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sábado, 8 de agosto de 2020

A invenção do verão

por estatuadesal

(José Soeiro, in Expresso Diário, 07/08/2020)

José Soeiro

Tempo de liberdade e de disponibilidade para si – as férias finalmente. Mas não para todos. Este ano, chegados a agosto, uma parte dos trabalhadores não tem dias de férias para gozar, porque as suas empresas os obrigaram a despendê-los durante o período do confinamento, enquanto o lay-off não vinha. Para outros, as férias pagas são uma miragem que nunca tiveram o direito a saborear – há 800 mil trabalhadores a recibo verde e outros tantos trabalhadores informais para quem esse direito não existe. E há ainda os precários que perderam o emprego – não têm trabalho, é certo, mas poderemos chamar a um período de ansiedade, em que a ausência de atividade convive com a aflição da ausência de rendimento, um tempo de férias?

As férias de verão são, na realidade, uma invenção relativamente recente do ponto de vista histórico. Não existiram sempre, não existem ainda hoje em muitos países, e não caíram do céu. Enquanto estação, devemos o verão à inclinação do eixo de rotação da terra que nos traz, neste período, mais sol. Mas enquanto tempo social, enquanto interrupção parcial do “trabalho para outros”, enquanto tempo para nós, o verão é uma invenção e uma conquista do movimento operário, das greves e dos sindicatos.

Foi há pouco mais de 80 anos, em 1936, que a Frente Popular, em França, num governo que juntou socialistas, comunistas e radicais, reconheceu pela primeira vez no mundo as duas semanas de férias pagas aos trabalhadores. Esse reconhecimento não foi uma oferta generosamente outorgada por um Governo, por melhor que ele fosse. Foi um direito arrancado ao poder pela força de uma onda grevista que, pouco depois desse governo tomar posse, em maio desse ano, dinamizou uma enorme greve que começou numa empresa de aviação, que teve a solidariedade dos estivadores e que depois se alastrou a toda a sociedade, com a participação de mais de 2 milhões de trabalhadores, que então pararam.

Em junho de 36, contrariando a ambição dos patrões, o governo da frente popular fecharia a negociação de um acordo com os grevistas para lhes garantir não apenas as 40 horas sem perda salarial (num tempo em que a regra era ainda as 48 horas), mas também as duas semanas de férias pagas. Foi um momento histórico. Em Portugal, só depois do 25 de abril de 1974 se consagrou as férias como um direito anual irrenunciável, independente da vontade dos patrões.

Tantas décadas depois, o que temos?

Temos horários que se prolongam informalmente para lá das 40 horas, o tempo pessoal invadido por solicitações permanentes, a omnipresença de novas tecnologias, uma hiperconectividade que funciona como uma espécie de prisão. Temos, também, uma lei vinda de 2012, que cortou 3 dias de férias a quem trabalha, e que nunca foi alterada. Temos uma situação difícil pela frente, um mar de precários, de desempregados, de recibos verdes e de trabalhadoras informais que não têm férias pagas porque não gozam desse direito elementar que seria ter um contrato de trabalho.

Mas temos, também, memória – esse antídoto contra o fatalismo. E, como no passado, a imensa força da solidariedade e das escolhas coletivas por fazer.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Quão grande é a queda?

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 06/08/2020)

Alexandre Abreu

O INE publicou há dias a sua estimativa rápida da evolução do PIB português no segundo trimestre de 2020. Ficámos a saber que neste período em que os impactos da epidemia e do confinamento mais se fizeram sentir a economia portuguesa recuou -14,1% em cadeia (comparando com o trimestre anterior) e -16,5% em termos homólogos (comparando com o segundo trimestre de 2019). Para além de ter colocado Portugal tecnicamente em recessão, já que é o segundo trimestre consecutivo de contração, este recuo é o maior de que há registo histórico. Foi consequentemente apelidado de “queda brutal” e “trambolhão monumental” na comunicação social, o que não deixa de ter fundamento. Mas como podemos avaliar a real dimensão deste recuo?

