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quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A economia do medo e suas consequências

por estatuadesal

(Eugénio Rosa, in Resistir, 01/08/2020)

– Aumento significativo do desemprego
– Redução do apoio aos desempregados
– Queda de 16,5% no PIB do 2º trimestre
– Uma opinião contra a corrente

O INE acabou de divulgar os dados da economia portuguesa referentes ao 2º trimestre de 2020, tendo-se verificado uma quebra no PIB (riqueza produzida no país) de 14,1% quando comparado com a do 1º trimestre deste ano, e de 16,5% quando comparado com o 2º Trimestre de 2019 (menos 8.760 milhões € de riqueza não criada só num trimestre, e menos 3.200 milhões € de remuneração não recebidas pelos trabalhadores). E logo se levantou um coro de surpresas e de críticas quer na comunicação social quer por parte de dirigentes políticos por causa do descalabro económico.

As perguntas que surgem de imediato para reflexão são as seguintes: O que poderia acontecer de diferente quando se fecham empresas e estabelecimentos, se paralisa a economia e se manda para casa quase dois milhões de trabalhadores? O que poderia acontecer de diferente quando se espalha e difunde sem um mínimo de racionalidade e de equilíbrio o medo e o pânico? Quando se assiste ao massacre diário pelos media da população confinada em casa, de manhã à noite, com noticias de mortes e de milhares de infetados, como se não existissem mais doenças e mais mortes em Portugal que, com falta de assistência médica, se multiplicaram, mas de que os media não falam e logo não existem? E quando os números de mortes em Portugal não eram suficientes para aumentar o medo juntava-se os de outros países, com muito mais população? O que poderia acontecer de diferente quando se trata uma crise de saúde desta dimensão sem um mínimo de equilíbrio e de racionalidade? O que estava em jogo era demasiadamente importante e sério, e com consequências dramáticas em todas as áreas da vida dos portugueses, que merecia ter sido tratada de uma forma mais racional, rigorosa, equilibrada e planeada, e não deixada às "caixas" chocantes da comunicação social nem às declarações contraditórias dos "especialistas" e dos responsáveis da Direção Geral da Saúde.

Embora Bernard-Henry Lévy seja um filosofo francês com quem não me identifico, ouso transcrever algumas das suas afirmações feitas numa entrevista recente ao semanário Expresso, correndo o risco de desagradar alguns leitores, pois obrigam à reflexão por serem diferentes das ideias dominantes. Afirmou ele: "acho ignóbil" que se ponha a questão "entre saúde e economia. "A economia ou a vida. A bolsa ou a vida. Voltamos a essa máxima antiga dos salteadores de estrada. É ignóbil. Porque a economia é a vida. É a vida contra a vida. Sabemos bem que se pararmos a economia durante demasiado tempo isso leva ao desemprego, o desemprego leva à miséria, e a miséria leva à morte. Portanto, não é a economia ou a vida. É a vida contra a vida".

Em Portugal tudo isto ganhou uma gravidade maior porque para o combate ao COVID-19, da forma como foi feito, a assistência medica a outras doenças foi reduzida drasticamente, como os números divulgados sobre o numero de consultas, de exames e de operações que se deixaram de fazer provam, o que causou um aumento significativo de mortes que, quando forem divulgadas, chocarão todos os portugueses. E BHL acrescentou: "o medo foi excessivo, havia uma parte desse medo irracional, insensata. E ao medo irracional chama-se pânico, cujos efeitos sociais não são bons". Na economia, afirmamos nós, os efeitos são nefastos e dramáticos como os dados do INE já revelam.

Estamos agora com um pais – Portugal – em que o medo e o pânico se alastrou, em que os portugueses têm medo de sair de casa e de regressar mesmo com a segurança possível ao trabalho e em que o teletrabalho, isolado e individualizado na maioria dos casos é trabalho desorganizado (segundo BHL, "o trabalho à distância é a solidão, o tédio, a mistura do publico e privado, a ideia que não há esfera privada fora do imperativo produtivo, é o produtivismo, é a espionagem eletrónica dos empregados pelos patrões"). A Administração Pública é um exemplo de improvisação e de incapacidade do governo para dar orientações claras, deixando tudo ao arbítrio das chefias. O teletrabalho tornou-se a panaceia e se criou a ilusão de que o país poderá funcionar e recuperar desta forma. Mas não funciona nem é verdade que recuperará –. os dados do INE acerca do PIB já provam isso

A REDUÇÃO DA RIQUEZA CRIADA NO PAÍS NO 2º TRIMESTRE DE 2020 É DE 16,5%
DESTRUIÇÃO CRESCENTE DO APARELHO PRODUTIVO NACIONAL E DO EMPREGO

Uma das ilusões que o governo e muitos jornalistas estão a difundir é que a crise é passageira (para o ministro Siza Vieira: "já atingimos o pico da crise") e que o país após a pandemia tem o seu aparelho produtivo intacto (diretor do ECO) e rapidamente recuperará (seria uma saída em V o que não é verdade, talvez em U ou W longos).

