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domingo, 28 de junho de 2020

Pobre Lisboa

Posted: 27 Jun 2020 03:49 AM PDT

«Os incêndios de 2017 revelaram um país com grande parte do território abandonado, sem pessoas nem atividades económicas, envelhecido e deslaçado. Não foi o progresso e a desruralização que o esvaziou. Foi o imparável minguar das cidades médias, de que dependem os territórios que estão entre elas. As autoestradas que se fizeram e as linhas férreas que se destruíram são uma pequeníssima parte do debate, porque de pouco servem se não servirem economia nenhuma. Um país que perde indústria, agricultura e economia de proximidade está destinado a destruir a sustentabilidade do seu território.

O resultado disto foi um crescimento unipolar, concentrado em Lisboa. Em “Cuidar de Portugal” (Almedina), José Reis descreve o processo: entre 2001 e 2018, a população da Área Metropolitana de Lisboa cresceu 6,3%, enquanto o Norte teve uma queda demográfica de 1,3%, o Centro de 5,7% e o Alentejo de 9,1%. Até o Algarve, que costumava crescer, começou a perder população em 2011. Sete concelhos de Lisboa cresceram mais de 18%, 140 do resto do continente perderam entre 10% e 40% da população. Durante este período, a especulação imobiliária e o turismo também expulsaram os lisboetas da capital. Formou-se um ‘donut’, cada vez mais denso nas periferias e vazio no seu núcleo. É nessas periferias sobrelotadas que se encontram os que abandonaram o resto do país, os que foram expulsos do centro da cidade e os imigrantes. Mal servidas de transportes, de ordenamento e de habitação de qualidade, acumulam pobreza e exclusão. É por isso que a polémica em torno da redução dos preços dos passes sociais, tratada como mais uma benesse a Lisboa, foi tão imbecil. Os pobres das periferias da capital são a consequência do abandono do resto do país.

Acreditar que umas quantas festas ou o exemplo de políticos explica a concentração de surtos em freguesias da coroa norte da periferia da capital é conhecer mal a região onde se acumula quase um terço da população nacional. Enquanto os surtos iniciais no Norte foram em lares de idosos ou importados, graças à indústria exportadora, o padrão dos novos infetados de Lisboa são pobres, trabalhadores precários e população migrante, obrigados ao uso de transportes públicos desadequados e a viver em casas sobrelotadas. Sobretudo jovens adultos, o que explica a baixa letalidade. E com prevalência inicial em plataformas logísticas, com trabalho desqualificado. Este perfil é o de uma região que continua a ser tratada, no discurso público, como privilegiada. Não percebem que a riqueza de Lisboa esconde as maiores bolsas de desigualdade do país. O debate partidário vê as consequências dos incêndios de 2017 e do desconfinamento de 2020, muito mais grave as primeiras do que as segundas, como um sinal de incompetência do Estado. Mas é mais profundo do que isso. São dois retratos sociológicos da mesma realidade: um país que perdeu a sua capacidade produtiva na indústria e na agricultura e depende cada vez mais de serviços desqualificados. Por isso, expulsa gente do conjunto do território e concentra-a à volta de uma cidade inacessível. A esta tendência, que se agravou nas duas últimas décadas, chamamos de subdesenvolvimento.»

Daniel Oliveira

sábado, 27 de junho de 2020

JOHN BOLTON ESTÁ CONTANDO A VERDADE, MAS NÃO PODEMOS ESQUECER DA SUA CARREIRA TERRÍVEL E PERIGOSA

Jon Schwarz

22 de Junho de 2020, 17h42

O NOVO LIVRO de memórias de John Bolton sobre seus dias no governo Trump, “The Room Where It Happened” [A sala onde tudo aconteceu, sem edição brasileira], é um relato preciso do que ele viu na Casa Branca como consultor de segurança nacional? A resposta, quase certamente, é que sim, tornando-o um registro histórico valioso. Os jornalistas devem estar particularmente interessados em saber que Donald Trump disse que nós deveríamos “ser executados”.

