarrou-se convenientemente a uma Bíblia que a sua filha levou dentro de uma mala elegante e imaculada, como um novo Cristão, a fazer lembrar o dia em que Charlton Heston se agarrou à espingarda e gritou “from my cold dead hands”. Trump gosta de encenações e não perde a oportunidade de agarrar o fiel eleitor, partindo os EUA ao meio; a propósito, o “Político” diz que os americanos acreditam que o país está “fora de controlo”.
E agora que os protestos acalmaram – e que Donald retirou os 3,900 tropas com uma ameaça pouco subtil (“podem regressar, se necessário”) e que os democratas ensaiam reformas da polícia no país, com cortes orçamentais incluídos, e que a policia de Minneapolis pode fechar –, descobre-se que o número e as medidas ficaram aquém do que o POTUS queria: aparentemente, Trump pedia 10.000 homens na rua, fortemente armados, mas encontrou inesperada resistência no Pentágono no processo.
À margem, Donald terá sido largado por alguns, digamos, notáveis republicanos moderados, nomeadamente Colin Powell, George Bush e Mitt Romney. O primeiro disse o que nunca dissera de outros presidentes, chamando Trump de “mentiroso”. “Ele mente todo o tempo”, atacou Powell, que irá votar no democrata Joe Biden.
Por sua vez, Romney participou numa manifestação pacífica “e cristã” a caminho da Casa Branca, para mostrar a toda a gente que “Black Lives Matter”.
É provável que, cada vez mais isolado e, bom, confinado à direita alternativa norte-americana, Trump continue a representar o pequeno John Wayne que há dentro dele, agitando-se, sobressaltando-se, interpretando cenas que apaixonam os seus eleitores, com um olho nas sondagens e uma mão bem dentro do coração do norte-americano desalinhado, insatisfeito e permeável às suas teorias e inconsistências.
Porque, como também argumentou Powell, Trump continuará a safar-se porque nunca será responsabilizado, pois o seu contraditório é feito nas redes sociais. Onde ganha quem grita mais.

Trump, o senhor do caos

Posted: 07 Jun 2020 02:53 AM PDT

«Há quem diga que o sr. Donald Trump pode ser uma versão refinada de Godzilla. Espantosamente, o monstro, após ser bombardeado pelos caças japoneses, não é desintegrado e cospe ainda mais fogo. Alimenta-se da energia destrutiva. E vai ficando cada vez mais forte. Entende-se a comparação. Mas o certo é que o sr. Trump é o Presidente dos EUA. E que a sua forma de desgovernar é tortuosa. Diz mentiras e depois mente sobre as suas mentiras. Assim já ninguém sabe, ou se lembra, onde pode estar a verdade. Esta é a nova forma de fazer política no tempo das redes sociais. O que é mesmo assustador é que nem tudo é uma patranha. Por detrás desta galeria de enganos, há uma pensada agenda política, em que se conjugam o capitalismo selvagem, o fim do diálogo e do multilateralismo, o enterro desta globalização e o ocaso da democracia. O sr. Trump é, na realidade, uma versão de fato e gravata de Homer Simpson. Homer diz: “Oh não, alienígenas! Não me coma, tenho mulher e três filhos... coma-os a eles!” O dispensável é sempre o outro. Para esconder a sua incompetência para combater a covid-19, o sr. Trump precisa de várias telenovelas a serem transmitidas em simultâneo. Mesmo que crie um clima de guerra civil, os meios servem os fins que deseja.

Após os confrontos de 1967 e 1968, Marvin Gaye não escondeu o seu desespero. Cantou What’s going on?. O que mudou desde então? Pouco. E, por acção do sr. Trump, os EUA são hoje um país ainda mais dividido, mais desigual e pobre. Não fez um muro com o México. Ergueu-o dentro das suas fronteiras. Para viver, ganhar as eleições e destruir o resto das instituições americanas, o sr. Trump tem-se empenhado a criar inimigos. Qualquer um serve, se isso reforçar a sua base de apoio – e se semear o fascismo tecnológico, que vai ser um dos grandes desafios das sociedades neste século XXI. O mundo idealizado pelo sr. Trump (e pelos homens cinzentos que se movem por detrás dele) só conhece vencedores e perdedores. Os seres humanos são apenas mercadorias. Os valores, produtos de supermercado. Não há aqui espaço para idealismos ou filosofias. Não há amigos: só interesses.

