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segunda-feira, 8 de junho de 2020

EUA: Protestos no país que não consegue respirar

A morte de George Floyd voltou a despertar os Estados Unidos para o combate ao racismo e à brutalidade policial. A extrema-direita que ocupa a Casa Branca ameaça com a repressão militar dos manifestantes e a criminalização dos antifascistas. Dossier organizado por Luís Branco.

6 de Junho, 2020 - 22:01h


A morte de George Floyd por asfixia provocada pelo joelho de um agente policial, enquanto a vítima gritava “Não consigo respirar” chocou o mundo e abriu caminho a uma vaga de protestos num dos países mais afetados pela pandemia e pelo desemprego que ela provocou em poucas semanas. Protestos que vieram retomar o movimento Black Lives Matter, cuja origem e percurso resumimos neste dossier.

Os protestos tomaram conta das ruas de várias cidades e a repressão policial não se fez esperar, desta vez alimentada e instigada pelo próprio chefe de Estado, que viu aqui uma oportunidade para avançar na sua agenda autoritária e desviar a atenção do fracasso criminoso da sua estratégia de contenção do vírus.

Reunimos neste dossier alguns artigos que refletem temas em debate na esquerda norte-americana ao fim dos primeiros dias de manifestações e ameaças da Casa Branca. Um desses debates é o do papel da polícia nas sociedades democráticas e as consequências do processo de militarização a que foi sujeita nas últimas décadas. O ex-agente da polícia de Boston e atual professor universitário Tom Nolan diz que as formação dos polícias em técnicas de “desescalada”, um dos objetivos da estratégia proposta após um caso semelhante em Ferguson, em 2014, não foi seguida. Enquanto isso, estudos apontam que quanto maior é o investimento em equipamento de categoria militar, maior é a probabilidade de virem a morrer civis no decurso de operações policiais.

Também por isso, uma proposta que tem vindo a ganhar terreno é a que defende o corte nas verbas para a polícia. Um dos seus defensores é o sociólogo Alex Vitale, que explica nesta entrevista que é necessário substituir boa parte das atuais tarefas policiais por outras respostas públicas para assim evitar o encarceramento e a criminalização em massa. Por seu lado, a jornalista Joan Walsh destaca a proximidade política entre Donald Trump e alguns líderes dos sindicatos policiais que não escondem o seu racismo e desprezo pelos direitos humanos.

Mas a resposta autoritária de Trump é um indício que o fascismo está a tomar conta do poder político dos EUA? O jornalista Adam Weinstein responde afirmativamente e diz que é altura de considerar o que os fascistas podem ainda fazer, durante uma pandemia sem precedentes, no meio de um desemprego sem precedentes, confrontados com uma resistência sem precedentes antes de uma eleição sem precedentes. Lembrando os tempos em que era agitado o papão da “Ameaça Vermelha” durante a Guerra Fria, o jornalista Chip Gibbons faz o paralelo com a “histeris antifa” de Donald Trump, que recupera uma teoria da conspiração da extrema-direita para tentar reprimir a dissidência.

Também o filósofo e ativista dos direitos civis Cornel West sublinha o contraste entre a resposta da polícia a estas manifestações e face aos provocadores de direita que aparecem dentro e fora das sedes estaduais com armas e munições carregadas. E fala dos sintomas de uma classe política decadente, marcada pelo duopólio de um crescente partido republicano neofascista liderado por Donald Trump e de um partido neoliberal democrata liderado por Joe Biden.

Porfim, incluimos também a opinião da deputada bloquista Beatriz Gomes Dias, para quem "é essencial que esta enorme vaga de indignação e mobilização por justiça se traduza em mudanças reais e profundas, tão profundas como as causas do racismo que esteve na origem deste e de tantos outros crimes. Quando a indignação por este caso esmorecer, não pode esmorecer com ela a luta contra o racismo e pela transformação das estruturas, instituições e processos que o suportam".