Ora tudo isso é uma ilusão, quando não mesmo uma mentira. Com o medo que se instalou na sociedade portuguesa (e o medo tem um efeito enorme na economia pois leva a quebra significativa da produção e do consumo), com a quebra generalizada de rendimentos dos trabalhadores (lay-off, horários reduzidos, e desemprego) e com o fecho de mercados externos, é evidente que a crise vai ser prolongada e vai causar uma enorme destruição de empresas (fecho) que não se aguentarão por falta de vendas (alguns chamam a isso "destruição criativa" pois só se aguentarão as empresas mais fortes) e também uma enorme destruição de emprego que levará muito tempo a recuperar e muitos trabalhadores serão excluídos definitivamente do mercado de trabalho e muitas empresas desaparecerão.

Não compreender isto é estar cego, não tomar medidas imediatas para reativar a economia é suicídio. O aumento do desemprego e o fecho definitivo de muitas empresas que já se verificou é apenas o sinal de uma crise social e económica que não sabemos quando terminará e cuja recuperação será mais difícil devido à desorganização que está a causar em toda a Administração Pública. Esta, um instrumento vital no combate à crise, antes da crise já enfrentava graves deficiências e problemas que a crise só multiplicou (são necessário objetivos claros, decisões rápidas, medidas implementadas urgentemente, investimento, nomeadamente público, elevado, tudo isto era necessário por parte do Estado para vencer a crise mas nada disto está a acontecer nem vai acontecer a breve trecho).

Os dados da evolução do desemprego real em Portugal do INE (quadro 1), que é apenas o sinal inicial da crise que vamos enfrentar, confirmam a gravidade da situação que se procura iludir.

Quadro 1.

Entre março e junho de 2020, em apenas três meses, o desemprego oficial aumentou em 4.100, mas o desemprego real subiu em 109.600, ou seja, em 26,7 vezes mais. E isto porque o INE não considera para cálculo do "desemprego oficial" todos os desempregados que no período em que fez o inquérito não procuraram emprego, apesar de serem trabalhadores no desemprego (os chamados "inativos disponíveis" que em junho de 2020 já somavam 305.000 quase tanto como desemprego oficial), que incluímos no cálculo do desemprego real, por serem verdadeiros desempregados. O desemprego real atingia, no fim de jun/2020, já 636.200 trabalhadores. O desemprego oficial do INE oculta à opinião pública o desemprego real. O número dos que estão a receber subsídio de desemprego é muito reduzido como mostra o gráfico 1 (Segurança Social).

Gráfico 1.

Em jun/2020, o número de trabalhadores desempregados já atingia 636.200, mas o número destes que recebiam subsidio de desemprego eram apenas 221.701. E entre maio-junho 2020 diminuiu em 3.652 apesar do número de desempregados ter aumentado nesse mês em 20.300. Somente 35 em cada 100 desempregados recebem subsídio de desemprego. E o subsídio médio de desemprego pago neste mês foi, segundo dados da Segurança Social apenas de 504,70€.

É a miséria que se está a alastrar no país perante a inação de um governo que nada faz de concreto para reativar a economia (só promete "bazucas" da UE que continuam sem disparar). Não é com lay-offs, com reduções de horários de trabalho e dos rendimentos dos trabalhadores, e moratórias que se consegue a recuperação. Isso só prolonga a agonia e torna o final muito mais doloroso e destrutivo.

O zoom dos imperadores

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 04/08/2020)

Nunca na história moderna houve empresas tão poderosas e nunca as empresas mais poderosas foram as de comunicações, o que significa que desenham o poder. Por isso, a aliança entre Zuckerberg, em particular, e Trump, seja ela episódica, é um dos factos mais influentes deste ano de 2020.


