Posted: 12 Jun 2020 03:19 AM PDT
«A morte trágica de George Floyd levou a uma justificada onda de indignação em muitos países, incluindo Portugal. Como sempre, logo há quem se apresse a vir a público lembrar que o país não é racista. Desta feita, coube a Rui Rio, líder do maior partido da oposição, afirmar que “não há racismo na sociedade portuguesa”.
A afirmação é tonta, desde logo, porque há racismo em todas as sociedades. Não só porque há pessoas abertamente racistas em todos os países como (quase) todas e todos nós somos, implicitamente e em vários graus, racistas. Se quer uma prova, vá ao site Project Implicit da Universidade de Harvard e faça o teste do preconceito racial. Este teste mede o preconceito, mesmo que o queira esconder deliberadamente ou, simplesmente, não tenha consciência dele. Vai ver que, mesmo se pensa que não é racista, a sua mente vai pregar-lhe partidas.
Segundo os dados do Project Implicit trabalhados por investigadores da Universidade de Sheffield, Portugal é dos países com mais preconceito implícito da UE, a par de Itália e ultrapassado apenas por alguns países de Leste. Depois, há o racismo declarado, aquele que as pessoas declaram mesmo sem testes sofisticados de associações implícitas. Como aqui lembrou Luís Aguiar-Conraria em Janeiro, o European Social Survey pergunta às pessoas se consideram que há etnias biologicamente menos inteligentes e o país com maior percentagem de pessoas que concordam com esta afirmação é Portugal. É o único país em que mais de metade dos inquiridos concordam.
Uma questão diferente é saber se o racismo das pessoas tem expressão na sociedade e na economia. Há uma semana, o Expresso falava dos “Seis indicadores para avaliar a desigualdade entre brancos e negros nos EUA” e apontava a desigualdade de rendimento, salarial, de riqueza acumulada, de desemprego, de pobreza e de saúde (como a probabilidade de morrer de covid-19, que já assinalei no PÚBLICO há duas semanas, a prevalência de doenças crónicas, o acesso a seguro de saúde). Como em Portugal continuamos com a teimosia de não recolher dados étnicos, não podemos quantificar estas disparidades com dados oficiais. Sem quantificar, dificilmente podemos agir.
Felizmente, a Agência Europeia para os Direitos Fundamentais conduziu em 2016 o Inquérito à Discriminação de Minorias na UE, baseada em entrevistas presenciais com mais de 25 mil indivíduos de diferentes minorias étnicas nos 28 países. O inquérito tem informação para várias etnias, mas vou concentrar-me aqui nas pessoas com origem na África subsariana. Em Portugal, um terço dessas pessoas afirma ter sido vítima de discriminação nos últimos cinco anos em diversos domínios: procura de emprego e no próprio emprego, procura de casa, contacto com a escola dos filhos ou outras instituições educativas, na utilização de serviços públicos ou privados, restaurantes, hotéis, lojas, bares, contactos com a administração pública, utilização de transportes públicos. Os indivíduos da segunda geração sentem-se mais discriminados: são 48% a afirmar que já foram vítimas de discriminação. Quase um quarto afirmam que foram vítimas de assédio ou perseguição devido à sua origem étnica ou estrangeira nos últimos cinco anos.
Estes números mostram como foi absurda e infeliz a comparação com investidores bolsitas que o deputado Cotrim Figueiredo levou ao parlamento. Senhor deputado: o racismo que dói implica falta de oportunidades. A menos que me tenha escapado alguma coisa, oportunidades não faltam à nata da finança que quis trazer ao debate.
Para além dos inquéritos, basta olhar em volta para perceber como este país trata as minorias. Há um ano, quando defendi quotas aqui no PÚBLICO, desafiei os leitores a pensar em nomes de pessoas oriundas de minorias que se destaquem em Portugal nos lugares de poder: política, empresas, comunicação social, academia. Infelizmente, há muito poucos. É que o problema vem de trás. Não sabemos como é o percurso escolar destas crianças, mas adivinhamos que é pejado de espinhos. O inquérito que citei mostra que apenas 5% das pessoas oriundas da África subsariana terminam o ensino superior, quando na população portuguesa em geral esse valor é de 20%.
Será a falta de representação da minoria negra (e outras) no poder que explica o ensurdecedor silêncio das empresas e instituições portuguesas perante o movimento Black Lives Matter nas últimas semanas? Nos EUA, o número de grandes empresas que apoiou publicamente o movimento gerou surpresa. É provável que pelo menos algumas destas intervenções vão além da mera manobra de comunicação, como assinalou o Financial Times. Por um lado, há um risco de imagem, já que as sondagens mostram que nos EUA a polícia é mais respeitada do que a religião. Por outro, as intervenções mais marcantes vieram de empresas com executivos negros, como o Citigroup, cujo director financeiro falou de experiências pessoais de discriminação. Não foram só as empresas, nem foi só nos EUA. A generalidade das universidades inglesas e americanas publicaram posições públicas nos seus sites e a American Economic Association também.
O Conselho de Direitos Humanos da ONU tem um grupo de trabalho de “especialistas em pessoas de origem africana” que fez uma visita a Portugal em Maio de 2011. As conclusões estão publicadas num pequeno relatório de Agosto de 2012, disponível online. Talvez tenha passado despercebido porque estávamos a braços com a troika e a visita do grupo de trabalho aconteceu durante o último estertor do governo Sócrates. Logo na primeira página, o relatório diz: “o grupo de trabalho conclui que os desafios enfrentados pelas pessoas de ascendência africana em Portugal estão principalmente relacionados com a falta de reconhecimento como um grupo específico na política nacional e no quadro legislativo” e recomenda, entre outras coisas, “a revisão da política que impede a recolha de informação desagregada por origem racial ou étnica”. Pois. O país mais racista é o que escolhe varrer o problema para debaixo do tapete.»