Estas mãos que embalam a Bíblia

Curto

Pedro Candeias

Pedro Candeias

Editor

08 JUNHO 2020

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Edward Colston tem várias ruas com o seu apelido na inglesa Bristol , a saber, Colston Avenue, Colston Parade, Colston Close, Colston Road, Colston Street, Colston Dale, Colston Street, Colston Fort, Colston Yard, Colston Hill; também deram o seu nome a três escolas e a um bolinho chamado Colston Bun. E até domingo à tarde havia uma estátua na Colston Avenue, em que era apresentado, sereno e pensativo, apoiado num bordão – ontem, a figura de bronze foi encordoada, arrancada pela base, arrastada pela estrada e por fim atirada ao rio Avon pelos manifestantes do “Black Lives Matter”.
Sucede que o benfeitor da cidade, que fora um filantropo generoso e a dada altura membro do Parlamento inglês, fizera parte substancial da sua fortuna a traficar escravos no século XVIII. Para o “Black Lives Matter”, Colston era um símbolo que precisava de cair e acabou por cair simbolicamente como a estátua de Saddam Hussein, em Bagdade.
O movimento nascido nos EUA – após a morte do afro-americano George Floyd, asfixiado aos joelhos de um agente da polícia de Minneapolis – viajou furiosamente de um lado para todo o lado através dos cabos submarinos que repousam no chão dos oceanos. Expandiu-se, tornou-se global e instalou-se em Lisboa, Milão, Roma, Madrid e Bruxelas, onde várias manifestações e marchas alertaram para desigualdades e para o racismo sistémico, e para os abusos físicos e verbais; em Londres, os protesters de caras tapadas pelas máscaras chegaram a enfrentar a polícia local.
Foram naturalmente levantadas as questões sanitárias, pois estamos a viver uma pandemia e os aglomerados e o inexistente distanciamento social são um rastilho para a covid-19; e também se discutiram, por outro lado, os excessos, sobretudo os ocorridos nos EUA, onde motins, pilhagens e violência desraizaram infelizmente a erva daninha do racismo e colocaram lá a semente da dúvida, que seria previsivelmente aproveitada por Donald Trump.
Então, o presidente norte-americano militarizou imediatamente o discurso, chamou “vândalos” aos manifestantes, pôs a Guarda Nacional à frente de lugares emblemáticos para conter os “criminosos” - e agarrou-se convenientemente a uma Bíblia que a sua filha levou dentro de uma mala elegante e imaculada, como um novo Cristão, a fazer lembrar o dia em que Charlton Heston se agarrou à espingarda e gritou “from my cold dead hands”. Trump gosta de encenações e não perde a oportunidade de agarrar o fiel eleitor, partindo os EUA ao meio; a propósito, o “Político” diz que os americanos acreditam que o país está “fora de controlo”.
E agora que os protestos acalmaram – e que Donald retirou os 3,900 tropas com uma ameaça pouco subtil (“podem regressar, se necessário”) e que os democratas ensaiam reformas da polícia no país, com cortes orçamentais incluídos, e que a policia de Minneapolis pode fechar –, descobre-se que o número e as medidas ficaram aquém do que o POTUS queria: aparentemente, Trump pedia 10.000 homens na rua, fortemente armados, mas encontrou inesperada resistência no Pentágono no processo.
À margem, Donald terá sido largado por alguns, digamos, notáveis republicanos moderados, nomeadamente Colin Powell, George Bush e Mitt Romney. O primeiro disse o que nunca dissera de outros presidentes, chamando Trump de “mentiroso”. “Ele mente todo o tempo”, atacou Powell, que irá votar no democrata Joe Biden.
Por sua vez, Romney participou numa manifestação pacífica “e cristã” a caminho da Casa Branca, para mostrar a toda a gente que “Black Lives Matter”.
É provável que, cada vez mais isolado e, bom, confinado à direita alternativa norte-americana, Trump continue a representar o pequeno John Wayne que há dentro dele, agitando-se, sobressaltando-se, interpretando cenas que apaixonam os seus eleitores, com um olho nas sondagens e uma mão bem dentro do coração do norte-americano desalinhado, insatisfeito e permeável às suas teorias e inconsistências.
Porque, como também argumentou Powell, Trump continuará a safar-se porque nunca será responsabilizado, pois o seu contraditório é feito nas redes sociais. Onde ganha quem grita mais.

Trump, o senhor do caos

Posted: 07 Jun 2020 02:53 AM PDT

«Há quem diga que o sr. Donald Trump pode ser uma versão refinada de Godzilla. Espantosamente, o monstro, após ser bombardeado pelos caças japoneses, não é desintegrado e cospe ainda mais fogo. Alimenta-se da energia destrutiva. E vai ficando cada vez mais forte. Entende-se a comparação. Mas o certo é que o sr. Trump é o Presidente dos EUA. E que a sua forma de desgovernar é tortuosa. Diz mentiras e depois mente sobre as suas mentiras. Assim já ninguém sabe, ou se lembra, onde pode estar a verdade. Esta é a nova forma de fazer política no tempo das redes sociais. O que é mesmo assustador é que nem tudo é uma patranha. Por detrás desta galeria de enganos, há uma pensada agenda política, em que se conjugam o capitalismo selvagem, o fim do diálogo e do multilateralismo, o enterro desta globalização e o ocaso da democracia. O sr. Trump é, na realidade, uma versão de fato e gravata de Homer Simpson. Homer diz: “Oh não, alienígenas! Não me coma, tenho mulher e três filhos... coma-os a eles!” O dispensável é sempre o outro. Para esconder a sua incompetência para combater a covid-19, o sr. Trump precisa de várias telenovelas a serem transmitidas em simultâneo. Mesmo que crie um clima de guerra civil, os meios servem os fins que deseja.