Podemos acreditar no que Bolton diz não porque ele tenha um longo histórico de honestidade. Pelo contrário, ele é um dos indivíduos mais enganadores a ocupar altos cargos nos EUA. No entanto, Bolton também é extremamente inteligente para os padrões da direita, e tem um profundo senso de interesse próprio. Suas mentiras no passado sempre foram sobre pessoas e países mais fracos do que ele, que não podiam cobrar um preço por sua desonestidade. Por outro lado, quando Bolton ataca quem é mais poderoso que ele, como um presidente ainda no cargo, podemos ter certeza que ele tem o cuidado de contar com a realidade ao seu lado.

Mas, quaisquer que sejam os méritos do novo livro de Bolton, é importante lembrar que ele não é um herói da verdade. A seguir, uma breve lista de algumas das suas ações terríveis ao longo de uma duradoura e destrutiva carreira.

  • Bolton apoiou com veemência a Guerra do Vietnã, mas também se opôs com veemência à ideia de ter que combater nela. Antes de se formar em Yale, ele se alistou na Guarda Nacional de Maryland para garantir que evitaria o combate. Mais tarde, ele explicou: “eu não queria morrer em um arrozal do Sudeste Asiático”, sugerindo que estava oferecendo generosamente a oportunidade para quem efetivamente quisesse morrer dessa forma. Bolton logo deixaria a Guarda Nacional para estagiar no gabinete do então vice-presidente Spiro Agnew.
  • Talvez o impacto mais poderoso de Bolton na política norte-americana seja o mais antigo e menos conhecido de todos: seu papel como um iniciante advogado de direita destruindo as reformas no financiamento de campanha do pós-Watergate. Em suas memórias, Bolton escreve orgulhosamente sobre seus esforços no processo Buckley contra Valeo, que resultou em uma decisão da Suprema Corte de 1976 mais importante que a do caso Citizens United. A decisão estabeleceu limites para gastos com financiamento de campanha e autofinanciamento por candidatos super-ricos. Como Bolton explica: “todos sabiam que a decisão em Buckley contra Valeo poderia determinar (…) a forma futura da política americana”. Ele estava certo. Sem esse caso, Donald Trump nunca seria capaz de gastar dezenas de milhões de dólares do próprio bolso para ser eleito e, depois, contratar Bolton.
  • Bolton ocupou vários cargos diferentes no governo Reagan nos anos 1980. Uma obsessão do governo estava matando as regulamentações internacionais sobre o comércio de fórmulas para bebês em países sem água potável. Uma subordinada escreveu mais tarde que, quando se recusou a ajudar nesse projeto, Bolton “gritou que a Nestlé era uma empresa importante e que ele estava me dando uma ordem direta do presidente Reagan”. Ele então tentou demitir a funcionária e, quando não pôde fazer isso, fez com que ela fosse realocada para um escritório no porão.
  • Bolton ingressou no governo George W. Bush como subsecretário de estado para o controle de armas. Em 2002, ele declarou que Cuba tinha um programa ofensivo limitado de armas biológicas. Quando um analista do Departamento de Estado contestou o teor mais forte utilizado em um rascunho anterior do discurso, Bolton (como de hábito) tentou fazer com que o analista fosse demitido.
  • Nesse mesmo ano, Bolton conseguiu que o diplomata brasileiro José Bustani fosse removido de seu cargo de chefe da Organização para a Proibição de Armas Químicas, a OPAQ. “Nós sabemos onde seus filhos moram”, disse Bolton a Bustani quando tentou convencê-lo a sair. “Você tem dois filhos em Nova York”. O pecado de Bustani foi convencer o Iraque a assinar o tratado internacional de proibição de armas químicas. Isso, por sua vez, levaria a inspeções intrusivas da OPAQ, o que teria demonstrado que o Iraque não tinha arma alguma. Do ponto de vista de Bolton, esse seria o pior resultado possível, pois dificultaria um ataque dos EUA ao Iraque.
  • Em 2015, Bolton escreveu um artigo no New York Times com o título “Para parar a bomba do Irã, bombardeie o Irã”. Ele estava cheio das falsidades características de Bolton, tudo para defender uma guerra não provocada.
  • Pouco antes de Trump trazer Bolton para o seu governo em 2018, Bolton escreveu um artigo para o Wall Street Journal pedindo mais uma guerra não provocada, desta vez com a Coreia do Norte. Nele, Bolton argumentou que os presidentes agora deveriam poder ignorar a cláusula dos poderes de guerra da Constituição, que reserva ao Congresso o direito de declarar guerra, assim podendo atacar outros países sempre que desejarem.

