(José Pacheco Pereira, in Público, 18/07/2020)
Se há defeito de carácter que infelizmente se repete em Portugal, vez após vez, sem culpa nem remorso, é a adulação dos poderosos seguida pelo seu escárnio público quando deixam de ser poderosos. Todos os que tinham a cerviz bem dobrada, a boca bem calada, a vénia pronta, o tom untuoso, a mão estendida para o pequeno ou grande favor, o silêncio oportunista, correm para a imensa fila, de pedras na mão, para abjurar o anterior senhor. Já vi isto muitas vezes. Já escrevi isto muitas vezes. Suspeito de que não será a última.
Um caso exemplar foi Sócrates, em que se contava pelos dedos de uma mão aqueles que percebiam bem de mais o que ele estava a fazer e a multidão de sicofantas e aproveitadores que lhe servia de barreira contra tudo aquilo que o podia afectar. Alguns desses foram depois profissionais do atirar da pedra, muitos na política, a começar pelo PSD, e muitos na comunicação social. Mas o vento virou e foram logo para a fila do arremesso. O remake actual desta conduta cívica exemplar passa-se hoje com Ricardo Salgado e o BES, só que com a gravidade de esquecimentos e fugas à responsabilidade que nos custaram milhares de milhões de euros e, diferentemente do caso Sócrates, este passa-se na alta finança e não na baixa política.
Comecemos pelo primeiro esquecimento. Salgado e a família Espírito Santo começaram por ser um dos heróis do anti-PREC. Lembram-se, os grandes empreendedores que, espoliados dos seus bens pelas nacionalizações gonçalvistas, tiveram que fugir para a o Brasil, de onde regressaram por cima, heróis do capital, com a capacidade de reconstruir o que o PREC lhes tinha tirado? O O Independente, adorado pelos nossos jornalistas como modelo, desenvolveu pela pena de Paulo Portas a tese de que havia dois “dinheiros” em Portugal: o “velho dinheiro”, com pergaminhos e pedigree, e o “novo dinheiro”, dos novos-ricos que tinham ganho dinheiro de forma obscura e pelas ligações ao PSD e ao PS, a canalha sem modos. O O Independente considerava intocável o “velho dinheiro” (com o enorme preconceito pequeno-burguês de Portas, que não tinha nascido na nobreza nem na família certa), gente que sabia comer à mesa e vestia nos melhores alfaiates de Londres, e os da “meia branca”, que não se sabiam comportar, eram provincianos e toscos.
Esta apreciação só começou a mudar muito mais tarde, quando o longo período de governação do PS mostrou as cumplicidades de Salgado com o poder socialista. Esta também foi uma das razões por que Passos Coelho lhe disse que não, esquecendo-se as pessoas que, depois disso, o BES pôde ir de novo ao mercado, com uma emissão validada pelo Presidente, pelo regulador, pelo governador do Banco de Portugal e por alguns comentadores… Isto da cronologia é uma maçada.
O segundo esquecimento é pior do que um esquecimento, é uma cumplicidade. As pessoas comuns não fazem a ideia da enorme quantidade de informação que o círculo de confiança da elite portuguesa – quem, na verdade, manda no país – obtém quase como respira. Circulando de conselhos de administração para lugares políticos, de escritórios de advocacia de negócios para consultoras financeiras, ou pura e simplesmente falando com os seus pares dentro desse círculo de confiança, tudo o que é relevante lhes chega aos ouvidos. Numa rede politicamente transversal, em que, para além da informação privilegiada, o poder de veto de pessoas é o mais importante para manter intacto o poder, essas pessoas não podem alegar que “não sabiam”. E, se tivermos em conta a endogamia de meios pequenos como é o caso de Portugal, as elites bancárias que circulam em meios semelhantes e/ou muito próximos, que vão das ilhas Virgens ao Panamá, aos offshores, aos bancos suíços e ingleses, aos negócios portugueses, nem que fosse por razões de competição, não podiam desconhecer as manobras do BES.
É por isso que, pura e simplesmente, não acredito – não por fé, mas por razão – que o BES e Salgado pudessem fazer tudo de que são acusados sem que tal fosse, pelo menos em traços largos, conhecido, a começar pelos seus pares na banca e, por maioria de razão, do Banco de Portugal. E, das duas, uma: ou esse tipo de práticas era mais comum do que hoje se faz crer singularizando o BES, ou uma conspiração corporativa de silêncio permitiu a continuada violação da lei pelo BES, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Ou Salgado e o BES mantinham as protecções dadas ou compradas e ainda não tinham caído politicamente.
O festival de hipocrisia a que hoje se assiste, publicitado por muitos jornalistas económicos (salvo raras excepções) que estiveram também debaixo da asa do BES, não é apenas deprimente, mas é também perigoso. É a melhor garantia de que tudo se pode repetir, com outros protagonistas e outros métodos, mas com o mesmo mecanismo de ganância e silêncio. Até porque há um aspecto que não tenho espaço para referir aqui e fica para outra altura: não se cai na justiça antes de se cair politicamente.
Bom, os macaquinhos japoneses, esses nunca vão ficar desempregados.