Posted: 18 Jun 2020 03:41 AM PDT
«Eis que no Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) se lê que o “Governo pretende, até ao final da legislatura, ter em teletrabalho pelo menos 25% dos trabalhadores [da Administração Pública] de entre o universo daqueles que exercem funções compatíveis com esta modalidade de trabalho, permitindo maior flexibilidade na prestação do trabalho e melhor conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional” (Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2020).
Esse propósito suscita-nos várias questões, desde logo: em que se fundamenta esta intenção do Governo que invoca também como finalidade uma melhor conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional? Em que estudos tão cristalinos se inspirou para que tal intenção dispense, ex ante, a integração de conhecimento, o debate público e a consulta aos sindicatos? Não constava do Programa do PS (legislativas de 2019) promover “um amplo debate em sede de concertação social, com vista a alcançar um acordo global e estratégico em torno das questões da conciliação entre o trabalho e a vida pessoal e familiar, da natalidade e da parentalidade, incluindo na negociação coletiva temas como o teletrabalho, os horários de trabalho, licenças e outros instrumentos de apoio à conciliação”? Se a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), em articulação com a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, e com o apoio da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), estão a promover (e tão oportunamente) um concurso para financiar projetos que permitam a produção e a difusão de conhecimento sobre os impactos de género da pandemia, não seria mais avisado aguardar pelos resultados dos estudos para delinear uma linha de ação que, afinal, nada tem de emergencial?
Um dos objetivos do concurso é, aliás, financiar projetos que versem sobre as transformações nas formas de organização do trabalho e a conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar. E há outras investigações a serem concluídas ou ainda em curso, além daquelas realizadas antes da crise pandémica. Mas qual o estudo de diagnóstico que sustenta a fixação da meta de 25%? Está ainda por realizar um estudo que, a propósito destes temas, envolva especificamente as trabalhadoras e os trabalhadores da Administração Pública. Não teria sido mais ponderado estimular e aguardar por um diagnóstico atualizado, cruzá-lo com o conhecimento existente, envolvendo especialistas, sindicatos e organizações da sociedade civil num debate público amplo e devidamente informado?
O PEES elucida, ainda, que serão equacionados espaços de “coworking”, antecipando que estes poderão localizar-se no interior do país de forma a contrariar o isolamento social associado ao teletrabalho e a fomentar a portabilidade dos postos de trabalho da Administração Pública. Desde quando é que a mitigação do isolamento social anula o risco de isolamento profissional? E porque não considerar o risco de individualização e fragmentação das/os trabalhadoras/es ?
Informa-nos o exaustivo estudo coordenado pela Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e Trabalho e pela Organização Internacional do Trabalho (Eurofound/ILO, 2017) que as pessoas em teletrabalho tendem a identificar como benefícios o tempo poupado em deslocações pendulares (casa-local de trabalho-casa), a maior autonomia na gestão dos tempos e a maior produtividade. Todavia, os riscos do trabalho à distância são por elas amplamente destacados: tendência para a intensificação do trabalho; diluição das fronteiras entre o trabalho profissional e a vida familiar e pessoal; isolamento social; fragilização das condições de saúde, sobretudo pela exposição aos riscos psicossociais; e diminuição do bem-estar individual.
Apenas as situações não permanentes de teletrabalho/trabalho remoto – e que envolvem, portanto, alternância com trabalho presencial – estão associadas a algum equilíbrio entre riscos e benefícios. No caso das mulheres, e sobretudo das que são mães, há a associar – como aqui referi noutro momento ("(Des)ilusões: teletrabalho, qualidade de vida e igualdade de género") – a sobrecarga de tarefas domésticas e familiares e as frequentes interferências a este nível, agravando a intensificação do trabalho e o sacrifício do tempo pessoal e de descanso.
Creio ser difícil, a partir dos resultados das investigações sobre as experiências do teletrabalho, sustentar uma visão monolítica e determinista. Trata-se de uma modalidade que envolve benefícios e riscos, sendo certo que estes são matizados pelas desiguais condições objetivas e subjetivas das trabalhadoras e dos trabalhadores, incluindo pelas desigualdades que têm a marca do género. Na UE em geral, há mais homens do que mulheres envolvidos/as em “teletrabalho/trabalho à distância com recurso a tecnologias digitais”; no entanto, são mais as mulheres que se encontram regularmente em regime de teletrabalho no domicílio (Eurofound/ILO, 2017, Working anytime, anywhere: The effects on the world of work).
É evidente que a flexibilidade do local de trabalho, tal como a flexibilidade de tempo de trabalho, tem a marca do género – isto é, as motivações, as experiências e os efeitos dessa flexibilidade não são indiferentes aos papéis socialmente atribuídos às mulheres e aos homens. Quantas mulheres e quantos homens, com filho/a(s) com idade até três anos, transitaram para o regime de teletrabalho, à luz dos termos previstos no Artigo 166.º do Código do Trabalho? Eis uma estatística que importa recolher. Sabemos, porém, que quando a flexibilidade está associada a necessidades de conciliação com a vida familiar, são essencialmente as mulheres as trabalhadoras flexíveis, com penalizações na avaliação de desempenho, nas remunerações, nas oportunidades de formação e na progressão da carreira profissional. Basta, aliás, verificar a desproporção de pedidos de parecer que chegam à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) quando há intenção de recusa da entidade empregadora em conceder horário flexível a trabalhadoras ou trabalhadores com filhos/as até aos 12 anos; 87% desses pedidos são efetuados por mulheres.
O que se espera do Governo é que seja coerente nas orientações políticas e de intervenção, de modo a efetivar a igualdade entre mulheres e homens, fomentando a partilha de responsabilidades e a harmonização do tempo dedicado ao trabalho pago e ao trabalho não pago (doméstico/cuidar) entre mulheres e homens. Um dos efeitos que importa ponderar, quando se estimula o teletrabalho (ou a trabalho a tempo parcial), é o possível agravamento das desigualdades entre mulheres e homens no domínio profissional e familiar. O mesmo Governo que aprovou uma Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação, incluindo um Plano Nacional de Ação para a Igualdade entre Mulheres e Homens, não pode deixar de refletir ex ante sobre os possíveis impactos na vida das mulheres e dos homens que podem advir das intervenções previstas no quadro do presente programa de adaptação estrutural da economia portuguesa.
O Estado Português está obrigado à integração transversal e sistemática de uma perspetiva de igualdade entre mulheres e homens nas suas políticas setoriais e nos respetivos orçamentos. Qualquer programa que contemple medidas de emergência, estabilização ou recuperação da economia portuguesa tem necessariamente de a incorporar.»
Sara Falcão Casaca