E isso mal passa da ponta do iceberg da cruzada de extrema direita que Bolton promoveu durante toda a vida. Provavelmente levaremos anos até ter uma dimensão completa de suas ações como consultor de segurança nacional. Mas, em certo sentido, a expulsão de Bolton do governo Trump mostra quão bem sucedido ele tem sido. Como muitos revolucionários extremistas, ele triunfou e depois descobriu que as pessoas que finalmente tomaram o poder no caos não compartilharam seus objetivos e, finalmente, decidiram que ele próprio deveria ser expurgado.

A delação do Queiroz

Sábado, 27 de junho de 2020

No final do dia de ontem o repórter da CNN Brasil Daniel Adjunto relatou que Fabrício Queiroz está pensando em uma delação premiada. Queiroz, por tudo o que se viu depois de sua prisão, não era apenas operador de rachadinhas, mas o tesoureiro da família Bolsonaro. O dinheiro operado por Queiroz, como mostrou o MP do Rio, vinha de diversas fontes. O tesoureiro recebeu, por exemplo, R$ 400 mil de Adriano Magalhães da Nóbrega, o capitão Adriano, chefe da milícia Escritório do Crime, envolvido no assassinato de Marielle Franco. Adriano, que era um arquivo vivo, foi fuzilado por policiais.

Mas o que pode contar Fabrício Queiroz?

Engana-se quem pensa que a lama que escorre em Flavio Bolsonaro não tem nada a ver com o pai. Fabrício Queiroz depositou dinheiro na conta da primeira dama Michele Bolsonaro. É aqui que as histórias sem juntam.

Isso porque o dinheiro não era de Michele, mas do Jair, como o próprio presidente declarou. "Eu podia ter botado na minha conta. Foi para a conta da minha esposa, porque eu não tenho tempo de sair. Essa é a história, nada além disso."

Jair alegou um "empréstimo" que teria feito a Queiroz, sem mostrar provas disso (empréstimos precisam ser declarados no IR).

Em se confirmando que Queiroz era o operador de um esquema ilegal que faturou milhões de reais, teremos o presidente da República que afirma que recebeu dinheiro do operador desse esquema, sem comprovar, até agora, o motivo.

Os Bolsonaro defendem as milícias há muitos anos. Flavio queria até mesmo legalizá-las. Jair disse que eles faziam a "segurança das comunidades", em um tom que fazia parecer que criticar milicianos era injusto. 

Na fala pública acima, o presidente praticamente descreve a máfia italiana: um grupo armado que "organiza a segurança da vizinhança" em troca de dinheiro – me pague para que eu não faça mal a você. Extorsão pura, um dos mais antigos crimes das máfias mundiais.

Milícia não é segurança comunitária, milícia é crime.

Em uma decisão torta, o Tribunal de Justiça do Rio deu a Flávio o foro especial. A manobra tem tudo para ser derrubada. A quadrilha (de festa junina, bem entendido) ganhou tempo, mas as investigações estão muito avançadas para serem destruídas agora. A mulher de Queiroz segue foragida. O medo do tesoureiro é que ela seja presa. O jornal Valor Econômico apurou que um emissário de Márcia Oliveira de Aguiar, falando também em nome da filha dela com Queiroz, Nathália, foi enviado a dois escritórios de advocacia do Rio de Janeiro para sondar uma delação. E de quem Nathália foi funcionária fantasma? Do Jair.

Se puxar a pena, vem a galinha.