Tanto em cadeia como em termos homólogos, a queda do PIB português neste segundo trimestre excede largamente os piores trimestres da Grande Recessão e da crise do euro. Entre 2008 e 2013, a contração trimestral do PIB nunca ultrapassou os -3% e o recuo trimestral homólogo foi no máximo de -5%. Para além disso, a contração da economia portuguesa foi maior do que a média da União Europeia e da zona euro, segundo a estimativa rápida do Eurostat (-15% e -14,4% em termos homólogos, respetivamente), tendo sido a quarta maior entre os países da União Europeia que disponibilizaram já estimativas rápidas. O impacto negativo sobre a economia portuguesa compara ainda desfavoravelmente, por exemplo, com o recuo trimestral da economia norte-americana, que foi de -9,5% em cadeia.

Em contrapartida, a contração homóloga do PIB em Portugal foi a sexta menor entre as economias europeias com estimativas publicadas: afinal de contas, foram apenas dez os países com estimativas rápidas incluídos na nota informativa do Eurostat. A diferença face à média europeia pode ser considerada pouco significativa, a comparação com o recuo da economia norte-americana faz pouco sentido (até porque esta crise sanitária e as medidas de resposta chegaram com várias semanas de atraso aos Estados Unidos) e há motivos para pensarmos que, mais do que no contexto da Grande Recessão e da crise do euro, a crise atual tem um impacto brutal mas mais circunscrito no tempo.

Sobretudo, a dimensão da contração do PIB português agora estimada pelo INE parece-me surpreendentemente limitada à luz do que já sabiamos sobre a situação do emprego em Portugal. As estimativas do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social que têm vindo a ser publicadas todas as semanas mostram que mais de um milhão de trabalhadores terá estado em lay-off entre 16 de abril (data em que se terá ultrapassado a marca de um milhão) e o final de julho (altura em que seriam cerca de 1 milhão e 400 mil os trabalhadores em lay-off). Isto representa qualquer coisa como 1/4 da população empregada em lay-off durante este trimestre, em princípio sem produzir, aos quais acrescem ainda algumas centenas de milhar de novos desempregados, a maioria dos quais surge nas estatísticas como novos inativos. Considerando tudo isto, que o recuo trimestral do PIB tenha sido de -16,5% e não de -20% a -30% pode até ser considerado surpreendente pela positiva.

Outra forma de aferirmos a dimensão do recuo da economia passa por tentarmos antecipar a sua dimensão anual. É um exercício dificil e discutível, pois implica antecipar a trajetória de recuperação (ou não) nos próximos trimestres. Nos Estados Unidos, por exemplo, o recuo em cadeia de -9,5% foi apresentado em muitos órgãos de comunicação social como um recuo anualizado de -32,9%, mas este último número faz pouco sentido, já que equivale a assumir que o comportamento da economia durante o conjunto do ano será praticamente tão mau como neste trimestre, o que na ausência de um agravamento significativo da pandemia parece pouco realista. Também no caso português, tudo depende da trajetória dos próximos meses: se, depois do embate da primeira metade do ano, a economia portuguesa recuperasse para valores do PIB no 3º e 4º trimestres de 2020 idênticos aos de 2019, a contração anual seria relativamente limitada, talvez de -4% ou -5%. Mas é muito mais provável que o impacto sobre vários setores, como por exemplo o turismo, se prolongue pelo resto do ano, implicando quedas trimestrais homólogas menos intensas do que no segundo trimestre mas ainda assim muito expressivas. Se esses recuos trimestrais forem próximos de -10%, estaremos perto de uma contração anual igualmente com dois dígitos.

