Translate

sábado, 13 de junho de 2020

A Universidade e a ilusão digital

por estatuadesal

(Manuel Loff, in Público, 04/06/2020)

Manuel Loff

No fim de janeiro, mês e meio antes do encerramento das universidades, um estudo de João Marôco (ISPA) fazia um diagnóstico terrível sobre a situação dos estudantes universitários em Portugal: “Elevada exaustão emocional, elevada descrença relativamente à utilidade dos estudos e elevada ineficácia académica.” (PÚBLICO, 31.1.2020) Nele se alertava para o risco de burnout ser mais elevado entre os estudantes deslocados (42% dos alunos do ensino superior público), a maioria dos quais (58% no caso de Lisboa) vivem em casas que não têm salas onde possam estudar.

Recordistas europeus do abandono escolar (cerca de 30%, segundo dados de 2018), uma parte substancial dos estudantes (dos portugueses mas sobretudo dos estrangeiros) que estão matriculados nas comparativamente caras universidades portuguesas acumulavam o estudo com trabalhos desqualificados e muito precários (hotelaria, turismo, call centers, supermercados) - uma das consequências do aumento constante das propinas em Portugal desde há 30 anos.

Hoje, estão quase todos desempregados. É o que acontece com a maioria dos estudantes estrangeiros, a quem a pandemia e o confinamento deixou numa situação muito angustiante, uns tendo permanecido em Portugal porque se sentiam mais seguros, muitos simplesmente retidos, sem voos de regresso. Em conjunto com os seus colegas portugueses, eles revelam (segundo inquéritos da Universidade do Porto e do Hospital Júlio de Matos) mais ansiedade que as faixas etárias mais velhas, percecionando à sua frente uma crise social muito pior que a última, sobrecarregados por uma enxurrada de tarefas que lhes prescreveram os seus professores, também eles desorientados e submetidos à pressão de instituições que quiseram fingir uma impossível continuidade pedagógica.

Tendo percebido o stress emocional e o beco sem saída económico de tantos dos seus estudantes, que fizeram as instituições de ensino superior (IES)? Impuseram o ensino à distância, em plataformas comerciais que desrespeitam toda a proteção de dados (agravada agora com exames online de câmara ligada!) e ignoraram olimpicamente se os estudantes tinham condições de o acompanhar; aproveitaram o estado de emergência para passarem por cima de todos os órgãos de representação, de normas constitucionais que asseguram a liberdade de ensino que custou séculos a conquistar, chegando a ameaçar (caso da UP) de processo disciplinar todos aqueles que não se submetessem a um determinado modelo de ensino à distância. Mas não quiseram retirar consequência alguma da mesma emergência que elas próprias precipitaram. No “Estamos todos juntos!”, isentou-se alguém do pagamento de propinas (de milhares de euros nas pós-graduações), do alojamento nas residências, de refeições a estudantes deslocados? Não, nada! Encostadas há décadas à parede da lógica neoliberal do subfinanciamento público e da transformação de muitas delas em fundações de direito privado, quem as gere há muito que optou por adotar, na sociedade mais desigual da Europa Ocidental, um modelo socialmente discriminatório sem paralelo na UE, feito de aumento sistemático das propinas, das taxas, dos emolumentos, de confisco do financiamento da investigação, precarizando como em nenhum outro setor público a contratação de novos docentes e de investigadores. Há muito que o ensino superior público deixou de cumprir em Portugal qualquer função democratizadora. E a responsabilidade é tanto dos gestores das IES como dos governos. Verificando que os filhos das classes trabalhadoras não entram na universidade, a solução que encontraram foi recrutar entre (o que imaginam ser) as classes favorecidas brasileiras, raramente de outras paragens, penalizando-os com propinas ainda mais altas. Agora, na era do confinamento, descobriram que os podem perder a todos de uma penada.