Para vencer, o sr. Trump precisa de incendiar o mundo. De tornar os aliados ovelhas. De destruir os organismos de diálogo (hoje a OMS, amanhã a anémica ONU do sr. Guterres). A China, a grande concorrente. E a União Europeia. Não admira que o sr. Trump seja visto como esse monstro que se alimenta do caos. Há muito que a América que conhecíamos, contraditória mas atraente, se começou a desintegrar diante dos nossos olhos. Uma das melhores séries de todos os tempos, The Wire, de David Simon, mostrara-nos um mundo urbano onde é impossível a redenção. A série era uma tragédia grega, onde, em vez dos antigos deuses, as forças do Olimpo são as instituições pós-modernas: a polícia, a economia da droga, as estruturas políticas corruptas, as forças económicas que, na sombra, tudo manipulam. Nas tragédias gregas, os protagonistas são os joguetes dos deuses. Hoje, não passam de peões de interesses maiores e menos visíveis. Os seres humanos já não compreendem o mundo que criaram. São derrotados pelo medo. E pelo dinheiro. A política tornou-se o teatro do absurdo.

Para este projecto sinistro ser hegemónico, o sr. Trump tem de ser reeleito. Sem economia para alimentar os votantes, a China é o melhor inimigo. Para essa carga da brigada ligeira, o sr. Trump insiste em arrastar os aliados que tem humilhado. O primeiro round desta estratégia, no entanto, falhou, porque a sra. Angela Merkel recusou ir ao G7. Não esquece o que o sr. Steve Bannon tem andado a fazer na Europa para destruir a União Europeia, sob os auspícios do Presidente americano. A resposta? O sr. Trump rapidamente avançou para a ideia de criar um G10 ou G11, com a Rússia, a Coreia do Sul, a Índia e a Austrália, nascendo assim uma frente anti-China, com dois blocos antagónicos. Só que a Europa não pode confiar nele, um Bórgia dos tempos modernos, rápido a trair os aliados pelas costas quando lhe convém. A Europa precisa de manter a cooperação com a China – porque a globalização está a adquirir novas roupagens: a regionalização económica, como se está a ver na Ásia, é uma delas. É contra tudo isto que aqueles que apoiam o sr. Trump querem lutar. Acreditam ainda que é através da chantagem que os EUA dominarão, como senhores, parte do mundo. Eis o que está mesmo em jogo. Só que não é Alexandre, o Grande, quem quer.»

Fernando Sobral

Quem salva as democracias?

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 05/06/2020)

Como se as catástrofes naturais, a explosão demográfica e as agressões ambientais não bastassem para enegrecer o futuro e infernizar o presente, chegaram à chefia dos países mais poderosos do mundo uma série de dirigentes perigosos, nacionalistas, autoritários e belicistas.A China e Rússia, onde a democracia liberal é desconhecida, têm líderes autoritários.

Os EUA, Brasil, Índia e Filipinas, em eleições formalmente livres, não lograram melhores líderes. As teocracias do Médio Oriente são o que se sabe. Benjamin Netanyahu, Israel, é um perigo global e Mohammad bin Salman, Arábia Saudita, assassino de longo curso.

Quando julgávamos que a impreparação, a truculência e a inanidade seriam punidas nas urnas, eis que surgem, legitimados pelo voto, o mitómano agressivo e belicista Trump, o delinquente imbecil e demente Bolsonaro, o grotesco assassino Duterte e o nacionalista belicoso Narendra Modi.Da Hungria à Turquia, da Polónia à Sérvia, da Chéquia à Albânia, na Europa Central e do Leste, sob o pretexto da luta contra o coronavírus, aumentam os países autoritários e são cada vez mais repressivos.