Há um país escondido

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 27/06/2020)

Miguel Sousa Tavares

Viajo para Lisboa através do interior alentejano, evitando as auto-estradas e saboreando o prazer de conduzir numa velha mas restaurada estrada nacional, a melhor forma de apreciar a paisagem e perceber o que vai mudando ou não vai mudando por esse país adentro. Algures, numa vila ainda branca, paro numa tabacaria para comprar jornais, uma raridade nos tempos que correm: alguém que ainda vende jornais e alguém que ainda os quer comprar. A dona da tabacaria mete conversa comigo e, depois de me interrogar sobre o estado do país, informa-me sobre o estado do local: diz-me que ela não fechou um único dia, porque vive daquilo, mas ali, jura, ninguém quer fazer nada. Antes foi por causa do confinamento, agora é por causa do desconfinamento, porque as pessoas dizem que agora precisam de se descontrair e “gozar”. “Aqui na terra e ao redor só há três profissões: pensão de reforma, subsídio de desemprego e RSI.” Eis uma tirada — penso para comigo — que se alguém se atrevesse a dizer em voz alta seria crucificado. E, de facto, até ela diz-me aquilo quase em segredo, tão baixinho que mal consigo ouvi-la e só depois de se certificar que não há ouvidos à porta do estabelecimento.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Estamos a poucos quilómetros da barragem de Alqueva (“Construam-me, porra!”), que nos garantiam ir gerar milhares de postos de trabalho no Alentejo e onde há uns anos circulavam à boca cheia histórias de empreiteiros que andavam em vão, de café em café, pelas aldeias vizinhas, à procura de quem quisesse trabalhar nas obras, ouvindo invariavelmente a resposta de que ganhavam quase o mesmo no subsídio de desemprego sem ter de trabalhar. Hoje, independentemente do crime ambiental e agrícola ali em curso e de que já aqui me ocupei bastas vezes, Alqueva — esse grande “desígnio nacional” — está transformado num olival espanhol financiado por subsídios europeus e dinheiro de impostos portugueses e onde trabalha uma mão-de-obra que atravessou dois continentes para substituir os nossos “desempregados”: nepaleses, paquistaneses, indianos. E em condições laborais e sociais que, se não chegam para fazer derrubar estátuas de novos esclavagistas, deviam pelo menos fazer corar de vergonha as silenciosas centrais sindicais sempre tão pressurosas a defender os que têm emprego garantido para a vida e horários de 35 horas por semana. De nacional, pouco resta; de desígnio, resta o “porra!”.

Em Lisboa, num café de ocasião, a empregada ocupa-se comigo no passatempo favorito dos portugueses: dizer mal “deles”. “Eles”, claro, são os políticos — sejam eles quais forem, façam o que fizerem, hoje, ontem ou amanhã. “Esses, pelo menos”, informa-me ela, “estão sempre bem: quatro aninhos de trabalho e ganham direito a reforma para a vida toda!” Pela milionésima vez e com a mesma esperança das anteriores, dou-me ao trabalho cívico de a desmentir. “Como é que não é verdade? Eu li!”, insiste ela, quase ofendida. E leu onde? “No Facebook!”, esclareceu, altiva, como se falasse da Bíblia. Deixo o Facebook de lado (seriam revelações de mais para uma só conversa...) e, enquanto espero que o café esfrie um pouco, explico-lhe que houve, de facto, um tempo em que quem estivesse doze, e não quatro anos, na política ganhava direito a uma pensão vitalícia, mas que isso já havia acabado há muito e que, pelo contrário, quando foi da crise de 2008, os políticos viram os seus vencimentos cortados em 10% e nunca mais esse corte foi reposto, porque não há coragem para o fazer. Olhou para mim nada convencida e lá encontrou o argumento sem resposta: “Ah, mas alguns saem de lá de bolsos cheios, não é?” E sorriu-me, triunfante: “Hã? Hã?”

Estamos a acordar de uma doce ilusão, assente em duas apressadas verdades: o heróico comportamento cívico do povo português perante a pandemia e o exemplar desempenho do Serviço Nacional de Saúde, ultrapassando com brilho um teste de fogo extremo. É uma pena, mas ambas as supostas verdades são falsas. E, de novo, trata-se de uma coisa que nenhum politico, mesmo com corte de vencimento, se pode atrever a dizer em voz alta.