Fechadas antes de tudo o resto, as IES resistem hoje à retoma da atividade pedagógica presencial e parecem iludidas com uma transição digital que, se não for parada, desvirtuará definitivamente a função social e cultural da universidade pública, acentuará um velho processo de recentralização, hierarquização e empresarialização e dissolverá comunidades abertas de professores, estudantes e funcionários onde historicamente houve sempre vocação democrática. Fechadas, as IES mantêm-se fora do esforço de desconfinamento que o conjunto da sociedade está a assumir. Delas se espera um contributo decisivo de reconstrução da economia e da vida social. Que o seja no sentido da democracia e não de uma ilusão autista.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Teme-se o pior

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 13/06/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 Incapaz de conter a sua euforia perante a perspectiva de dispor de mais de 15 mil milhões a fundo perdido “para gastar no prazo de três anos”, mais os 19 mil milhões emprestados a taxas de juro a rondar os zero por cento, mais os milhões do Quadro Plurianual 21-27 e os que ainda restam do de 20-23 — enfim, soterrado debaixo de uma avalanche de milhões que torna qualquer ministro da Economia um ser em levitação permanente —, Siza Vieira confessou à “Visão” que o apelo que anda a fazer às empresas é: “Preparem-se, porque vão ter uma oportunidade provavelmente única na nossa História para aplicar recursos naquilo que faz falta e criar condições de crescimento, de competitividade e de produtividade para as vossas empresas.” Quem quer que guarde memória de tempos e de promessas semelhantes vividos nos anos primeiros do que então ficou conhecido como “cavaquismo” só pode ter ficado arrepiado ao ler as declarações do ministro.

Eu lembro-me. Lembro-me da enxurrada de dinheiros europeus que desabou sobre as nossas cabeças, com a promessa garantida de vir alavancar a nossa definitiva saída do subdesenvolvimento. Lembro-me de como nasceram empresas como cogumelos, financiadas com dinheiros europeus, antes mesmo de saberem o que iam fazer. Da profusão de tias e sobrinhas que descobriram uma vocação inesperada para darem cursos de formação financiados por Bruxelas, em qualquer área ou ramo — muitos dos quais nunca chegaram a acontecer nem o respectivo processo-crime por burla chegou ao fim antes de prescrever, como sucedeu com uma das maiores empresas do país, que também resolveu dedicar-se ao ramo. Lembro-me das auto-estradas para todo o lado e lado nenhum ou, como sabiamente previu Ribeiro Teles, para mais depressa trazerem os legumes e frutas espanhóis, injectados de água e corantes, para os supermercados portugueses, assim arruinando os produtores nacionais — cujo futuro, aliás, o ministro da Agricultura de Cavaco Silva já tinha alienado a Bruxelas a troco de uma ninharia de 120 milhões de contos. Lembro-me do subsídio para plantar pêssegos, logo seguido do subsídio para arrancar pêssegos, ou do “giracídio”, o subsídio para plantar girassóis, que deixava os campos todos amarelos e depois todos negros, porque eles caíam de podres no chão, uma vez que o subsídio contemplava apenas o plantio e não a produção e portanto ninguém se dava ao trabalho de os colher. E lembro-me, claro, dos subsídios para a modernização da maquinaria agrícola, que fizeram as delícias dos concessionários BMW e Mercedes topo de gama. Da noite para o dia, vi uma multidão de “chicos-espertos”, de profissionais da indolência e da inutilidade, virarem “empresários” e milionários e um país extasiado, absolutamente apostado em desmentir e troçar daquilo que Ernâni Lopes tinha dito quando assináramos a nossa adesão à UE: “Acabou-se o fado!” Por “acabou-se o fado”, a malta percebeu: “De agora em diante, estamos por conta.” Sim, lembro-me de coisas extraordinárias que contadas não se acredita. Mas a mais extraordinária que vi, nesse “processo de desenvolvimento histórico” que Bruxelas financiou, foi o nascimento de uma universidade privada, numa vivenda próxima do Príncipe Real, em Lisboa, fundada por um par de amigos, nenhum dos quais tinha sequer o 5º ano do liceu e um dos quais era praticamente inimputável: Bruxelas pagou, o Governo licenciou.

