por estatuadesal
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 12/06/2020)
Daniel Oliveira
A partida de Mário Centeno no início de uma crise põe esta figura absurdamente endeusada em perspetiva. Alguém que ocupa um lugar num momento favorável e o abandona quando o país se prepara para entrar numa das suas maiores crises económicas de sempre não merece ficar na História. E não se trata de um momento de fraqueza. O enorme prestígio de Centeno é uma ficção. Mesmo a ideia de que tem uma excelente imagem como presidente do Eurogrupo é uma ficção. Uma ficção que o inchou e esse inchaço incomodou António Costa, pouco amigo de partilhar o palco.
O que Centeno fez nestes anos nada tem de extraordinário. Com uma situação externa especialmente favorável, que lhe garantiu receitas fiscais simpáticas e redução de despesas em prestações sociais, manteve défices próximos do zero por via da contenção da despesa e do investimento público. Não estou a dizer, como diz alguma oposição, que houve uma continuação da austeridade. Austeridade não são sacrifícios. Os norte-americanos viveram tremendas dificuldades nos anos 30 e Roosevelt tinha politicas opostas às da austeridade. Austeridade, numa política de um governo, é quando a obsessão por indicadores do défice determina toda a política a ponto de prejudicar a economia do país. É uma ortodoxia que tem provas dadas no seu fracasso.
Não se pode dizer, com rigor, que houve austeridade com Centeno. Não porque lhe faltava a ortodoxia, mas porque não precisou dela. A situação era muito favorável. E dificilmente a poderia aplicar plenamente, por depender de negociações com dois partidos. Recordo que muitas propostas de Centeno não foram transpostas do programa do PS para o programa do Governo, em 2015. Porque não foram aceites por BE e PCP.
O argumento em defesa desta ortodoxia foi sempre o mesmo: podemos vir a precisar desta almofada. Foi em nome desta ideia que se adiaram investimentos inadiáveis e que se deixaram degradar varias funções do Estado com custos sociais e para a economia. Escrevi várias vezes que essa almofada desapareceria em semanas, quando viesse mais uma crise. Como era fácil de prever, o endividamento público já saltou para 134,4% do PIB. E o nosso acesso ao crédito depende exclusivamente de decisões europeias sobre todos os países. Porque, dentro do euro, o que é relevante é externo. As décimas do défice são um jogo de aparências políticas entre os países europeus. Um jogo que apela a estratégias burocráticas irracionais.
Não precisando de aplicar políticas de austeridade, porque o contexto económico não o exigia, Centeno aplicou uma receita ortodoxa. Essa receita é inaplicável neste momento – quem se opõe à estratégia definida tem de explicar o que faria a uma economia que neste momento não tem para onde exportar. E esta é a parte estranha da escolha de continuidade. Não se pode dizer que a resposta a esta crise não pode ser a de 2011 e festejar alguém que apenas se notabilizou por cativar despesa aprovada e conseguir manter défices zero num momento económico favorável. E é a versão mais cativadora de Centeno que vai tomar o seu lugar.
Não sei qual é a de Costa. Se ao decidir promover aquele que, no Ministério das Finanças, era o especialista em cativações nos quer dizer que o orçamento de Estado Suplementar e o de 2021 serão meramente indicativos. Se prepara uma remodelação e este ministro é provisório ou está à experiência. Sei que a expressão “mais do mesmo” é especialmente rigorosa. A escolha de João Leão para novo ministro das Finanças não é apenas uma escolha de continuidade, é o reforço da linha ortodoxa no ministério. O que, tendo em conta as opções que estão a ser tomadas, não faz sentido.
Leio, de alguns economistas especialistas em discurso redondo, que o desafio é aplicar a receita de 2015 num contexto diferente. Conseguir políticas contracíclicas com equilíbrio orçamental. Ou seja, ter menos receita, mais despesa e manter as contas na mesma. Não querem um ministro das Finanças, querem um alquimista. Mas não se pode comer o bolo e ficar com o bolo, querer políticas expansionistas europeias e fingir que não são expansionistas. O melhor que se pode tentar é que o défice de hoje não seja divida de amanhã porque, como se aprende com a História, as políticas expansionistas aceleram os fins das crises, poupando em défices e dívidas futuras.
Certo é que protelar despesa aprovada e projetos de investimento não é uma forma de gestão pública racional. Apesar de permitir brilharetes estatísticos, alimenta um Estado mais ineficiente e impede uma estratégia económica que vá para lá das aparências. Não sei se ao cativador sucederá o cativador e meio. Mas talvez não tenha sido nada disso que passou pela cabeça de António Costa quando escolheu João Leão. Dizem que uma das suas maiores qualidades é ser discreto. Costa aprecia essa qualidade em quem esteja ao lado dele. Veremos se tem outras.