O heróico comportamento cívico do povo português assentou no medo, puro e simples. Foi o medo que nos trancou em casa, a alguns até com comportamentos que nada tiveram de heróico, antes pelo contrário. Se a nossa sempre afanosa busca por heróis — que nos leva a registar alguns milhares de comendadores da democracia e alguns milhares de medalhas de feitos militares em tempos de paz — precisa de heróis civis desta empreitada, sugiro os autênticos, os que não ficaram em casa: os agricultores, incluindo os imigrados, os pescadores, os camionistas que traziam os seus produtos para os supermercados e os trabalhadores destes que nos abasteciam, os que trabalharam nas farmácias, nas tabacarias que não fecharam ou no pequeno comércio de bairro, os trabalhadores dos transportes, os polícias, os voluntários que acorreram aos sem-abrigo, etc. E, quanto ao brilhante desempenho do SNS, ele explica-se por uma simples razão: porque nunca esteve sob verdadeira pressão. Trancados em casa, os portugueses garantiram que a parte do SNS dedicada em exclusivo à covid nunca ameaçasse ruptura. E, tirando os profissionais dedicados a isso, que cumpriram, de facto, o seu dever, tudo o resto no SNS fechou cautelarmente, mesmo antes de a epidemia nos ter atingido. Milhares de consultas, de exames, de cirurgias e tratamentos urgentes ficaram por fazer, muitos deles com desfechos fatais. Dificilmente se pode tomar isto como um caso de sucesso.

E se a resposta política, em minha opinião, esteve sempre adequada àquilo que se sabia e que ia sendo aconselhado por quem era suposto saber e do que podia ser feito em cada momento, nem sempre o aparelho do Estado respondeu da mesma maneira. E ninguém, como é fácil de observar, tem sido mais lento e parcimonioso a retomar a vida normal do que o aparelho do Estado. Foram os poucos professores chamados a dar bem poucas aulas presenciais aos 11º e 12º anos que largamente se declararam logo potenciais doentes de risco covid; é a retoma da generalidade das aulas presenciais marcada para 17 de Setembro — a data normal — como se nada tivesse acontecido e não houvesse meio ano a recuperar; foi a ministra da Justiça que ponderou, mas finalmente não se atreveu, a retirar meros 15 dias às sacrossantas longas férias judiciais dos magistrados, apesar de acrescentadas este ano de três meses à conta da covid; é a própria ministra da Administração sem pressa alguma de fazer regressar os funcionários públicos do teletrabalho, dizendo que este provou muito bem, embora quem espera e depende do mais banal acto administrativo continue a desesperar.

Cá fora, porém, começamos a assistir ao trágico cortejo, já visto em 2008, de restaurantes, lojas, empresas, que fecham, trabalhadores que ficam desempregados, que se preparam para perder a casa, para voltar a emigrar, enfim, para regressar ao que já tinham imaginado ter ficado para trás de vez. Mas, do lado de lá, do lado do Estado, não há pressa. “Sra. ministra, falta aqui um acrílico a separar-nos da zona das testemunhas, neste tribunal!”; “Sra. ministra, esta repartição não tem ar condicionado do último modelo!”; “Sr. ministro, esta sala de aulas não tem ventilação natural adequada!”. E os “mesmos de sempre”, como gosta de dizer a extrema-esquerda, ficam para trás. Só que os “mesmos de sempre” não são os mesmos de que fala essa esquerda. Coincidem, talvez, os alunos cujos pais não têm dinheiro para explicadores nem computadores e que nunca recuperarão este atraso, mas já não os professores que não se disponibilizam para o esforço exigível; talvez ainda os que não podem perder o emprego, infectados ou não, ou que não têm condições para viver decentemente, quanto mais para se isolarem se doentes; mas já não os que pagam fortunas para esperar justiça do Estado e agora viram todos os seus casos parados e nenhum esforço feito para recuperar os atrasos; ou os que pagam serviços que o Estado cobra caro e presta em exclusivo e a más horas e que não têm alternativa que não continuarem à espera até que o funcionário de quem dependem resolva desconfinar; ou o exército de trabalhadores a recibos verdes (alguns trabalhando para empresas públicas, como a RDP), sem direito a horários, férias, Segurança Social, protecção no desemprego, que nenhum sindicato ou comissão de trabalhadores se preocupa em defender antes dos “instalados”; e os milhares de jovens em princípio de vida, as vítimas principais do desemprego, da falta de habitação, da falta de perspectivas, a não ser um horizonte de dívida pública para depois pagarem a vida inteira e que os instalados reivindicam que se acrescente agora.