Eis porque o “apelo” do ministro Siza Vieira, com o seu saco de milhões às costas, a que os empresários se encontrem com a nossa História me soa mais ao antiquíssimo grito que, ao longo da nossa História, foi sempre sinal de desgraça: “É fartar vilanagem!” Andrà tutto male.

ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Fora tudo o resto, vêm aí então 15 mil milhões “para gastar em três anos”. Já sabemos que, para o PCP e para o Bloco de Esquerda, este dinheiro dado é quase uma afronta: ou porque é pouco ou porque vem com a condição de ser bem gasto. Mas deixemo-los no divã do psiquiatra apenas levemente envergonhados pela figura que nos fazem passar. Mas talvez eles consigam que o Maduro ou o Kim cubram a parada... sem condições! Adiante: outra forma de assumirmos para nós a vergonha que outros nos fazem passar é ver lançarem-se sobre o pote, sem pudor nem cerimónia, os fregueses do costume. E quem são os fregueses do costume?

Para começar, as empresas, tal como seria normal. O problema não está em apoiar as empresas, o problema está na forma como se apoiam e na escolha das que se apoiam. Na Alemanha, Merkel, em vez de injectar os 130 mil milhões que reservou para atacar a crise com “dinheiro helicóptero” nas empresas, seguiu um método indirecto e muito mais justo e transparente: a via fiscal. Desce, e bem, o IVA, o IRC e a TSU e abre créditos fiscais ligados ao investimento e preservação do emprego: desta forma, todas as empresas, sejam pequenas, médias ou grandes, estão em igualdade de condições e são proporcionalmente apoiadas de forma igual. Mas em Portugal, onde o Estado prescindir de ou baixar um imposto é visto como uma ofensa constitucional (nem sequer o Pagamento Especial por Conta sobre lucros de 2020, que já se sabe que não vão existir, foi cancelado), o caminho é o oposto: é o do Estado Pai Natal, com o seu saco de notas às costas, distribuindo o dinheirinho — e aí é que está a raiz do mal — pelos meninos bem-comportados ou que lhe interessa manter bem-comportados. É a velha tradição salazarista do Estado clientelar e protector dos amigos, e é isso que, infelizmente, eu temo que de novo se alinhe no horizonte. Lá virão eles ao saque, os do costume: os bancos que tudo comissionam, as empresas de consultoria, os escritórios de advocacia de negócios confundindo-se com os de tráfico de influências, as cunhas, os compadrios, as fidelidades partidárias, clubísticas, autárquicas, a maçonaria, o cunhado, a prima, o filho, a mulher do secretário... 36 mil milhões, fora o trivial, chega para todos os do costume. Porém, infelizmente, não garante que chegue aos que merecem mas não dispõem de acesso privilegiado nem garante que muitos enriqueçam à custa de mais um encontro falhado com a História. E certamente último.

O “apelo” do ministro Siza Vieira a que os empresários se preparem para gastar 15 mil milhões em três anos soa ao antiquíssimo grito que, ao longo da nossa História, foi sempre sinal de desgraça: “É fartar vilanagem!”

E, depois das empresas amigas, o dinheiro irá jorrar generosamente pelo próprio Estado. Aliás, entre a queda generalizada de todos os indicadores — o PIB, o emprego, o investimento, as exportações, o consumo das famílias —, só há um que o Orçamento suplementar prevê que continue a subir, mesmo antes de chegar o dinheiro de Bruxelas: o consumo público. Para começar, vai aumentar o número de funcionários públicos, quebrada a regra de uma entrada por duas saídas (aliás, nunca exactamente cumprida), pois “a Administração Pública precisa de se rejuvenescer”. E o Estado é um patrão especial: como não despede ninguém e os seus trabalhadores se cansam sempre muito — apesar de trabalharem menos horas do que os outros, terem mais férias, meterem mais baixas e reformarem-se mais cedo (veja-se a resistência dos juízes em voltarem ao trabalho depois de três meses extras de férias covid, ou os professores em estado de “exaustão”, segundo Mário Nogueira, depois de igual tempo a trabalharem em casa, em que mais de metade dos alunos não chegou a contactar com eles e os restantes praticamente se limitaram a receber trabalhos para fazerem) —, não resta ao patrão Estado outra solução que não a de contratar quem venha rejuvenescer e substituir os que sempre se declaram cansados e desmotivados.

