Translate

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Obsessão patológica

Posted: 04 Aug 2020 03:54 AM PDT

«Nos últimos 21 anos, o Bloco de Esquerda desenvolveu aquilo a que Ricardo Salgado chamou uma "obsessão patológica" pelos negócios dos "donos de Portugal". Nestes anos, questionámos o poder de banqueiros, denunciámos o rentismo nas empresas privatizadas e fizemos as contas à porta giratória que unia (e une) PS e PSD aos interesses económicos. É essa intransigência na defesa do que é público que hoje dirigimos ao Novo Banco.

Todas as semanas, o tema regressa pelas piores razões. E, sim, "nós avisámos" sobre um desastre que só não anteviu quem não quis, e apresentámos proposta: nacionalizar o banco teria custos, mas garantia o controlo público ao serviço da economia.

No dia 27 de janeiro de 2017, propusemos a "manutenção da propriedade do Novo Banco na esfera pública", que foi rejeitada por PS/PSD/CDS. No dia 13 de abril, propusemos a condenação do Governo pela decisão de venda sem consulta ao Parlamento, rejeitada por PS/PSD. Nesse dia, deu entrada um projeto para a "Nacionalização do capital social do Novo Banco, SA", também rejeitada por PS/PSD/CDS. No dia 5 de maio, marcámos um debate para denunciar as condições de venda, a que se seguiram dezenas de artigos, propostas de orçamento, audições ao Banco de Portugal, ao Fundo de Resolução e à Administração do Novo Banco, pedidos de documentação e outros tantos debates e requerimentos.

A cada novo pedido de injeção de capital, o Novo Banco deu-nos razão. Com a determinação de uma auditoria à gestão privada do Novo Banco, o Governo (empurrado pelo Parlamento) escolheu o caminho mais longo. Mas foi um passo importante para dotar o Estado dos instrumentos que lhe permitam fazer frente ao fundo Lone Star. É por isso que defendemos que fosse impedida uma nova injeção sem conhecer os resultados dessa auditoria. Ao fazer a transferência de 850 milhões contra a palavra do primeiro-ministro, o Governo foi fraco perante os interesses do fundo financeiro internacional. E voltou a sê-lo ao aceitar o atraso da Deloitte, contratada por três milhões de euros para auditar o Novo Banco. O mesmo Governo que não quis esperar para pagar ao Lone Star aceitou o atraso imposto pela consultora financeira.

Seja o que for que a auditoria da Deloitte esconde, o país não tem que aceitar a espera. A consultora e o Governo devem informar o Parlamento de todas as conclusões preliminares, e o Governo, para dar-se ao respeito, deve cancelar o contrato. Depois, o Estado tem uma de duas opções para terminar uma auditoria que defenda o interesse público: ou a IGF ou Mário Centeno mostra o que vale no Banco de Portugal.

PS. Solidarizo-me com os milhares de pessoas que se juntaram para pedir justiça por Bruno Candé. O seu homicídio não será menorizado pelas distrações criadas por André Ventura para disfarçar as suas ligações às offshores e aos vistos gold da corrupção e o financiamento obscuro do seu partido. No Bloco, levamos o combate à corrupção tão a sério como o combate ao racismo.»

Mariana Mortágua

terça-feira, 4 de agosto de 2020

É bom que nos preparemos

Posted: 03 Aug 2020 03:24 AM PDT

«Se há coisa que aprendemos à força com esta pandemia compressora foi não fazer planos de rigorosamente nada: a verdade à segunda-feira pode ser de uma enorme imprecisão à sexta.

Na forma como o vírus muda, nos alvos preferenciais do contágio, na evolução da nossa saúde e na dos nossos, no sentido das medidas restritivas e, sobretudo, nas projeções económicas. Neste particular, estamos a confundir com naturalidade os pessimistas com os catastrofistas e os otimistas com os ignaros. Só podia ser assim, porque em algum momento desta narrativa vertiginosa ambos estiveram certos e errados.

Viveremos, provavelmente até ao final do mês, numa espécie de bolha artificial. Com setembro, começaremos a conhecer a verdadeira dimensão da hecatombe. O brutal encolhimento do PIB no segundo trimestre do ano (que reflete o período do Grande Confinamento) foi quatro vezes pior do que o pior da troika. Recuámos vários anos em escassos meses. Acresce que a retoma está a ser mais tímida do que o esperado, o turismo exaspera (o Algarve viveu mesmo o pior julho de sempre), as exportações estão congeladas e, no princípio, no meio e no fim, ainda temos de lidar com a progressiva erosão da força modificadora do Estado. Não por acaso, ouvimos o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, reconhecer que, findos os apoios públicos mais significativos na manutenção artificial do tecido económico, vão aumentar as insolvências e os desempregados.

