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terça-feira, 21 de julho de 2020

Que mil troikas floresçam

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 21/07/2020)

Daniel Oliveira

(A Estátua, que não costuma comentar os textos publicados, desta vez não resiste: levanta-se, bate palmas ao Daniel e assina por baixo! De facto, a UE vai de derrota em derrota até à derrocada final.

Estátua de Sal, 21-07-2020)


Enquanto o Conselho destruía qualquer ideia de solidariedade entre Estados, voltando a sublinhar a distância entre as ilusões que muitos têm sobre a União e a realidade, um outro dossier está prestes a ser fechado: o quadro financeiro plurianual, que vigorará até 2027. Sem reforço orçamental nem redistribuição de encargos, Portugal terá, em plena crise, um corte nos fundos de coesão. Porque os custos da perda de receita pela saída do Reino Unido não foram distribuídos com critérios de coesão. Coesão é um palavrão do passado. A União, hoje, é mais mata-mata. Mas houve reforços de verbas: no controlo de fronteiras, para agradar à extrema-direita, e na defesa, dinheiro que vai direitinho para a indústria alemã e francesa.

A coisa não fica por aqui. Ao desconto (rebates) que 2,9 mil milhões de euros que quatro países do norte – chamar-lhes “frugais” é comprar a sua própria narrativa, baseada numa mentira descarada – já tinham conseguido em relação ao que deveriam ter de pagar, conquistaram, no Conselho Europeu, mais mil milhões. Foi um dia em cheio.

Mas o episódio mais lamentável foi mesmo a conclusão da negociação do Fundo de Recuperação. Os autodenominados “frugais” conseguiram impor a sua vontade e ela será um importante prego (mais um) no caixão que está a ser velado em Bruxelas. Bem sei que há negociações e depois chega-se a um meio termo. Mas não se chegou a meio termo nenhum. Chegou-se a meio termo nos valores, não no essencial.

A Holanda e aliados conseguiram uma vitória impensável: não só haverá condicionalismos na distribuição de dinheiro que pretendia responder a uma emergência, como a sua imposição ficará está nas mãos de uma minoria. O “supertravão” às transferências poderá ser acionado por qualquer país que ache que outro, na sua ótica (e nos seus interesses, obviamente), não cumpre os objetivos E só uma maioria qualificada (não chega uma maioria simples) pode aprovar essas transferências. O que quer dizer que, à boleia da pandemia, uma minoria de Estados – e não a Comissão – ganhou o poder formal de determinar políticas de cada Estado. Está preparado o caldo para o caos e a desagregação. A Holanda venceu em toda a linha, como nunca imaginou que venceria. Agora sim, gostava que António Costa tivesse falado grosso.

Isto é muito pior do que em 2011. Em vez da troika, em vez do FMI, da Comissão Europeia ou do BCE, que por pior que sejam são estruturas transnacionais, cada país ganhou uma arma de chantagem, que só será eficaz contra os que estão em situação mais difícil, não podem dispensar estes apoios e não têm peso político no conselho. É o último ato de um processo de subalternização quase colonial de uns Estados em relação a outros. No meio de uma pandemia. Nem no meu pior pessimismo alguma vez pensei que a UE se pudesse tornar em coisa tão grotesca.

Quem defenda isto em Portugal escusa de vir, noutros momentos, falar do glorioso passado do país. É na defesa do presente e do futuro que se mede o patriotismo. Por ignorância (os sinais de impreparação têm sido demasiado frequentes) ou má-fé, Rui Rio veio defender, ainda na fase negocial, a posição dos ditos “frugais”. Ao que parece, acha bem que sejam os outros a decidir o que se faz em Portugal. Como não governa nem faz oposição, esperam que países estrangeiros façam as duas coisas por si. Se outros, concentrados nos seus próprios interesses, nos impuserem regras que nos sejam prejudiciais, lá virá responsabilizar o governo pela situação em que estamos. A pergunta que sobra: se é assim que querem, faz sentido continuarem a defender que Portugal seja um país independente?

A ideia de que as regras que serão impostas têm como objetivo o bom uso do dinheiro e não os interesses específicos de quem as impõe é de tal forma infantil que qualquer pessoa que a defenda não cumpre os mínimos de maturidade política para governar um Estado. A Holanda é tão ciosa do bom uso do dinheiro dos outros países que até fica com os impostos deles para não os estourarem com mulheres e vinho.

Pôr uns Estados a decidir onde outros investem é péssima ideia. Porque concorrendo uns Estados com outros que tiver essa possibilidade irá tentar travar investimentos de competidores que ponham em risco a sua supremacia. A expansão de um porto que concorra com o de Roterdão, a recuperação de um setor que compita com o de um dos países com força política. É por isso que estas coisas mais específicas costumam ser decididas na Comissão. Ou não aprenderam nada com a história da abertura das fronteiras?