E todos estes milhões, além de alimentarem um Estado cada vez maior e mais caro naquilo que não interessa, vai para os sectores do costume e para as políticas do costume e não, claro, para financiar uma oportunidade para fazer diferente: vai para promover e relançar em força o turismo de massas (são 86 milhões para já e só para a promoção lá fora, quase o triplo de tudo o que vai ser dado a uma Cultura moribunda), vão ser milhões para a agricultura intensiva ou para a construção sem freio, sem cuidar de saber de onde virá a água, em todo o lado, enquanto houver um metro quadrado por ocupar e mão-de-obra asiática por explorar.

Enfim, já todos vimos este filme. Parece que anda para aí o professor Costa Silva, com uns papéis na mão e umas ideias novas sobre o futuro de Portugal para mostrar aos ministros. É a esperança que nos resta, mas é bem pouca. É ver como já todos protestam porque a sua existência desautoriza os ministros. Ou muito me engano ou “les jeux sont faits”.


2 Havia uma proposta para os eleitores que consistia em continuar a destruir empresas e postos de trabalho, dizendo aos jovens desempregados, a tal geração mais qualificada de sempre, que abandonassem a “sua zona de conforto” e se fossem juntar aos 300 mil que já haviam emigrado. E que, a pretexto de diminuir o endividamento público (sem resultados correspondentes), entregava ao estrangeiro todas as empresas públicas estratégicas para uma política económica minimamente soberana: a TAP, a ANA, a REN, a EDP, os CTT, o Novo Banco e o mais que adiante se veria. Chamavam a isso o “empobrecimento virtuoso”. Contra a continuação desse estado de desagregação sem futuro, Mário Centeno propôs como alternativa uma política que devolvesse poder de compra e emprego aos abandonados à sua sorte e desse um novo fôlego às empresas, com isso relançando a economia através do consumo interno. Despeitado e desapeado do poder, Passos Coelho anunciou nele o Diabo, mas Centeno deu-nos emprego, crescimento do PIB, o primeiro superávite de toda a democracia, o reconhecimento internacional e, sobretudo, o fim do sufoco. Os que se habituaram a viver do Estado atacaram-no porque fazia cativações nos Ministérios, como se houvesse outra forma de controlar o défice das contas públicas; os medíocres e os invejosos atacaram-no por querer ser governador do Banco de Portugal, como se houvesse alguém mais qualificado para o lugar do que ele, que, se quisesse, tinha outra vez o Eurogrupo à disposição; os demagogos e os ignorantes atacaram-no porque estaria a abandonar o barco em “tempos difíceis”, como se, com 36 mil milhões para gastar e todos os indicadores já a subir no próximo ano, os tempos difíceis para gerir as Finanças fossem agora e não quando se acabar o dinheiro. Mas porque a História é feita de factos e não de desejos recalcados, ela registará que Mário Centeno foi um dos melhores ministros das Finanças que Portugal conheceu. E porque a política é feita de intrigas e não de reconhecimento, não escapou, pois, a uma teia de maledicência final com que os que continuam se despediram de quem já deles se tinha farto. Mas os que pagam impostos não esquecem. E agradecem.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

O charme discreto do cativador

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 12/06/2020)

Daniel Oliveira

A partida de Mário Centeno no início de uma crise põe esta figura absurdamente endeusada em perspetiva. Alguém que ocupa um lugar num momento favorável e o abandona quando o país se prepara para entrar numa das suas maiores crises económicas de sempre não merece ficar na História. E não se trata de um momento de fraqueza. O enorme prestígio de Centeno é uma ficção. Mesmo a ideia de que tem uma excelente imagem como presidente do Eurogrupo é uma ficção. Uma ficção que o inchou e esse inchaço incomodou António Costa, pouco amigo de partilhar o palco.