Após os confrontos de 1967 e 1968, Marvin Gaye não escondeu o seu desespero. Cantou What’s going on?. O que mudou desde então? Pouco. E, por acção do sr. Trump, os EUA são hoje um país ainda mais dividido, mais desigual e pobre. Não fez um muro com o México. Ergueu-o dentro das suas fronteiras. Para viver, ganhar as eleições e destruir o resto das instituições americanas, o sr. Trump tem-se empenhado a criar inimigos. Qualquer um serve, se isso reforçar a sua base de apoio – e se semear o fascismo tecnológico, que vai ser um dos grandes desafios das sociedades neste século XXI. O mundo idealizado pelo sr. Trump (e pelos homens cinzentos que se movem por detrás dele) só conhece vencedores e perdedores. Os seres humanos são apenas mercadorias. Os valores, produtos de supermercado. Não há aqui espaço para idealismos ou filosofias. Não há amigos: só interesses.

Para vencer, o sr. Trump precisa de incendiar o mundo. De tornar os aliados ovelhas. De destruir os organismos de diálogo (hoje a OMS, amanhã a anémica ONU do sr. Guterres). A China, a grande concorrente. E a União Europeia. Não admira que o sr. Trump seja visto como esse monstro que se alimenta do caos. Há muito que a América que conhecíamos, contraditória mas atraente, se começou a desintegrar diante dos nossos olhos. Uma das melhores séries de todos os tempos, The Wire, de David Simon, mostrara-nos um mundo urbano onde é impossível a redenção. A série era uma tragédia grega, onde, em vez dos antigos deuses, as forças do Olimpo são as instituições pós-modernas: a polícia, a economia da droga, as estruturas políticas corruptas, as forças económicas que, na sombra, tudo manipulam. Nas tragédias gregas, os protagonistas são os joguetes dos deuses. Hoje, não passam de peões de interesses maiores e menos visíveis. Os seres humanos já não compreendem o mundo que criaram. São derrotados pelo medo. E pelo dinheiro. A política tornou-se o teatro do absurdo.

Para este projecto sinistro ser hegemónico, o sr. Trump tem de ser reeleito. Sem economia para alimentar os votantes, a China é o melhor inimigo. Para essa carga da brigada ligeira, o sr. Trump insiste em arrastar os aliados que tem humilhado. O primeiro round desta estratégia, no entanto, falhou, porque a sra. Angela Merkel recusou ir ao G7. Não esquece o que o sr. Steve Bannon tem andado a fazer na Europa para destruir a União Europeia, sob os auspícios do Presidente americano. A resposta? O sr. Trump rapidamente avançou para a ideia de criar um G10 ou G11, com a Rússia, a Coreia do Sul, a Índia e a Austrália, nascendo assim uma frente anti-China, com dois blocos antagónicos. Só que a Europa não pode confiar nele, um Bórgia dos tempos modernos, rápido a trair os aliados pelas costas quando lhe convém. A Europa precisa de manter a cooperação com a China – porque a globalização está a adquirir novas roupagens: a regionalização económica, como se está a ver na Ásia, é uma delas. É contra tudo isto que aqueles que apoiam o sr. Trump querem lutar. Acreditam ainda que é através da chantagem que os EUA dominarão, como senhores, parte do mundo. Eis o que está mesmo em jogo. Só que não é Alexandre, o Grande, quem quer.»

Fernando Sobral

Quem salva as democracias?

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 05/06/2020)

Como se as catástrofes naturais, a explosão demográfica e as agressões ambientais não bastassem para enegrecer o futuro e infernizar o presente, chegaram à chefia dos países mais poderosos do mundo uma série de dirigentes perigosos, nacionalistas, autoritários e belicistas.A China e Rússia, onde a democracia liberal é desconhecida, têm líderes autoritários.

Os EUA, Brasil, Índia e Filipinas, em eleições formalmente livres, não lograram melhores líderes. As teocracias do Médio Oriente são o que se sabe. Benjamin Netanyahu, Israel, é um perigo global e Mohammad bin Salman, Arábia Saudita, assassino de longo curso.