Quando Bezos (Amazon), Cook (Apple), Zuckerberg (Facebook) e Pichai (Google) se sentaram nos seus gabinetes para um zoom com a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, no fim da semana passada, nem era a primeira vez que o faziam nem seria a mais difícil das suas audições. Mas o surpreendente é que demonstraram algum nervosismo. Trata-se dos gestores de quatro das empresas mais poderosas do mundo e, se os deputados norte-americanos tinham perguntas a fazer-lhes sobre a forma como estabelecem monopólios nos seus sectores de atividade, estariam relativamente tranquilos quanto à inconsequência das questões: aquele Parlamento não concebe a ideia de impor restrições que dividam os monopólios, ao contrário do que aconteceu há um século com maior companhia petrolífera.

Assim, durante cinco horas, os quatro executivos desembaraçaram-se, mesmo que com alguma atrapalhação, das inquietações dos deputados, que ficaram na mesma. Desviaram a conversa para o “perigo chinês”, tão ao gosto de Trump, e para um discurso meloso acerca do “sonho americano”, que justificaria todas as tropelias na destruição de concorrentes e no condicionamento dos consumidores. Os “imperadores”, como lhe chamou a imprensa norte-americana, limitaram-se a exibir o seu poder, deixando as respostas no ar.

O que não conseguem evitar é que a questão do poder dos monopólios de busca de conteúdos, de comunicação, de publicidade e de plataformas sociais se torne mais notória no debate sobre o presente e futuro da democracia. Por isso radicalizam as suas posições. O que os imperadores estão a tentar construir é um castelo inexpugnável e que, estando acima dos estados nacionais e de autoridades internacionais, defina as suas próprias regras. Nunca na história moderna houve empresas tão poderosas e nunca as empresas mais poderosas foram as de comunicações, o que significa que desenham o poder. Por isso, a aliança entre Zuckerberg, em particular, e Trump, seja ela episódica, é um dos factos mais influentes deste ano de 2020. Mesmo que não seja suficiente para recuperar o terreno eleitoral já perdido pelo milionário, assim se conformarão os poderes mundiais deste século: o que decide são os mísseis, o comando financeiro e o controlo de massas pela internet.

Nesse contexto, a intervenção da Casa Branca contra a rede TikTok, da chinesa ByteDance, foi interpretada como uma vingança: adolescentes norte-americanos terão utilizado a rede para popularizar a ideia de um boicote artificioso ao comício de Trump em Tulsa em junho, pedindo centenas de milhares de bilhetes para deixarem a sala às moscas. O presidente quereria banir a rede, que é a que mais tem crescido nos EUA (já terá 100 milhões de utilizadores, um terço da população, sobretudo jovens) e teria inventado o estratagema de impor a sua compra por uma empresa norte-americana para a domesticar. Em todo o caso, parece que a justificação é exagerada, a direita republicana também já tem grande presença na rede (o hastag #conservative tem 1,9 mil milhões de visualizações). O resultado, apesar de tudo, foi que a Microsoft se ofereceu, teria assim um canal de entrada no mundo das redes sociais e fala-se de um preço de 50 mil milhões.

Ora, a perspetiva da venda desencadeou uma tempestade entre os trumpistas. O conselheiro para o comércio externo, Peter Navarro, recusa a operação e pede iniciativas para proibir a ação da Tiktok e do WeChat, da Tencent, outro gigante chinês. Ameaçou mesmo a Microsoft de ter de encerrar as suas operações da China, se fosse adiante com a compra. Num tuíte de sexta-feira, Trump apoiou-o e anunciou a proibição do negócio, mas voltou atrás esta semana depois de um telefonema de Satya Nadella, chefe da Microsoft. Se se concretizar nas próximas semanas, será a maior compra de empresa do ano, com um simbolismo evidente: quando todo o mundo mergulha em recessão, há um setor que cresce, o da comunicação.

A lógica parece ser a de que, se for um gigante tecnológico norte-americano a crescer, a soberania dos imperadores ficará reforçada e, no fim das contas, é isso mesmo que é determinante. Os presidentes passam pela Casa Branca mas quem fica são os poderes que tutelam a comunicação e o nosso dia a dia.