O que Centeno fez nestes anos nada tem de extraordinário. Com uma situação externa especialmente favorável, que lhe garantiu receitas fiscais simpáticas e redução de despesas em prestações sociais, manteve défices próximos do zero por via da contenção da despesa e do investimento público. Não estou a dizer, como diz alguma oposição, que houve uma continuação da austeridade. Austeridade não são sacrifícios. Os norte-americanos viveram tremendas dificuldades nos anos 30 e Roosevelt tinha politicas opostas às da austeridade. Austeridade, numa política de um governo, é quando a obsessão por indicadores do défice determina toda a política a ponto de prejudicar a economia do país. É uma ortodoxia que tem provas dadas no seu fracasso.

Não se pode dizer, com rigor, que houve austeridade com Centeno. Não porque lhe faltava a ortodoxia, mas porque não precisou dela. A situação era muito favorável. E dificilmente a poderia aplicar plenamente, por depender de negociações com dois partidos. Recordo que muitas propostas de Centeno não foram transpostas do programa do PS para o programa do Governo, em 2015. Porque não foram aceites por BE e PCP.

O argumento em defesa desta ortodoxia foi sempre o mesmo: podemos vir a precisar desta almofada. Foi em nome desta ideia que se adiaram investimentos inadiáveis e que se deixaram degradar varias funções do Estado com custos sociais e para a economia. Escrevi várias vezes que essa almofada desapareceria em semanas, quando viesse mais uma crise. Como era fácil de prever, o endividamento público já saltou para 134,4% do PIB. E o nosso acesso ao crédito depende exclusivamente de decisões europeias sobre todos os países. Porque, dentro do euro, o que é relevante é externo. As décimas do défice são um jogo de aparências políticas entre os países europeus. Um jogo que apela a estratégias burocráticas irracionais.

Não precisando de aplicar políticas de austeridade, porque o contexto económico não o exigia, Centeno aplicou uma receita ortodoxa. Essa receita é inaplicável neste momento – quem se opõe à estratégia definida tem de explicar o que faria a uma economia que neste momento não tem para onde exportar. E esta é a parte estranha da escolha de continuidade. Não se pode dizer que a resposta a esta crise não pode ser a de 2011 e festejar alguém que apenas se notabilizou por cativar despesa aprovada e conseguir manter défices zero num momento económico favorável. E é a versão mais cativadora de Centeno que vai tomar o seu lugar.

Não sei qual é a de Costa. Se ao decidir promover aquele que, no Ministério das Finanças, era o especialista em cativações nos quer dizer que o orçamento de Estado Suplementar e o de 2021 serão meramente indicativos. Se prepara uma remodelação e este ministro é provisório ou está à experiência. Sei que a expressão “mais do mesmo” é especialmente rigorosa. A escolha de João Leão para novo ministro das Finanças não é apenas uma escolha de continuidade, é o reforço da linha ortodoxa no ministério. O que, tendo em conta as opções que estão a ser tomadas, não faz sentido.

Leio, de alguns economistas especialistas em discurso redondo, que o desafio é aplicar a receita de 2015 num contexto diferente. Conseguir políticas contracíclicas com equilíbrio orçamental. Ou seja, ter menos receita, mais despesa e manter as contas na mesma. Não querem um ministro das Finanças, querem um alquimista. Mas não se pode comer o bolo e ficar com o bolo, querer políticas expansionistas europeias e fingir que não são expansionistas. O melhor que se pode tentar é que o défice de hoje não seja divida de amanhã porque, como se aprende com a História, as políticas expansionistas aceleram os fins das crises, poupando em défices e dívidas futuras.