Quando julgávamos que a impreparação, a truculência e a inanidade seriam punidas nas urnas, eis que surgem, legitimados pelo voto, o mitómano agressivo e belicista Trump, o delinquente imbecil e demente Bolsonaro, o grotesco assassino Duterte e o nacionalista belicoso Narendra Modi.Da Hungria à Turquia, da Polónia à Sérvia, da Chéquia à Albânia, na Europa Central e do Leste, sob o pretexto da luta contra o coronavírus, aumentam os países autoritários e são cada vez mais repressivos.

Os regimes despóticos aumentam em número e ampliam a repressão dentro de cada país. Os ataques à liberdade de imprensa, a neutralização das oposições, a desvalorização dos parlamentos e a captura do poder judicial são instrumentos dos novos líderes, que usam o nacionalismo, a xenofobia e o medo para se perpetuarem no poder.

A corrupção é uma arma usada contra a democracia, o único sistema em que é possível denunciá-la, sem qualquer prova de que essa lepra, que corrói o poder, seja mais intensa e frequente nos regimes democráticos do que nas ditaduras.A insegurança e o medo são inimigos da democracia e a retórica dos líderes autoritários vive da sua exploração.

Ao ambiente que, no século passado, criou as condições para os regimes ditatoriais, junta-se agora uma pandemia para facilitar a vitória dos demagogos, que prometem ordem e segurança em troca do silêncio e da submissão.As novas tecnologias, que permitiram democratizar a informação, cedo foram usadas por quem detinha a capacidade de as capturar ao serviço dos poderes autoritários que proliferam.

Não há uma opinião pública esclarecida, participativa e empenhada, na defesa da nossa civilização, onde a liberdade e a defesa dos direitos humanos gozem generalizado apoio. À medida que as consciências adormecem, o medo nos tolhe e o desânimo se instala, esmorece a vigilância cívica e ficamos mais expostos a ser vigiados e oprimidos por biltres que vão assaltando o poder.

domingo, 7 de junho de 2020

Big brother

Posted: 06 Jun 2020 03:37 AM PDT

«A crise pandémica que vivemos acelerou a corrida tecnológica no mundo ocidental. Inúmeros estudos apontam para as mudanças que ocorreram nas relações laborais e sociais num curto espaço de tempo. É inegável que as sociedades foram "obrigadas" a adaptar-se, mas também é verdade que todas as implicações decorrentes dessa adaptação devem ser cuidadosamente analisadas, em particular no que respeita aos impactos para o trabalho.

Esse é um debate que está por fazer para além das evidências e é fundamental que seja feito. Há, no entanto, uma área tecnológica que tem sido protagonista e cujas implicações estão muito além das promessas vendidas. Refiro-me às chamadas aplicações de rastreio. Governos, um pouco por todo o mundo, acenam com a solução tecnológica para controlar os contágios por coronavírus, mas será mesmo assim?

As aplicações de rastreio têm sido apresentadas por vários governos como uma espécie de magia: com a sua introdução consolida-se a perceção de que se está a fazer alguma coisa, mesmo que não seja o caso. Nesta conceção de "solucionismo tecnológico" esbate-se o debate sobre as reais medidas de combate ao vírus, como sejam o alargamento dos testes à população, a necessidade de melhorar as condições de prestação de cuidados de saúde ou a necessidade de contratação de mais profissionais de saúde. Um exemplo claro dos problemas associados ao recurso às aplicações é o que se passa nos Estados Unidos, onde a aceitação de partilha de dados vem com o prémio de se ter vantagem nos tratamentos médicos.

Mas há muitos mais problemas escondidos pelo véu da urgência. Especialistas de vários quadrantes apelam aos riscos associados a estas tecnologias. Vigilância em massa, numa espécie de big brother em versão sanitária, violação da legislação da proteção de dados, violação de direitos humanos, abusos de entidades patronais sobre os seus trabalhadores, confidencialidade dos dados não relacionados com o rastreio da doença, apropriação de dados pessoais por empresas do setor privado e as utilizações abusivas para favorecer o negócio, o reforço dos poderes dados às grandes plataformas como a Google e a Apple são apenas alguns dos problemas já mencionados.

Acresce ainda o dado que nos chega dos países que já têm aplicações em funcionamento, que é o da sobreconfiança dos utilizadores. Dados mostram que nestes países, como é o caso da Coreia do Sul, a descarga da aplicação traduziu-se num incumprimento das normas de segurança, uma vez que os utilizadores passaram a ter uma perceção errada de proteção.

Numa altura em a maioria dos países da União Europeia, incluindo Portugal, estão envolvidos no desenvolvimento destas aplicações, não é ainda tarde para recuar. Parece cada vez mais evidente que não só não são necessárias como não substituem as reais respostas à crise pandémica. Abrir esta porta é como abrir a caixa de Pandora. Daqui não virá nada de bom.»

Marisa Matias