O Estado foi a salvação de uma fatia considerável do país, mas o oxigénio está a acabar. E vem aí o inverno. E com ele a gripe sazonal e a ameaça cada vez mais certa de uma segunda vaga da pandemia. Ora, para acorrer a tudo será preciso um investimento adicional no Serviço Nacional de Saúde. Mais despesa.

A aparente sensação de normalização que nos foi dada pelo desconfinamento não deve entorpecer o nosso sentido de compromisso. A batalha é de todos os dias, reflete-se nas pequenas ações, gestos e cuidados. Temos de estar preparados para o que aí vem mesmo que não saibamos o que nos espera. Porque se formos forçados a parar tudo outra vez, não tenho a certeza de que o queiramos, ou possamos, fazer. Se chegarmos a esse extremo, teremos certamente outro entendimento sobre o valor da doença e da cura.»

Pedro Ivo Carvalho

Desgraças e cheques em branco

Posted: 02 Aug 2020 03:38 AM PDT

«Nunca perderei a esperança de que é possível e vale a pena lutar por um Mundo melhor na certeza de se poderem, sempre, encontrar dimensões novas para a realização do ser humano. Contudo, evidenciam-se hoje demasiadas negações coletivas geradoras de medos.

O assassinato a sangue-frio do ator Bruno Candé e os escabrosos comentários justificativos desse ato hediondo mostram-nos racismo inculcado na sociedade portuguesa. Ora, o racismo e outras manifestações de intolerância e violência estão a armadilhar a vivência democrática das sociedades e o alarme tem de disparar quando, poucos dias depois, Rui Rio admite que se o Chega mudar de discurso (lavar a cara) até pode entrar no diálogo para um projeto de Oposição ou governação do país.

A desgraça maior é observarmos, simultaneamente: i) o poder desmedido e opaco com que os potentados tecnológicos Amazon, Apple, Facebook e Google se apresentaram ao Senado Americano; ii) a especulação financeira desencadeada pela "corrida às vacinas" contra a covid-19; iii) a invocação do combate à pandemia para se coartarem liberdades; iv) a forma indecorosa como certos países europeus se tornam frugais e credibilizam as casas de receção do roubo que são os offshore; v) a mais que suspeita gestão fraudulenta do Novo Banco, que infelizmente não é uma situação excecional - nem interna nem externa - mas sim o espelho do que se passa com o poder do setor financeiro e o uso subversivo de tecnologias; vi) a brutal queda do PIB (Produto Interno Bruto) e tantas empresas em coma. Cheira forte a um "novo" normal duro e perigoso, carregado de desemprego, de exploração e desigualdades, de pobreza, de profundos problemas sociais.

É difícil acreditar na legalidade das transações do Novo Banco quando a principal figura do fundo abutre que comprou as 13 mil casas, terrenos e outros bens imobiliários envolvidos no negócio veio da Lone Star. E o que é a legalidade? Como há muitos anos digo, o roubo "legal" é, nas sociedades atuais, incomensuravelmente maior que o roubo na plena acessão da palavra. Entretanto, quando se constata que negócios deste tipo são "legais", o problema em vez de se atenuar, agrava-se.

Fazem falta regulação e fiscalização sérias, mas os sistemas montados são autênticas fraudes. Como é possível, depois de tantos negócios ruinosos, compadrio e corrupção a marcarem o caminho da Banca, ter acontecido a privatização deste banco e ter sido assinado um contrato que permite ao comprador assaltá-lo por dentro e remeter a fatura das perdas para os bolsos dos portugueses? O que é isto? Talvez uma mistura de cegueira política, imprudência, impunidade e estupidez geradas pela "moderação" que marca o comportamento dos autointitulados cidadãos honrados que gerem os diversos poderes instalados.

A 3 de fevereiro de 2017 a Assembleia da República rejeitou, com votos contra do CDS, do PSD e do PS, projetos de resolução do BE e do PCP que se opunham à venda do banco à Lone Star e propunham a sua nacionalização. Muitos dos agora surpreendidos e indignados estão apenas a colher o que semearam. E o presidente da República, ou o primeiro-ministro não podem falar do assunto como se dispusessem apenas da informação do comum dos cidadãos. Não lhes podemos admitir hipocrisia política ou desresponsabilização.»