Certo é que protelar despesa aprovada e projetos de investimento não é uma forma de gestão pública racional. Apesar de permitir brilharetes estatísticos, alimenta um Estado mais ineficiente e impede uma estratégia económica que vá para lá das aparências. Não sei se ao cativador sucederá o cativador e meio. Mas talvez não tenha sido nada disso que passou pela cabeça de António Costa quando escolheu João Leão. Dizem que uma das suas maiores qualidades é ser discreto. Costa aprecia essa qualidade em quem esteja ao lado dele. Veremos se tem outras.

O país mais racista é aquele que não o admite

Posted: 12 Jun 2020 03:19 AM PDT

«A morte trágica de George Floyd levou a uma justificada onda de indignação em muitos países, incluindo Portugal. Como sempre, logo há quem se apresse a vir a público lembrar que o país não é racista. Desta feita, coube a Rui Rio, líder do maior partido da oposição, afirmar que “não há racismo na sociedade portuguesa”.

A afirmação é tonta, desde logo, porque há racismo em todas as sociedades. Não só porque há pessoas abertamente racistas em todos os países como (quase) todas e todos nós somos, implicitamente e em vários graus, racistas. Se quer uma prova, vá ao site Project Implicit da Universidade de Harvard e faça o teste do preconceito racial. Este teste mede o preconceito, mesmo que o queira esconder deliberadamente ou, simplesmente, não tenha consciência dele. Vai ver que, mesmo se pensa que não é racista, a sua mente vai pregar-lhe partidas.

Segundo os dados do Project Implicit trabalhados por investigadores da Universidade de Sheffield, Portugal é dos países com mais preconceito implícito da UE, a par de Itália e ultrapassado apenas por alguns países de Leste. Depois, há o racismo declarado, aquele que as pessoas declaram mesmo sem testes sofisticados de associações implícitas. Como aqui lembrou Luís Aguiar-Conraria em Janeiro, o European Social Survey pergunta às pessoas se consideram que há etnias biologicamente menos inteligentes e o país com maior percentagem de pessoas que concordam com esta afirmação é Portugal. É o único país em que mais de metade dos inquiridos concordam.

Uma questão diferente é saber se o racismo das pessoas tem expressão na sociedade e na economia. Há uma semana, o Expresso falava dos “Seis indicadores para avaliar a desigualdade entre brancos e negros nos EUA” e apontava a desigualdade de rendimento, salarial, de riqueza acumulada, de desemprego, de pobreza e de saúde (como a probabilidade de morrer de covid-19, que já assinalei no PÚBLICO há duas semanas, a prevalência de doenças crónicas, o acesso a seguro de saúde). Como em Portugal continuamos com a teimosia de não recolher dados étnicos, não podemos quantificar estas disparidades com dados oficiais. Sem quantificar, dificilmente podemos agir.

Felizmente, a Agência Europeia para os Direitos Fundamentais conduziu em 2016 o Inquérito à Discriminação de Minorias na UE, baseada em entrevistas presenciais com mais de 25 mil indivíduos de diferentes minorias étnicas nos 28 países. O inquérito tem informação para várias etnias, mas vou concentrar-me aqui nas pessoas com origem na África subsariana. Em Portugal, um terço dessas pessoas afirma ter sido vítima de discriminação nos últimos cinco anos em diversos domínios: procura de emprego e no próprio emprego, procura de casa, contacto com a escola dos filhos ou outras instituições educativas, na utilização de serviços públicos ou privados, restaurantes, hotéis, lojas, bares, contactos com a administração pública, utilização de transportes públicos. Os indivíduos da segunda geração sentem-se mais discriminados: são 48% a afirmar que já foram vítimas de discriminação. Quase um quarto afirmam que foram vítimas de assédio ou perseguição devido à sua origem étnica ou estrangeira nos últimos cinco anos.

Estes números mostram como foi absurda e infeliz a comparação com investidores bolsitas que o deputado Cotrim Figueiredo levou ao parlamento. Senhor deputado: o racismo que dói implica falta de oportunidades. A menos que me tenha escapado alguma coisa, oportunidades não faltam à nata da finança que quis trazer ao debate.

