Posted: 05 Aug 2020 03:46 AM PDT
«Os chineses têm uma teoria a que chamam de ciclos dinásticos. Simplificadamente, reza assim: o imperador que estabelece a dinastia é capaz e virtuoso e melhora a vida dos súbditos. Geralmente é um imperador guerreiro (esmaga militarmente a dinastia cessante), sucedido por um filho erudito, mais preocupado com as artes e a burocracia governativa, igualmente virtuoso e, nos termos confucianos, um homem nobre (de carácter). Porém, com o passar das gerações, os imperadores vão amolecendo, ganhando gosto pela boa vida do palácio e das concubinas, secundarizando o governo do império. Até que se tornam tão viciados que as catástrofes começam a acontecer. As obras de irrigação degradam-se por falta de manutenção, resultando em cheias ou secas, ambas destruindo colheitas e gerando fome. Terramotos também marcam presença, sinalizando que a dinastia perdeu o Mandato do Céu. Os súbditos podem sentir-se legitimados em substituí-la por outra dinastia.
Mas há dinastias mais pragmáticas. Chegam ao estado de decadência moral mais rapidamente. No caso espanhol, num só reinado. O rei Juan Carlos passou de garante da transição espanhola do franquismo para a democracia, e uma das figuras que fez abortar o golpe fascista de 23 de fevereiro, para um agente investigado por corrupção. Estabelecendo a fortuna familiar (até aí inexistente), suspeita-se, através de tráficos de influências pelos quais foi magnificamente pago. De personalidade incontestada e venerada em Espanha – muitos diziam-se não monárquicos mas juancarlistas –, ganhou reputação de vulgar vendilhão e corrupto. Esta semana exilou-se para não perigar a monarquia espanhola deixando-se avistar por Espanha.
Em boa verdade, nada do que Juan Carlos fez foi novidade nos círculos reais. Podemos dizer que seguiu uma tradição bem estabelecida das famílias reais de se enriquecerem, e aos seus, fazendo uso do poder político que detinham. O azar de Juan Carlos foi viver numa era em que o método de amealhar dos seus antecessores é malvisto.
Em todo o caso, a família real espanhola é um ótimo exemplo de como a suposta probidade moral da monarquia – que a justifica, em oposição à necessidade de compromissos políticos e, tantas vezes, éticos de quem precisa de ganhar eleições – é ilusória. A filha mais nova de Juan Carlos escapou a acusações e julgamentos (provavelmente por benevolência e respeito pela sua posição), no entanto o marido cumpre pena de prisão.
Não espanta. Olha-se para a História e uma das realidades mais salientes é a quantidade de patifórios, cobardes, incapazes (não raro em estádios de idiotia clínica) que as monarquias produziram. As questões do vil metal, de resto, são sempre determinantes para estas almas supostamente desligadas da materialidade e somente preocupadas com conceitos etéreos como o dever e a dignidade do país. Vejamos um episódio que envolveu Portugal. Eduardo VIII, em fuga dos nazis que ocuparam Paris e temporariamente em Cascais, enquanto pesava deixar-se raptar pelos alemães (com quem simpatizava e que lhe guardaram com enlevo a casa parisiense) para servir de marionete aos inimigos dos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial ou chantagear a sua família para o receberem de volta em Inglaterra, decidiu manter-se afastado do seu país pela razão mais prosaica: um enviado de Churchill a Lisboa informou-o da quantidade de impostos que teria de pagar se regressasse.
O Rei Alberto II da Bélgica possuía tal retidão moral que se recusou aceitar a paternidade e a sustentar uma sua filha de uma ligação não conjugal. Foi obrigado ao reconhecimento por um teste de ADN, qual playboy sem escrúpulos. O príncipe André do Reino Unido participou no esquema de exploração sexual de adolescentes de Jeffrey Epstein. No lado oposto, é difícil apontar um caso de génio ou talento excecional nas casas reais. Nos exemplos mais virtuosos, que também existem, são personagens sensaboronas sensíveis ao sentido de dever.
Esta falta de têmpera é resultado da endogamia das casas reais que torna o sangue fraco, mas também da sensação de casta intocável, de distância incontestada dos mortais comuns que é promovida nas famílias reais. Na carta que Juan Carlos escreveu ao filho, atual rei, informando-o de que iria residir fora de Espanha, refere investigações sobre a sua vida privada. Fazendo lembrar as desculpas dos corruptos mais escancarados, que igualmente se escudam nos dinheiros da sua vida privada para se esquivarem de dar explicações da forma como abusam da sua posição.
Juan Carlos e a família real espanhola – incluindo Filipe VI, conhecido por ser bem-parecido mas particularmente pouco brilhante – tornaram-se num exemplo da falibilidade da monarquia. Num país onde rei ou rainha poderiam trazer um efetivo benefício – sendo o tal símbolo unificador e de perenidade e estabilidade que se lhe aponta como razão de existência, o substituto de espírito nacional num país com várias línguas e regiões que em tempos passados se viam como inimigas e separadas –, Juan Carlos e a sua família falharam e expuseram a sua inutilidade.
O poder simbólico da monarquia já não é suficiente para manter em união aparentemente amistosa zonas que se querem separar. (A Catalunha acena-nos.) Questões como a integração económica das diferentes regiões ou a pertença à União Europeia e ao euro provavelmente pesam mais que partilharem o mesmo chefe de Estado hereditário. Vê-se o mesmo efeito na Escócia, com o “Brexit” incendiando os ímpetos independentistas, malgrado a rainha Isabel II.
Há tentativas das monarquias se modernizarem e humanizarem. Os casamentos românticos dos herdeiros dos tronos europeus com plebeias (e, no caso sueco, plebeu) atraentes, substituindo casamentos de conveniência por vidas familiares mais recompensadoras. Uma (pouco) maior parcimónia no uso do dinheiro dos impostos. Porém, permanece o paradoxo: se são uma família normal, não merecem privilégio hereditário; se são diferentes, então têm de ser incansavelmente perfeitos – e ninguém é.
Por muito que alguns membros das famílias reais se constituam interessantes espécimes da natureza humana, são falíveis, entediantes, egoístas, com defeitos de carácter – tal como os demais. Ora para termos chefes de Estado corruptos e imorais não é necessária a manutenção de riquezas e honrarias hereditárias. Com eleições e numa república, o consulado destas personagens é sempre temporário. É uma vantagem.»