Para os inocentes que não perceberam que o cumprimento das regras do Estado de Direito apareceram nas negociações para mais do que a barganha negocial, deviam perguntar-se porque mostram esta preocupação líderes políticos que nem se deram ao trabalho de expulsar Órban do PPE. Costa não o devia ter dito, porque Órban não merece defesa de ninguém, mas é evidente que não é na transferência de fundos que isto se resolve. É na expulsão da Hungria da União Europeia. Pôr isto no debate teve como única função, para quem tem vivido muitíssimo bem com o regime húngaro nestes anos, arranjar mais um argumento para dar poder de chantagem a uma minoria.

O que foi acordado neste fim de semana foi pior do que não haver acordo e deveria ter sido bloqueado até novo Conselho. Como escreveu Martim Silva, a “bazuca foi um tiro no pé”. Foi mais um passo para a destruição do projeto europeu. Mas uma coisa ficou provada: quatro países podem impor a sua vontade à Alemanha e França. É preciso quererem muito. A Holanda, que é de longe o país que mais ganha com o mercado interno e o euro, construiu uma narrativa interna que já não permite que a opinião pública aceite qualquer tipo de solidariedade europeia. E conseguiu derrotar o eixo franco-alemão. Disse-me um grande e falecido amigo, já há uns bons anos: desta União, não voltaremos a ter boas notícias. O poder que derruba o mau é sempre pior. A isso dá-se o nome de decadência.

Descentralizar, diferenciar e comunicar na resposta à covid-19

Posted: 20 Jul 2020 03:28 AM PDT

«Ao terminar mais uma sessão no Infarmed, a 8 de julho, o Presidente da República incluiu na sua síntese final o seguinte: "É o fim de um ciclo. Este é um modelo que tem de ser ajustado. Ou seja, Portugal vai evoluir de um modelo macro para micro, que incidirá mais sobre os concelhos, as freguesias ou até os bairros." Nada mais acertado. Mas com mais de dois meses de atraso.

A resposta à pandemia que levou ao confinamento, em meados de março, foi, inevitavelmente, centralizada, generalizada e normativa, seguindo um modelo de comando central de emergência de saúde pública, obrigando à obediência. Em contraste no "pós-confinamento geral", complexo e prolongado, haveria que descentralizar, diferenciar e promover a decisão informada por parte de todos, incluindo os cidadãos.

Esta transição requer uma clara rutura com a forma e o conteúdo da informação assumida durante o confinamento. Já não será a diária e fatigante repetição dos somatórios, médias e acumulativos nacionais, agora de reduzido interesse. Passará, necessariamente, a estar focada na comunicação dos riscos locais de infeção e nas respostas que estes suscitam.

H. Bauchner escreve em JAMA, junho 2020: "As perceções e decisões das pessoas em relação ao risco associado à covid-19 dependem, pelo menos, da resposta às perguntas seguintes: como está a transmissão da doença na comunidade onde me movimento? Qual o risco de exposição a essa doença que assumo? Como se responde a essa exposição ao vírus?" Neste contexto, diz a OMS em relação à abertura das escolas - não deve fazer-se se houver transmissão da doença na comunidade onde a escola se situa. Especialmente nesta situação, há que ter consciência da complexidade da comunicação do risco quando estão envolvidos, simultaneamente, vários atores sociais.

Um dos melhores exemplos vem da Nova Zelândia, onde, desde há muito, o território é mapeado com quatro níveis de alerta associados à avaliação dos riscos de transmissão da doença: nível 4 (transmissão na comunidade); nível 3 (clusters e transmissão ocasional na comunidade); nível 2 (só clusters); nível 1 (sem transmissão, com o vírus ainda circulando internacionalmente). O foco é claro: saber se existe ou não transmissão num determinado território e se esta se processa na comunidade de uma forma sustentada. Ou seja, se se pode "apanhar" a doença sem saber onde. Esta abordagem tem óbvias vantagens na fase do pós-confinamento geral:

- Põe-se o foco, precocemente, na transmissão da doença, nos riscos inerentes e na diferenciação local e não noutras considerações de lógica menos aparente (calamidade, contingência e alerta). A indisponibilidade para reconhecer a importância da diferenciação local só foi "quebrada" a partir da situação observada na Área Metropolitana de Lisboa.

- Faz-se em todo o território nacional - em Portugal, excetuando a situação na região de Lisboa, o país está classificado de forma uniforme como em estado de "alerta". Isto apesar de múltiplos outros focos, como o de Reguengos de Monsaraz, onde há transmissão comunitária.