Há dois países aqui: um país ruidoso, que o Presidente da República apelida de heróico, que se manifesta nas ruas e que frequentemente adoece nos dias de trabalho, que tem porta-vozes sindicais todos os dias na imprensa, que o Governo escuta e teme, que os políticos tratam com paninhos quentes, que a lei, a Constituição e os mestres interpretadores dela protegem e a quem garantem melhores contratos de trabalho, melhores horários, mais férias, reformas mais cedo e mais bem pagas, e que, de um modo geral, abocanha a parte de leão da parte da riqueza do país que o Estado cativa todos os anos. E há um outro país, silencioso e submerso, que ninguém representa e ninguém escuta, que está demasiado ocupado em tentar sobreviver para andar nas ruas a manifestar-se ou nas redes sociais a ocupar o horário de trabalho no bota-abaixo de quem lhe paga a ociosidade e os privilégios de que goza ou no prazer solitário da calúnia e da ofensa anónima, que continua a trabalhar sem olhar ao horário, ao termómetro ou ao medo, que se levanta quando o atiram abaixo e lhe dizem (a ele, que não tem direitos alguns garantidos) que saia da sua “zona de conforto” e se dirija ao aeroporto e que, de tão resiliente, há quem chegue a pensar que é inexistente. Mas não é: esse Portugal silencioso e resistente é o único que, se não for sufocado, nos poderá resgatar.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Passo atrás, multa à frente

Posted: 26 Jun 2020 03:21 AM PDT

«O pequeno passo atrás dado agora com o dever cívico de recolhimento domiciliário em 19 freguesias de Lisboa não é só fruto de descuido ou falta de civismo. É também resultado de contradições e dualidade de critérios políticos e sanitários.

Será que muscular as leis e as forças de segurança trava o ressurgimento de casos de covid, em Portugal ou em qualquer outro país? A ver vamos. Certo é o ruído político e a conflitualidade, também legislativa, que as medidas vão provocar.

As multas para travar os ajuntamentos de pessoas além do limite permitido atribuem, implicitamente, aos jovens a culpa pelos novos surtos. Apontar o dedo aos mais novos, fechar estabelecimentos comerciais mais cedo ou acabar com a venda de bebidas alcoólicas nas lojas de conveniência até pode refrear os profissionais dos comentários. Mas não resolve o problema. Este ainda persiste nos transportes públicos e nas habitações sobrelotadas e naqueles que nunca puderam, nem vão poder, ficar em teletrabalho.

O reforço de 90% nos autocarros da Grande Lisboa a partir de segunda-feira, anunciado ontem, foi tardio. Assim como o programa para melhorar as condições de sanidade dos bairros. Como é discutível que os bares sejam um problema e não uma solução e ainda estejam de portas fechadas, mesmo depois de terem apresentado ao Governo um guia de boas práticas.

E é ainda necessário que as mensagens cheguem aos destinatários. Que sejam claras, oportunas e coerentes. Se os mais velhos já tiveram momentos em que não percebiam exatamente o que lhes era transmitido (ora a máscara não é necessária, ora já é, ora até é imprescindível), os mais novos também ficaram confusos com as variáveis do desconfinamento. O esforço para entender como eles percebem e vivem o momento atual também não foi grande.

Aliás, o caricato post (para não o batizar de centralista ou dar-lhe outra classificação) da Direção-Geral da Saúde no Facebook com algumas recomendações para o São João, já depois da noite do santo popular ter acontecido, é revelador de uma comunicação nem sempre assertiva.»

Manuel Molinos