Obsessão patológica

Posted: 04 Aug 2020 03:54 AM PDT

«Nos últimos 21 anos, o Bloco de Esquerda desenvolveu aquilo a que Ricardo Salgado chamou uma "obsessão patológica" pelos negócios dos "donos de Portugal". Nestes anos, questionámos o poder de banqueiros, denunciámos o rentismo nas empresas privatizadas e fizemos as contas à porta giratória que unia (e une) PS e PSD aos interesses económicos. É essa intransigência na defesa do que é público que hoje dirigimos ao Novo Banco.

Todas as semanas, o tema regressa pelas piores razões. E, sim, "nós avisámos" sobre um desastre que só não anteviu quem não quis, e apresentámos proposta: nacionalizar o banco teria custos, mas garantia o controlo público ao serviço da economia.

No dia 27 de janeiro de 2017, propusemos a "manutenção da propriedade do Novo Banco na esfera pública", que foi rejeitada por PS/PSD/CDS. No dia 13 de abril, propusemos a condenação do Governo pela decisão de venda sem consulta ao Parlamento, rejeitada por PS/PSD. Nesse dia, deu entrada um projeto para a "Nacionalização do capital social do Novo Banco, SA", também rejeitada por PS/PSD/CDS. No dia 5 de maio, marcámos um debate para denunciar as condições de venda, a que se seguiram dezenas de artigos, propostas de orçamento, audições ao Banco de Portugal, ao Fundo de Resolução e à Administração do Novo Banco, pedidos de documentação e outros tantos debates e requerimentos.

A cada novo pedido de injeção de capital, o Novo Banco deu-nos razão. Com a determinação de uma auditoria à gestão privada do Novo Banco, o Governo (empurrado pelo Parlamento) escolheu o caminho mais longo. Mas foi um passo importante para dotar o Estado dos instrumentos que lhe permitam fazer frente ao fundo Lone Star. É por isso que defendemos que fosse impedida uma nova injeção sem conhecer os resultados dessa auditoria. Ao fazer a transferência de 850 milhões contra a palavra do primeiro-ministro, o Governo foi fraco perante os interesses do fundo financeiro internacional. E voltou a sê-lo ao aceitar o atraso da Deloitte, contratada por três milhões de euros para auditar o Novo Banco. O mesmo Governo que não quis esperar para pagar ao Lone Star aceitou o atraso imposto pela consultora financeira.

Seja o que for que a auditoria da Deloitte esconde, o país não tem que aceitar a espera. A consultora e o Governo devem informar o Parlamento de todas as conclusões preliminares, e o Governo, para dar-se ao respeito, deve cancelar o contrato. Depois, o Estado tem uma de duas opções para terminar uma auditoria que defenda o interesse público: ou a IGF ou Mário Centeno mostra o que vale no Banco de Portugal.

PS. Solidarizo-me com os milhares de pessoas que se juntaram para pedir justiça por Bruno Candé. O seu homicídio não será menorizado pelas distrações criadas por André Ventura para disfarçar as suas ligações às offshores e aos vistos gold da corrupção e o financiamento obscuro do seu partido. No Bloco, levamos o combate à corrupção tão a sério como o combate ao racismo.»

Mariana Mortágua

terça-feira, 4 de agosto de 2020

É bom que nos preparemos

Posted: 03 Aug 2020 03:24 AM PDT

«Se há coisa que aprendemos à força com esta pandemia compressora foi não fazer planos de rigorosamente nada: a verdade à segunda-feira pode ser de uma enorme imprecisão à sexta.

Na forma como o vírus muda, nos alvos preferenciais do contágio, na evolução da nossa saúde e na dos nossos, no sentido das medidas restritivas e, sobretudo, nas projeções económicas. Neste particular, estamos a confundir com naturalidade os pessimistas com os catastrofistas e os otimistas com os ignaros. Só podia ser assim, porque em algum momento desta narrativa vertiginosa ambos estiveram certos e errados.

Viveremos, provavelmente até ao final do mês, numa espécie de bolha artificial. Com setembro, começaremos a conhecer a verdadeira dimensão da hecatombe. O brutal encolhimento do PIB no segundo trimestre do ano (que reflete o período do Grande Confinamento) foi quatro vezes pior do que o pior da troika. Recuámos vários anos em escassos meses. Acresce que a retoma está a ser mais tímida do que o esperado, o turismo exaspera (o Algarve viveu mesmo o pior julho de sempre), as exportações estão congeladas e, no princípio, no meio e no fim, ainda temos de lidar com a progressiva erosão da força modificadora do Estado. Não por acaso, ouvimos o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, reconhecer que, findos os apoios públicos mais significativos na manutenção artificial do tecido económico, vão aumentar as insolvências e os desempregados.