Para além dos inquéritos, basta olhar em volta para perceber como este país trata as minorias. Há um ano, quando defendi quotas aqui no PÚBLICO, desafiei os leitores a pensar em nomes de pessoas oriundas de minorias que se destaquem em Portugal nos lugares de poder: política, empresas, comunicação social, academia. Infelizmente, há muito poucos. É que o problema vem de trás. Não sabemos como é o percurso escolar destas crianças, mas adivinhamos que é pejado de espinhos. O inquérito que citei mostra que apenas 5% das pessoas oriundas da África subsariana terminam o ensino superior, quando na população portuguesa em geral esse valor é de 20%.

Será a falta de representação da minoria negra (e outras) no poder que explica o ensurdecedor silêncio das empresas e instituições portuguesas perante o movimento Black Lives Matter nas últimas semanas? Nos EUA, o número de grandes empresas que apoiou publicamente o movimento gerou surpresa. É provável que pelo menos algumas destas intervenções vão além da mera manobra de comunicação, como assinalou o Financial Times. Por um lado, há um risco de imagem, já que as sondagens mostram que nos EUA a polícia é mais respeitada do que a religião. Por outro, as intervenções mais marcantes vieram de empresas com executivos negros, como o Citigroup, cujo director financeiro falou de experiências pessoais de discriminação. Não foram só as empresas, nem foi só nos EUA. A generalidade das universidades inglesas e americanas publicaram posições públicas nos seus sites e a American Economic Association também.

O Conselho de Direitos Humanos da ONU tem um grupo de trabalho de “especialistas em pessoas de origem africana” que fez uma visita a Portugal em Maio de 2011. As conclusões estão publicadas num pequeno relatório de Agosto de 2012, disponível online. Talvez tenha passado despercebido porque estávamos a braços com a troika e a visita do grupo de trabalho aconteceu durante o último estertor do governo Sócrates. Logo na primeira página, o relatório diz: “o grupo de trabalho conclui que os desafios enfrentados pelas pessoas de ascendência africana em Portugal estão principalmente relacionados com a falta de reconhecimento como um grupo específico na política nacional e no quadro legislativo” e recomenda, entre outras coisas, “a revisão da política que impede a recolha de informação desagregada por origem racial ou étnica”. Pois. O país mais racista é o que escolhe varrer o problema para debaixo do tapete.»

Susana Peralta

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Guia para derrubar estátuas

por estatuadesal

(Henrique Monteiro, in Expresso Diário, 11/06/2020)

Estátua de Gengis Khan na Mongólia, diz-se ser a maior estátua equestre do mundo

Além da idiotice que é olhar para a História com os olhos de hoje (não viveremos para ver o que dirão, daqui a 100 ou 200 anos, dos nossos heróis atuais), a ideia de que os seres humanos são dominados apenas por uma entre várias características é estúpida e primitiva. Sim, Churchill teve umas saídas racistas, mas livrou-nos de um (ou dois) totalitarismos sufocantes.


É sempre lamentável – e infelizmente é cada vez mais comum – verificar como um conjunto de energúmenos dão cabo de boas causas. Há imagens lindas e comoventes das manifestações antirracistas após o assassínio de George Floyd por um polícia. A própria família de Floyd apelou a que não existissem distúrbios. Porém, isso não impediu que extremistas partissem e pilhassem o que podiam, mesmo se de comerciantes sem outros meios de subsistência se tratasse.

Mas chegou-se ao cúmulo em Bristol, com o derrube e lançamento à água, de uma estátua do benfeitor da cidade (no séc. XVIII) que foi um traficante de escravos, e com a vandalização da estátua de Churchill em frente ao Parlamento de Londres, com o argumento de que o herói da II Guerra terá sido racista.