- Uma vez adotada uma "geografia" com base nos níveis de risco, cada um destes níveis tem predeterminadas as respostas necessárias. Isso torna desnecessários dispositivos políticos de decisão para cada novo incidente na evolução epidemiológica. Assim se evitam também atrasos arriscados.

- A propósito da resposta de um surto em comunidades contíguas, no norte de Espanha, onde contrasta a resposta pronta em Aragão com o atraso de uma semana na Catalunha, com custos visíveis, comenta Fernando Garcia, da Universidade Pompeu Fabra: "É algo que requer uma dose justa de sensibilidade, músculo e inteligência. Não se podem ir confinando comunidades aos primeiros incidentes observados, mas fazê-lo tarde de mais resulta em situações difíceis de controlar" (El País, 12 de julho 2020).

- A informação centrada no "risco local" permite decisões inteligentes localmente, quando adaptada às múltiplas circunstâncias da comunidade. Decisões inteligentes são boas para a economia. Confinamento excessivo por falta de informação local relevante, não é bom para a saúde nem para a economia.

As dificuldades observadas podem também estar relacionadas com um equívoco óbvio - o de se terem confundido, durante demasiado tempo, duas necessidade distintas: por um lado, a da informação e comunicação entre técnicos qualificados e representantes do poder político, iniciativa de mérito indiscutível; por outro, o processo, inexistente, de aconselhamento científico sistemático, transparentemente regulado, independente do poder político, para uma estratégia de saúde pública para "pós-confinamento geral".

Esta é precisamente a altura para refletir sobre estas limitações. Nunca antes, na saúde pública moderna, se confinou e desconfiou massivamente. Há que avaliar e aprender. Tanto mais que estamos no limiar de um novo ciclo de acrescidas dificuldades: a abertura das escolas, as tentativas de regresso das pessoas ao seu SNS e as situações de saúde próprias do outono-inverno.»

Constantino Sakellarides

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Estatuto do Antigo Combatente aprovado na especialidade

O Ministério da Defesa Nacional congratula-se com a aprovação, na especialidade, do texto do Estatuto do Antigo Combatente, em sede de Comissão parlamentar de Defesa Nacional. Trata-se de mais um passo para a concretização de um processo histórico, que reconhece a importância dos serviços prestados pelos militares e a enorme dívida de gratidão que o país tem para com eles.

Ainda no final do ano passado, o Executivo aprovou uma Proposta de Lei que constituiu a importante base de trabalho para a prossecução do diálogo constante e construtivo com todos os partidos no âmbito da Comissão de Defesa Nacional e que se materializou na redação agora aprovada na especialidade.

Com o objetivo de obter um Estatuto que reunisse o mais amplo consenso possível e que constituísse um ato de reconhecimento coletivo e transversal da Nação assente na dignificação, solidariedade e valorização destes militares, a proposta do Governo colheu contributos das associações representativas, reforçando apoios destinados aos Antigos Combatentes, como o aumento do Complemento Especial de Pensão de 3,5% para 7% e introduzindo novos benefícios como a utilização gratuita de transportes públicos, livre acesso a museus e monumentos nacionais, a criação do Cartão do Antigo Combatente e a definição do Dia Nacional do Combatente. Entre outras medidas, a proposta contempla também um Plano de Apoio aos Antigos Combatentes em Situação de Sem-Abrigo e a inclusão, no Estatuto, do Plano de Apoio aos Deficientes Militares, dando força de lei a um instrumento fundamental que já chegou a um milhar de beneficiários.

É com expetativa que se aguarda a conclusão do processo de votação na Assembleia da República, ainda nesta sessão legislativa.

Bater em mortos

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 17/07/2020)

Daniel Oliveira

Em princípio, um colunista não se cita. Mas tem de ser. Em 2005, notícias publicadas no Expresso envolvendo o BES irritaram Ricardo Salgado, que mandou retirar a publicidade. Chegado há pouco tempo a este jornal, escrevi o que repeti vezes sem conta: “Nos jogos de poder, o Espírito Santo está sempre entre nós. Talvez todos fiquem finalmente a saber quem manda neste país.” Um mês depois chamava a atenção para a promiscuidade entre o novo ministro Manuel Pinho e o BES, seu anterior patrão. Salgado, o banqueiro intocável, foi tema recorrente das minhas crónicas (não estive sozinho, mas pouco acompanhado). Em 2010, António Mexia dizia na página do “Compromisso Portugal” que os portugueses tinham de “assumir sacrifícios”. Escrevi: “Fez a sua vida profissional à boleia da política e do Estado e quer menos Estado. Faz-se pagar como os 200 que mais recebem nos EUA e exige sacrifí­cios. [...] São estes homens, transformados pela imprensa em oráculos da Nação, que nos dão lições de competitividade, meritocracia e estoicismo. Falam de cátedra. Mas não sabem do que falam.” Gostava de afrontar o poder de Mexia e Salgado quando um ainda andava de braço dado com o atual dono do “Observador” e outro ainda pagava campanhas a todo o arco do poder. Estavam longe de ter caído em desgraça.