O Estado foi a salvação de uma fatia considerável do país, mas o oxigénio está a acabar. E vem aí o inverno. E com ele a gripe sazonal e a ameaça cada vez mais certa de uma segunda vaga da pandemia. Ora, para acorrer a tudo será preciso um investimento adicional no Serviço Nacional de Saúde. Mais despesa.

A aparente sensação de normalização que nos foi dada pelo desconfinamento não deve entorpecer o nosso sentido de compromisso. A batalha é de todos os dias, reflete-se nas pequenas ações, gestos e cuidados. Temos de estar preparados para o que aí vem mesmo que não saibamos o que nos espera. Porque se formos forçados a parar tudo outra vez, não tenho a certeza de que o queiramos, ou possamos, fazer. Se chegarmos a esse extremo, teremos certamente outro entendimento sobre o valor da doença e da cura.»

Pedro Ivo Carvalho

Desgraças e cheques em branco

Posted: 02 Aug 2020 03:38 AM PDT

«Nunca perderei a esperança de que é possível e vale a pena lutar por um Mundo melhor na certeza de se poderem, sempre, encontrar dimensões novas para a realização do ser humano. Contudo, evidenciam-se hoje demasiadas negações coletivas geradoras de medos.

O assassinato a sangue-frio do ator Bruno Candé e os escabrosos comentários justificativos desse ato hediondo mostram-nos racismo inculcado na sociedade portuguesa. Ora, o racismo e outras manifestações de intolerância e violência estão a armadilhar a vivência democrática das sociedades e o alarme tem de disparar quando, poucos dias depois, Rui Rio admite que se o Chega mudar de discurso (lavar a cara) até pode entrar no diálogo para um projeto de Oposição ou governação do país.

A desgraça maior é observarmos, simultaneamente: i) o poder desmedido e opaco com que os potentados tecnológicos Amazon, Apple, Facebook e Google se apresentaram ao Senado Americano; ii) a especulação financeira desencadeada pela "corrida às vacinas" contra a covid-19; iii) a invocação do combate à pandemia para se coartarem liberdades; iv) a forma indecorosa como certos países europeus se tornam frugais e credibilizam as casas de receção do roubo que são os offshore; v) a mais que suspeita gestão fraudulenta do Novo Banco, que infelizmente não é uma situação excecional - nem interna nem externa - mas sim o espelho do que se passa com o poder do setor financeiro e o uso subversivo de tecnologias; vi) a brutal queda do PIB (Produto Interno Bruto) e tantas empresas em coma. Cheira forte a um "novo" normal duro e perigoso, carregado de desemprego, de exploração e desigualdades, de pobreza, de profundos problemas sociais.

É difícil acreditar na legalidade das transações do Novo Banco quando a principal figura do fundo abutre que comprou as 13 mil casas, terrenos e outros bens imobiliários envolvidos no negócio veio da Lone Star. E o que é a legalidade? Como há muitos anos digo, o roubo "legal" é, nas sociedades atuais, incomensuravelmente maior que o roubo na plena acessão da palavra. Entretanto, quando se constata que negócios deste tipo são "legais", o problema em vez de se atenuar, agrava-se.

Fazem falta regulação e fiscalização sérias, mas os sistemas montados são autênticas fraudes. Como é possível, depois de tantos negócios ruinosos, compadrio e corrupção a marcarem o caminho da Banca, ter acontecido a privatização deste banco e ter sido assinado um contrato que permite ao comprador assaltá-lo por dentro e remeter a fatura das perdas para os bolsos dos portugueses? O que é isto? Talvez uma mistura de cegueira política, imprudência, impunidade e estupidez geradas pela "moderação" que marca o comportamento dos autointitulados cidadãos honrados que gerem os diversos poderes instalados.

A 3 de fevereiro de 2017 a Assembleia da República rejeitou, com votos contra do CDS, do PSD e do PS, projetos de resolução do BE e do PCP que se opunham à venda do banco à Lone Star e propunham a sua nacionalização. Muitos dos agora surpreendidos e indignados estão apenas a colher o que semearam. E o presidente da República, ou o primeiro-ministro não podem falar do assunto como se dispusessem apenas da informação do comum dos cidadãos. Não lhes podemos admitir hipocrisia política ou desresponsabilização.»

Manuel Carvalho da Silva