Os regimes despóticos aumentam em número e ampliam a repressão dentro de cada país. Os ataques à liberdade de imprensa, a neutralização das oposições, a desvalorização dos parlamentos e a captura do poder judicial são instrumentos dos novos líderes, que usam o nacionalismo, a xenofobia e o medo para se perpetuarem no poder.

A corrupção é uma arma usada contra a democracia, o único sistema em que é possível denunciá-la, sem qualquer prova de que essa lepra, que corrói o poder, seja mais intensa e frequente nos regimes democráticos do que nas ditaduras.A insegurança e o medo são inimigos da democracia e a retórica dos líderes autoritários vive da sua exploração.

Ao ambiente que, no século passado, criou as condições para os regimes ditatoriais, junta-se agora uma pandemia para facilitar a vitória dos demagogos, que prometem ordem e segurança em troca do silêncio e da submissão.As novas tecnologias, que permitiram democratizar a informação, cedo foram usadas por quem detinha a capacidade de as capturar ao serviço dos poderes autoritários que proliferam.

Não há uma opinião pública esclarecida, participativa e empenhada, na defesa da nossa civilização, onde a liberdade e a defesa dos direitos humanos gozem generalizado apoio. À medida que as consciências adormecem, o medo nos tolhe e o desânimo se instala, esmorece a vigilância cívica e ficamos mais expostos a ser vigiados e oprimidos por biltres que vão assaltando o poder.

domingo, 7 de junho de 2020

Big brother

Posted: 06 Jun 2020 03:37 AM PDT

«A crise pandémica que vivemos acelerou a corrida tecnológica no mundo ocidental. Inúmeros estudos apontam para as mudanças que ocorreram nas relações laborais e sociais num curto espaço de tempo. É inegável que as sociedades foram "obrigadas" a adaptar-se, mas também é verdade que todas as implicações decorrentes dessa adaptação devem ser cuidadosamente analisadas, em particular no que respeita aos impactos para o trabalho.

Esse é um debate que está por fazer para além das evidências e é fundamental que seja feito. Há, no entanto, uma área tecnológica que tem sido protagonista e cujas implicações estão muito além das promessas vendidas. Refiro-me às chamadas aplicações de rastreio. Governos, um pouco por todo o mundo, acenam com a solução tecnológica para controlar os contágios por coronavírus, mas será mesmo assim?

As aplicações de rastreio têm sido apresentadas por vários governos como uma espécie de magia: com a sua introdução consolida-se a perceção de que se está a fazer alguma coisa, mesmo que não seja o caso. Nesta conceção de "solucionismo tecnológico" esbate-se o debate sobre as reais medidas de combate ao vírus, como sejam o alargamento dos testes à população, a necessidade de melhorar as condições de prestação de cuidados de saúde ou a necessidade de contratação de mais profissionais de saúde. Um exemplo claro dos problemas associados ao recurso às aplicações é o que se passa nos Estados Unidos, onde a aceitação de partilha de dados vem com o prémio de se ter vantagem nos tratamentos médicos.

Mas há muitos mais problemas escondidos pelo véu da urgência. Especialistas de vários quadrantes apelam aos riscos associados a estas tecnologias. Vigilância em massa, numa espécie de big brother em versão sanitária, violação da legislação da proteção de dados, violação de direitos humanos, abusos de entidades patronais sobre os seus trabalhadores, confidencialidade dos dados não relacionados com o rastreio da doença, apropriação de dados pessoais por empresas do setor privado e as utilizações abusivas para favorecer o negócio, o reforço dos poderes dados às grandes plataformas como a Google e a Apple são apenas alguns dos problemas já mencionados.

Acresce ainda o dado que nos chega dos países que já têm aplicações em funcionamento, que é o da sobreconfiança dos utilizadores. Dados mostram que nestes países, como é o caso da Coreia do Sul, a descarga da aplicação traduziu-se num incumprimento das normas de segurança, uma vez que os utilizadores passaram a ter uma perceção errada de proteção.