Há uns dias, José Gomes Ferreira disse, na SIC, que Carlos Alexandre era criticado porque havia agências de comunicação e advogados de defesa a fazer o seu trabalho. O jornalista Luís Rosa, do “Observador”, acompanhou: porque criticam Carlos Alexandre e nunca Ivo Rosa? Como estou no lote dos que criticaram as medidas de coação contra Mexia e critico com frequência Carlos Alexandre, não vou assobiar para o lado. Começo por esclarecer que só falo com agências de comunicação para marcar entrevistas e que recebi um e-mail anódino de um advogado ligado ao processo da EDP, que não conheço, depois de ter escrito sobre o assunto. Ainda nem respondi. Não sou impressionável pela lisonja nem pressionável pela ameaça. Vantagens de ser um radical mal-encarado e com longo currículo de inimizades. As críticas que faço a Carlos Alexandre são ditadas pelo escrutínio a qualquer poder. Estou livre para o fazer porque, não investigando estes casos como Luís Rosa investiga, não criei relações de dependência com ninguém. Se investigasse, teria de gerir a relação com juiz, MP e advogados de defesa. Porque o jornalismo cruza fontes. Não depende apenas de uma, tomando as suas dores e atirando sobre os restantes.

Nada me liga a Carlos Alexandre ou Ivo Rosa. Nem os conheço. Tenho a minha opinião, vivo bem com a dos outros e gosto pouco de passar a cúmplice dos que sempre denunciei por não gostar do modus operandi de Carlos Alexandre. Não aceito essa chantagem.

Uso da mesma liberdade que usei com Mexia e Salgado quando o pecado era criticá-los. Mas presto mais atenção a quem tem poder do que a quem já o perdeu. E também gosto de afrontar o poder do novo intocável, Carlos Alexandre. Se resisto a superbanqueiros e supergestores, também resisto a superjuízes. Nunca fui dos corajosos que batem em mortos. 

Tão livre como Gomes Ferreira, repito que um juiz justiceiro não nos serve. Serve-nos um país onde a banca não manda em políticos, os monopólios não são privados e os processos não morrem em manchetes oferecidas por magistrados.

As máscaras da Europa

Posted: 19 Jul 2020 02:42 AM PDT

«Não há grandes segredos. Verdadeiramente, no final é sempre uma questão de quem detém e distribui o capital. Poucas vezes a construção europeia, da solidariedade e do Estado de direito, do Estado social, da união entre povos e culturas, de conquistas civilizacionais únicas, esteve tão à prova como agora.

Os sinais são preocupantes, agigantam-se e não são recentes. Refletem-se, também, num desalento dos povos, que cada vez menos se reconhecem nas decisões burocratas de Bruxelas, da renitência empedernida de governos contabilistas, tendo como sintomas mais evidentes o crescimento dos populismos e dos extremismos.

O Conselho Europeu, onde se discute a resposta económica após a crise da covid-19, parte este domingo para a terceira ronda como começou. Dividido entre os países do Norte, os chamados frugais, e os do Sul, sem nome de registo, porque pelo menos há agora o pudor de não apontar o dedo aos gastadores, os do bom vinho, das mulheres bonitas e do modo de vida, esse sim, pior do que frugal quando se olha para os números e para a realidade: salários abaixo da média europeia, milhares de famílias dependentes das redes familiares e sociais, condições de vida precárias.

A pandemia que nos assaltou a todos agravou as diferenças sociais, entre quem resiste e quem mal subsiste. É esse o ponto que está em cima da mesa. A impassividade perante a pressão dos governos do Sul, numa frente que juntou Portugal, Espanha, Itália e França, sem que a visão da chanceler alemã ou da comissária europeia, ambas ainda a segurarem o que resta dos laços de interajuda comunitários, consiga evitar o risco de empurrar um acordo para outubro. Tarde, provavelmente demasiado tarde como depressa se verá na subida dos juros das dívidas soberanas.

O que está em cima da mesa não é muito mais do que a diferença entre ajudar sem exigir contas e apoiar com um caderno de encargos violento, à semelhança do que sucedeu durante a intervenção da troika. Mas hoje é o dia do Senhor. Pode ser que recebam alguma iluminação. A bem de todos nós.»

Domingos Andrade