Além da idiotice que é olhar para a História com os olhos de hoje (não viveremos para ver o que dirão, daqui a 100 ou 200 anos, dos nossos heróis atuais), a ideia de que os seres humanos são dominados apenas por uma entre várias características é estúpida e primitiva. Sim, Churchill teve umas saídas racistas, mas livrou-nos de um (ou dois) totalitarismos sufocantes; sim, Colston ganhou dinheiro com o tráfico negreiro (numa época em que a consciência geral não condenava essa atividade, desenvolvida por negros, árabes, indianos, índios), mas fez na sua cidade (Bristol) e noutras, hospitais, creches, casas de recolhimento para pobres, enfim foi um filantropo. A sua estátua, atirada ao rio por um conjunto de inconscientes (que o próprio presidente da Câmara da cidade não condenou) mostra que este olhar unívoco sobre as personalidades do passado é uma desgraça a que poucos dão combate.

Por mim, e alinhando nesta onda histérica, tenho várias propostas. Por exemplo, todas as homenagens a Júlio César, ele próprio dizimador dos gauleses e possuidor de escravos. Mas não devemos ficar por aqui,

Na Hungria há uma estátua de Átila. Acorra-se a derrubá-la. Esse Átila invadiu a Europa e semeou o terror por aqui – tanto quanto Colston entre os negros, provavelmente. A palavra escravo provém de Eslavo, e perde-se na História quando os eslavos passaram a ser os seres mais procurados como… escravos.

A maior estátua equestre do mundo é na Mongólia. Dedicada a Gengis Khan, outro aterrorizador de chineses, indianos e europeus. Penso que é de bom senso derrubá-la.

Maomé II que fez cair Constantinopla e pôs fim ao Império Romano do Oriente, deixou que um saque (leia-se genocídio) brutal decorresse durante um dia inteiro. Profanando a cultura local, entrou a cavalo na principal Igreja (Santa Sofia, ou Hagia Sophia, em grego) e proclamou-a mesquita, numa demonstração de feroz colonialismo intolerante. Não sei se haverá por aí alguma coisa para destruir, mas há a de Solimão o Magnífico que fez do Império Otomano uma enorme potência imperialista, atacando os húngaros e os próprios austríacos, para além de gregos e búlgaros. Desde o seu antecessor Murat I que os otomanos raptavam crianças aos cristãos para os educarem de forma muçulmana e agressiva, transformando-os em janízaros, os mais fiéis ao sultão. Solimão tem uma estátua em Istambul que deve ter como destino o fundo do mar (para citar o piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton, a propósito de Colston).

Sitting Bull, o célebre ‘Touro Sentado’, índio que conjuntamente com ‘Crazy Horse’ dizimou as tropas norte-americanos em Little Big Horn (Montana), tem um monumento e um busto no Estado de South Dakota. É duvidoso. Tanto mais que ele depois se juntou ao circo de Buffalo Bill e ambos divertiram a América racista e a Europa colonialista. Teremos de pensar nesse monumento.

Como no da rainha Nginga, em Luanda. É certo que ela afrontou os portugueses por questões que nada têm a ver com a lenda que se fez. Mas é mais ou menos certo que, para não ficar de pé frente a um pouco cavalheiresco governador de Angola, mandou um negro pôr-se de quatro e sentou-se em cima dele. Num gesto que é manifestamente racista ou outra coisa qualquer que lhe queiram chamar.

E a rotunda da Boavista? Já viram que se chama Mouzinho da Silveira? O homem que derrotou Gungunhana e o obrigou às maiores humilhações? Será isto admissível? Para não falar de Pedro IV no Rossio, que parece não ser outro do que o seu primo Maximiliano do México, entretanto deposto quando a estátua feita em França ia a caminho do Novo Mundo. Não me recordo por que razão terá sido deposto, mas lá que o México estava cheio de escravos (se é que ainda os não tem…), sem dúvida.

Enfim, por motivos semelhantes a Colston, e bem piores do que as frases de Churchill, há muita coisa para os radicais antifa se entreterem. É pena que eles apenas olhem com os olhos de hoje, com o preconceito e certo ódio ao homem branco.