Manuel Carvalho da Silva

domingo, 2 de agosto de 2020

Sacrificar tudo para combater um vírus

Posted: 01 Aug 2020 03:46 AM PDT

«Entrego à quinta a crónica de sábado. Esta semana, não foi exceção e, de acordo com o que se sabe hoje (quinta-feira), amanhã (sexta) o INE divulgará as suas estimativas sobre a evolução do PIB no segundo trimestre do ano. É provável que o leitor saiba mais do que eu. De todo o modo, a não ser que haja uma boa surpresa, o PIB deu um tombo de todo o tamanho. Provavelmente entre os 12 e os 15%.

Já no trimestre anterior, de acordo com as estimativas do INE, o PIB tinha caído 2,3% relativamente ao primeiro trimestre de 2019. O que assusta é que toda a quebra se deveu a março. Não temos dados mensais para o PIB, mas temos outros e muitos mostram que, nos primeiros dois meses do ano, a economia funcionava bem. Por exemplo, as exportações de bens, em janeiro, tinham aumentado 4% face a janeiro do ano anterior. Em fevereiro, tinham aumentado ligeiramente. Março foi o primeiro mês de queda. Caiu 13%. Olhando para o índice de horas trabalhadas na indústria, observamos um aumento de 10% em janeiro, em fevereiro uma estagnação e, no mês seguinte, uma quebra de 4%.

O mau mês de março foi suficiente para levar a uma quebra no PIB trimestral superior a 2%. No segundo trimestre, teremos, não um mau mês, mas sim três meses péssimos. Para se ficar com uma ideia, as exportações de bens, que em março tinham caído 13%, caíram 40% em abril e maio. Fala-se muito na quebra do turismo, mas nem procurei esses dados para não me deprimir mais. Os números do PIB para o segundo trimestre, que, repito, não conheço, deverão alertar-nos para a necessidade de a economia recuperar. Caso contrário, será uma catástrofe. Mas, dada a forma como discutimos o combate à covid, parece-me que não temos essa noção.

Desde março, o nosso conhecimento evoluiu em diversos sentidos: sabemos que a doença é menos grave do que se temia, somos mais eficazes no seu tratamento e as consequências económicas do confinamento são muito mais devastadoras do que as antecipadas. Bem sei que agora todos pensam que desde o início sabiam que ia ser uma catástrofe, mas não é verdade. Quando, em meados de março, num programa de TV, eu disse que, na melhor das hipóteses, o PIB de 2020 cairia 5%, a maioria das reações que recebi era a de que estava a ser catastrofista. Quando, a 21 de março, o Expresso fez uma sondagem a 10 economistas, daqueles muito famosos, um deles previu um crescimento de 1% para este ano.

Face a nova informação, é razoável rever as nossas políticas. Se o vírus, afinal, é mais manso, se a terapêutica melhorou e se o confinamento é desastroso, a atitude racional é não reagir de forma igualmente draconiana caso haja uma nova vaga.

Infelizmente, racionalidade e histeria são incompatíveis. E, neste momento, observamos essa histeria em vários domínios. No terceiro período, que agora acabou, dez das escolas reabertas fecharam por causa de alguns casos de covid. O que é extraordinário é que bastava haver um caso que viesse de fora da escola para a encerrar. Uma que fechou sem haver nenhum caso. Simplesmente, a histeria era tanta que um surto num lar de idosos levou ao fecho da escola e das creches dessa região. E, tendo o líder do principal sindicato de professores a gritar nas ruas que os professores não serão “carne para covid”, não é de esperar que haja mais razoabilidade no próximo ano.

Na Madeira, obrigam as pessoas a andar de máscara mesmo na rua. Em Leiria, criou-se a polícia anti-covid para patrulhar o concelho, dizendo a toda a gente para usar máscara na rua. Isto em pleno Verão. Como diz o meu irmão, chegaremos ao Outono com cara de cu.

Por todo o país, os parques infantis continuam fechados. As discotecas vão fechar às 8h da noite — eu nem sabia que abriam antes disso, para ser sincero. Hospitais públicos e privados funcionam a meio gás, alguns nem isso, por causa da covid. Para garantir que os hospitais não deixam de funcionar por causa do coronavírus, impede-se que os hospitais funcionem. É um curto-circuito na lógica.