Numa altura em a maioria dos países da União Europeia, incluindo Portugal, estão envolvidos no desenvolvimento destas aplicações, não é ainda tarde para recuar. Parece cada vez mais evidente que não só não são necessárias como não substituem as reais respostas à crise pandémica. Abrir esta porta é como abrir a caixa de Pandora. Daqui não virá nada de bom.»

Marisa Matias

Deixar a bonacheirice de vez

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 06/06/2020)

Clara Ferreira Alves

Em Portugal, nação valente e imortal, morre-se clandestinamente. O Presidente e o primeiro-ministro andam por aí em concertos, almoços e praias como se nada se tivesse passado, no torvelinho de regras de desconfinamento que obedecem a conveniências económicas e a contraditórias indicações da nova autoridade sobre as nossas vidas, a DGS. Posso ir ao Campo Pequeno, não posso ir à praia nem ao ginásio. Para as vítimas de covid, nem uma palavra pública e sonante.

Nem um ramo de flores. Como sempre, envergonhado, horrorizado pela sua condição de pobreza ou de doença, ou das duas, o país fez de conta que nada se tinha passado. Há enterros de covid clandestinos, morreu de quê, ninguém sabe, e pessoas que estiveram doentes e fingem que nunca estiveram doentes. Psicologicamente, os danos permanecem invisíveis e confinados, dentro das famílias. O atavismo faz de nós sobreviventes medrosos e clandestinos. Ninguém conhece ninguém que tenha morrido de covid, não vá dar-se o caso de sermos confundidos com putativos portadores do vírus. Teve uma pneumonia, não era covid, era outra coisa. Em Portugal, tudo é sempre outra coisa.

Ao contrário de países onde os mortos tiveram um rosto e um nome, aqui tornaram-se o que só acontece aos outros. Uma psicóloga veio dizer que era melhor assim, para não traumatizar. Os ricos têm horror de dizer que apanharam, exceto se tiver sido “na neve”, chique, e os pobres têm horror de perder qualquer coisinha. Incluindo o emprego ou o subsídio. Quanto aos trabalhadores da saúde, não sabemos quem teve e não teve. Nem quantos, nem onde, muito menos porquê.

Há uma razão atávica para isto, classista e estratificada na consciência coletiva, que aprecia a clandestinidade como um serviço público, assim tendo sobrevivido ao apagão da História secular e a uma ditadura, e uma razão turística para isto. Quanto menos se souber sobre o covid em Portugal, melhor. Por mais que este período aconselhasse recolhimento intelectual e pensativo sobre o futuro, sobre o clima, o ambiente, o modelo, a infraestrutura, o uso dos fundos europeus, sobre a educação e a saúde públicas, a agricultura intensiva e os usos e abusos da mão de obra imigrante, sobre as terras, as águas e o ar, sobre os meios de transporte, o que vai acontecer é o que costuma acontecer. Lisboa como a grande estalajadeira da Europa e do mundo, e Portugal como lar de terceira idade para pensionistas ricos.

O Presidente veio anunciar uma “boa notícia” lá para agosto, quando estivermos entretidos na fila do semáforo para a praia. Champions, um campeonato de futebol, pode vir cá parar. Estamos salvos. O país da Web Summit e das magnas reuniões e cimeiras, do turismo religioso e laico, o país dos estádios e recintos, marcha em frente com glória. Venham os turistas, infetados ou não porque o aeroporto vai abrir sem restrições, venham todos, somos o país covid free. Os mortos não falam. Há para aí uns surtos, em regiões sem interesse para o turismo, nos subúrbios de Lisboa e nos meios de operários e imigrantes. Estamos salvos.

