por estatuadesal
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/06/2020)
Daniel Oliveira
Sem querer entrar em polémica com Vítor Serrão, porque é de outra coisa que quero tratar, foi-me impossível ler uma frase do seu texto sem espanto, apesar de ela repetir uma das muitas ideias indiscutíveis que foram ditas e escritas nestas semanas. Referindo-se à “vandalização de monumentos que em algum momento passaram a ser vistos como símbolos nefastos por parte de determinadas dinâmicas políticas, sociais, religiosas, ou de defesa de um gosto preestabelecido”, coisa que mostra “à saciedade quão acéfalo é o pendor dos homens para a violência gratuita”, o historiador escreve: “a violência contra as obras de arte é sempre um ato fascista, sejam quais forem as razões invocadas ou as bandeiras que se desfraldem para o levar à prática.” Recordo que se está a falar de monumentos no espaço público, a que genericamente se chama “obras de arte”, mandados erguer pelo poder político circunstancial para celebrar o passado de uma determinada forma, e não de peças de museu para o compreender.
D.R.
Não consegui, ao ler esta frase, deixar de me recordar das cabeças das estátuas de Hitler, numa rua de Berlim depois da libertação, e de Estaline, em Budapeste, durante a revolta húngara. Ou as de Lenine um pouco por todo o bloco de Leste. Ou a de Saddam, em Bagdad. Terão sido aqueles atos violentos contra objetos manifestações de “fascismo”? É das poucas coisas que aqui escreverei com toda a certeza: mil vezes não. E só alguém tão embrenhado na sua função zeladora do objeto mas totalmente desprovida de sentido de justiça política e empatia pode atrever-se a dizer que o foi. Foi um ato libertador, e não há coisa mais justa para dizer que as estátuas do poder que oprime estão condenadas a cair dos seus pedestais. Porque elas não se limitam a ser obras de arte para os estudiosos observarem. São instrumentos de poder e, quando enfrentadas, de libertação.
D.R.
Dirão que não faz sentido comparar aquelas estátuas decapitadas ou derrubadas com o que se passa hoje. Não estou ainda aí. O autor diz que é “sempre”, por isso só pode incluir estes momentos numa demonstração de “fascismo" “acéfalo". Não me passaria tal ideia pela cabeça, talvez por achar que os símbolos são isso mesmo: símbolos. Pelo menos quando estão numa praça. Outra coisa, bem diferente, é quando são removidos para um museu. Mas, para que isso aconteça, é preciso que o poder político o decida fazer. É preciso um ato político. A forma como isso acontece em democracia já a deixei no meu texto de sábado e não preciso de voltar a ele. Mas talvez comece, como começou em Bristol, por uma revolta.
Se me acompanham no regozijo de ver o povo celebrar a queda de estátuas de genocíidas como Hitler e Estaline, quer dizer que abandonaram a posição principista que transforma estátuas construídas pelo poder em objetos sagrados. Ótimo, porque isso torna o debate mais complicado e, em regra, menos “acéfalo”.
Passemos para a outra frase que por aí campeia: que a História não se reescreve. Até se tem dito mais: que ela não se apaga - mas disso também já tratei no sábado. Quando uma comunidade se confronta como uma estátua que está no espaço público que usa faz o oposto de apagar a História. Está a sublinhar a História. Apagar a História é a estátua ficar lá, já sem qualquer significado, como mero adorno, sem que a maioria saiba quem é o representado.
A ideia de que a História não se reescreve resulta de haver quem ache que ela já está escrita. Definitivamente. Na pedra. Não me espanta que alguns acreditem nisso. Há quem ache que a História é um conjunto de factos indisputáveis. Mas, verdade seja dita, ninguém acha mesmo isso. É conforme o desconforto e o conforto que sentem com o que já foi fixado. Os mesmos que pedem que não se reescreva a História gostam de ver historiadores como Rui Ramos a reescrever o que era apresentado como certezas sobre o Estado Novo. E vice-versa: os mesmos que querem rever a história dos “descobrimentos” chamam “revisionista”, em tom acusatório, a Rui Ramos por querer rescrever a história do Estado Novo.
Não fazemos outra coisa na História que não seja reescrever a História. Reescrevemos porque conhecemos novos factos. Reescrevemos porque mudam-se os valores e o nosso olhar muda sobre esses factos. Pelo menos sobre a forma como os ligamos e enquadramos. E reescrevemos porque são mãos diferentes, com origens diferentes, a escrever a História. A ideia de que não devemos ter um olhar anacrónico sobre o passado está globalmente certa mas tem os seus limites. A expulsão dos judeus aconteceu há mais de meio milénio e nenhuma pessoa decente deixa de dizer que foi intrinsecamente errada. Curiosamente, com menos rodriguinhos e adversativas do que quando se fala da escravatura. E dizê-lo nunca impediu que houvesse contexto.
Quando se fala de “devolver” artefactos às ex-colónias isso é tratado como um absurdo. A História não se repara, dizem. Quando se tratou de “devolver” a nacionalidade aos descendentes de judeus sefarditas a votação foi unânime no Parlamento. Concordo evidentemente com as duas mas, se não se importam, não quero debater o seu conteúdo. Quero tentar perceber porque está a nossa relação com os judeus que perseguimos e expulsámos relativamente pacificada, de tal forma que não nos importamos de fazer julgamentos supostamente anacrónicos sobre a História, e a nossa relação com os negros que escravizámos é tratada como algo que deve ser confinado ao seu contexto. Já nem falo dos ciganos, que pura e simplesmente foram obliterados da História, sem direito a que sequer se reconhecesse a perseguição de que também foram alvo.
A diferença está no facto de os judeus, depois da segunda guerra, terem conquistado o direito à visibilidade e terem, até porque contaram com o apoio de grande parte dos vitoriosos, passado a ser fazedores da sua própria História. O seu sofrimento coletivo, mesmo quando herdado pela memória, passou a condicionar a forma como olhamos para o passado. De tal forma que garantimos aos herdeiros da expulsão, muitos séculos passados, o direito à nacionalidade. Reparámos uma História que nem sempre foi contada como se conta hoje. E fizemos muito bem. Fomos forçados a isso.
Quando as pessoas se perguntam como pode um jovem negro sentir-se insultado com a estátua de um traficante de escravos, que morreu há séculos, não se pergunta porque se sente o judeu insultado com uma suástica ou, andando mais para trás, com qualquer glorificação de responsáveis pelos pogroms Porque a herança de sofrimento é aceite para uns e não é aceite para outros. E não é por o antissemitismo ter deixado de existir que é aceite para uns e não para outros. É porque uns conquistaram o direito à visibilidade, enquanto herdeiros e sujeitos da História, e outros não.
O que está a acontecer, um pouco por todo o mundo ocidental, é que novos sujeitos ganham (muito mais nos EUA e no Reino Unido do que cá, onde as ações espetaculares ainda são mimetismo inconsequente) o direito a reescrever a História. E é bom sublinhar que aqueles que não escreveram a História que está fixada também não tiveram o direito de erguer estátuas. Esta chegada de novos atores à disputa do espaço público e da História é dolorosa para quem acha que ela já está convenientemente escrita. Não percebendo – ou percebendo muito bem – que a disputa pelo passado é sempre uma disputa pelo presente.