Tudo isto é desproporcional. Era bom que nos convencêssemos de que a covid não desaparecerá. Vai haver novos casos e não podemos entrar em histeria de cada vez que forem reportados. O medo do desconhecido é real, mas compreendam que a reação das democracias a uma crise económica e social como a que estamos a provocar também é desconhecida. Falar em quebras do PIB a rondar os 15% é falar do risco de, em breve, haver milhares de portugueses a passar fome. Tenham noção.

Fico com a ideia de que os fundos da União Europeia têm tido um efeito péssimo na discussão pública. Parece que a recuperação económica dependerá desses fundos. Lamento, mas não. A recuperação económica dependerá de voltarmos a trabalhar e a produzir. Tudo o resto é paliativo.»

Luís Aguiar-Conraria

Não há bancos bons

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 01/08/2020)

Daniel Oliveira

Em pleno boom imobiliário, o Novo Banco vendeu 5552 imóveis e 8719 frações por quase metade do preço. Mesmo sabendo que este tipo de venda se afasta sempre da avaliação inicial, o desconto de 42% é exagerado. Na altura, Helena Roseta explicou a falta que aquelas casas àquele preço fariam para políticas de habitação de um Estado que despejou milhares de milhões no BES. O dinheiro que perdeu com a liquidação total de bens quando o imobiliário estava em alta será em grande parte coberto pelo Fundo de Resolução. Ou seja, por nós. O resto, emprestou o Novo Banco a quem comprou. E assim transformou 13 mil problemas em crédito fresco. Pode? Desde que o comprador não esteja ligado à Lone Star, sim. Não está? Não sabemos. Como quem lhe comprou foi a Anchorage, uma empresa com um fundo sediado nas Ilhas Caimão, com registo no Luxemburgo e com donos por nós desconhecidos, não foi logo divulgado. O Banco de Portugal, que tem como única função confiar na banca, confiou que não. Quando o negócio se fez, um dos vice-presidentes da Lone Star era David Bartlett. Depois foi contratado para diretor da Anchorage. Em Portugal, o negócio foi executado por cinco imobiliárias com sede na loja 19 do Shopping Columbia, compradas pela filial luxemburguesa da Anchorage. Com um historial de €200 de lucro fizeram, de uma assentada, o segundo maior negócio ibérico dos últimos anos. A expressão “cheira a esturro” usa-se para coisas menos evidentes.

Nada do que nos foi contado pelo jornalista Paulo Pena é ilegal. A fuga aos impostos no Luxemburgo, anónimos a comprar 13 mil casas, o banco que empresta dinheiro ao seu comprador, o Estado que banca um desconto de 42% em tempo de boom imobiliário... tudo seria crime se fosse feito por cidadãos que têm de provar e pagar para comprar uma casa. Com eles não é. Não estou a falar dos poderosos. Isso é conversa para quem procura inimigos fáceis. Já quase não há poderosos desses. Há um poder sem limites de uma massa anónima a que chamamos finança, constituída por meia dúzia de fundos gigantescos. Foi esse poder que transformou o crime em legalidade, tecendo uma malha que torna risível qualquer regulação. Que usa a chantagem para transformar o uso decente de recursos públicos num ato revolucionário. Que estoira o dinheiro da economia e dos impostos no casino.

Ricardo Salgado foi um pilha-galinhas vindo do tempo em que a banca tinha rostos e famílias. Teve azar e foi apanhado a fazer o que se faz quando tudo corre mal. Estou a generalizar, dizendo que a banca se dedica hoje ao crime? Estou.

Não há bancos bons. E não é porque os banqueiros sejam maus. É porque permitimos que se erguessem gigantes opacos impossíveis de controlar. E sem controlo e limites qualquer um se torna monstro. Henry Ford terá dito que se as pessoas soubessem como funciona a banca haveria uma revolução.

Sabemo-lo no bolso, e a revolução não chegou. Proponho uma: assumir que o que a lei não pode controlar devem os Estados possuir. Parece excessivo? A léguas da náusea deste assalto diário. Podemos culpar Salgado, a UE, o Banco de Portugal, Carlos Costa, Centeno, Passos Coelho ou António Costa. Mas a maior ingenuidade é a de quem acredita que o BES pode não repetir-se. Ele nunca deixou de acontecer.