A qualidade do ar em Lisboa, cidade verde, não esqueçamos, que nunca foi boa conforme atestam os medidores mundiais, em breve vai voltar a ser péssima e altamente poluída porque os carros regressam em força, e as horas de ponta também. Se pensam que meia dúzia de pistas de bicicletas vão mudar isto, pensem duas vezes. Com o desespero acrescido da paragem forçada, vamos ter o abandono de todas as regras e o salve-se quem puder. Mais alojamento local, mais barato, mais turismo, mais barato, mais voos, mais carros, mais poluição. As lojas grandes não podem abrir, dentro dos aviões voa-se lado a lado. E os turistas vão desembarcar, claro. Covid free, não esqueçam. O que são mil e tal mortos? A Grécia, menos mortos e infetados, acolheu já um avião do Qatar (a Qatar Airways nunca parou e o hub de Doha também não, sendo agora o único hub ativo da Ásia) com 12 pessoas com covid lá dentro. E recuou. Imaginem o movimento entre Portugal e o Brasil. Ou Espanha. Não interessa, covid free, enfiem-se dentro dos carros porque os transportes públicos são perigosos, e venham trabalhar. Em agosto, podemos ter Champions. E estamos em saldos.

O turismo vai ser repensado? Não. Podemos continuar a depender do turismo low cost e que consome escassos recursos naturais? Não. É assim a vida, a nossa vocação não é inventar, é servir.

Depois de tantos meses de sacrifícios e privações, regressar à normalidade significa o quê? Regressar à normal normalidade de ver Lisboa histórica convertida num parque temático onde não existia uma casa para arrendar e os alojamentos locais se tornaram, com a famosa hospitalidade, o único modelo de negócio? Ouvir as rodinhas no empedrado, esbarrar nos tuk tuks e ouvir os aviões aterrar e descolar da Portela de dois em dois minutos? Abrir as portas de par em par a todos os estrangeiros que queiram fugir de países infetados? A Tailândia, que depende mais do turismo do que nós, não abrirá à Europa e aos Estados Unidos antes do último trimestre, para acautelar novos surtos, e nós falamos de estabelecer corredores bilaterais com o infetadíssimo Reino Unido, que ultrapassou os 50 mil mortos. Aproveitando o facto de a Espanha exigir quarentena e que baixe o britânico número de mortos e infetados. Corredores bilaterais significam apenas que os ingleses desembarcam quando e como querem em Portugal, sem serem maçados pela vigilância. E nós desembarcaremos no Reino Unido? Não, obrigado, podem ficar com as praias. Ninguém por aqui passa férias em Margate ou Blackpool. E, se vier o ‘Brexit’, cada vez mais hard devido à incompetência épica de Boris e amigos, abriremos corredores nos aeroportos, para não serem maçados com a fila dos não europeus. Lá para o sr. D. Fradique é o que quiser. É este o interesse da pátria. Temos o Algarve à disposição de Vexas. E damos a água para o golfe.

Apreciar-se-ia um plano económico de um Governo que respeitasse o ambiente, diversificasse do turismo para outras formas de criação de riqueza e de investimento, pusesse um travão no desenvolvimentismo sem regras e sem gosto, preservasse regiões do Norte e do Alentejo (o Algarve perdeu-se), cuidasse do interior e das zonas costeiras, diminuísse a selvajaria imobiliária e especulativa das capitais e dos capitais e pensasse, por uma vez, não nos estrangeiros mas nos portugueses. Nos que pagam impostos e não nos que não pagam impostos. Usando os fundos europeus não para meia dúzia de compinchas do crony capitalism, ou para empresas e empreendimentos fictícios, para enriquecimento sem causa e para obscuros negócios escorados na banca e aconchegados nos escritórios da advocacia milionária.

Deixemos de vender o país a retalho a quem quer comprar, a angolanos e chineses, e de vender os esmaltes e joias. Portugal tem uma nova geração qualificada e empreendedora que não obedece às regras do passado e ousa arriscar. Está na altura de deixarmos de exportar os cérebros e empreendedores que educámos e qualificámos, os verdadeiros champions, e importarmos turistas baratos e capitalistas infames. De deixarmos de vez a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros e irremediavelmente estraga toda a disciplina e toda a ordem.