Em todo o caso, o mais determinante de tudo vão ser os efeitos de segunda ronda: isto é, a dimensão ‘secundária’ da recessão causada pelas falências, desemprego e contração da despesa originados pela paragem ‘primária’ da economia no contexto da epidemia e do confinamento. Estes efeitos de segunda ronda – no fundo, a espiral recessiva associada a estes efeitos multiplicadores negativos – são também os mais difíceis de prever, pois dependem de fatores relativamente complexos: o padrão setorial da contração da despesa e as ligações a montante a jusante entre os vários setores, a robustez ou vulnerabilidade financeira das empresas afetadas, o impacto sobre a confiança de consumidores e investidores e a adequação (em termos de dimensão e rapidez) da resposta contracíclica pública, entre outros. E é aqui, mais do que na dimensão do recuo no último trimestre, que me parecem estar as principais razões para preocupação: apesar da melhoria nos últimos anos em indicadores como o crédito malparado, os setores privado e público da economia portuguesa permanecem altamente endividados e, por esse motivo, bastante vulneráveis. Mais do que a dimensão do embate inicial, são as perspetivas de recuperação que preocupam.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Juan Carlos e o retrato da monarquia

Posted: 05 Aug 2020 03:46 AM PDT

«Os chineses têm uma teoria a que chamam de ciclos dinásticos. Simplificadamente, reza assim: o imperador que estabelece a dinastia é capaz e virtuoso e melhora a vida dos súbditos. Geralmente é um imperador guerreiro (esmaga militarmente a dinastia cessante), sucedido por um filho erudito, mais preocupado com as artes e a burocracia governativa, igualmente virtuoso e, nos termos confucianos, um homem nobre (de carácter). Porém, com o passar das gerações, os imperadores vão amolecendo, ganhando gosto pela boa vida do palácio e das concubinas, secundarizando o governo do império. Até que se tornam tão viciados que as catástrofes começam a acontecer. As obras de irrigação degradam-se por falta de manutenção, resultando em cheias ou secas, ambas destruindo colheitas e gerando fome. Terramotos também marcam presença, sinalizando que a dinastia perdeu o Mandato do Céu. Os súbditos podem sentir-se legitimados em substituí-la por outra dinastia.

Mas há dinastias mais pragmáticas. Chegam ao estado de decadência moral mais rapidamente. No caso espanhol, num só reinado. O rei Juan Carlos passou de garante da transição espanhola do franquismo para a democracia, e uma das figuras que fez abortar o golpe fascista de 23 de fevereiro, para um agente investigado por corrupção. Estabelecendo a fortuna familiar (até aí inexistente), suspeita-se, através de tráficos de influências pelos quais foi magnificamente pago. De personalidade incontestada e venerada em Espanha – muitos diziam-se não monárquicos mas juancarlistas –, ganhou reputação de vulgar vendilhão e corrupto. Esta semana exilou-se para não perigar a monarquia espanhola deixando-se avistar por Espanha.

Em boa verdade, nada do que Juan Carlos fez foi novidade nos círculos reais. Podemos dizer que seguiu uma tradição bem estabelecida das famílias reais de se enriquecerem, e aos seus, fazendo uso do poder político que detinham. O azar de Juan Carlos foi viver numa era em que o método de amealhar dos seus antecessores é malvisto.

Em todo o caso, a família real espanhola é um ótimo exemplo de como a suposta probidade moral da monarquia – que a justifica, em oposição à necessidade de compromissos políticos e, tantas vezes, éticos de quem precisa de ganhar eleições – é ilusória. A filha mais nova de Juan Carlos escapou a acusações e julgamentos (provavelmente por benevolência e respeito pela sua posição), no entanto o marido cumpre pena de prisão.

Não espanta. Olha-se para a História e uma das realidades mais salientes é a quantidade de patifórios, cobardes, incapazes (não raro em estádios de idiotia clínica) que as monarquias produziram. As questões do vil metal, de resto, são sempre determinantes para estas almas supostamente desligadas da materialidade e somente preocupadas com conceitos etéreos como o dever e a dignidade do país. Vejamos um episódio que envolveu Portugal. Eduardo VIII, em fuga dos nazis que ocuparam Paris e temporariamente em Cascais, enquanto pesava deixar-se raptar pelos alemães (com quem simpatizava e que lhe guardaram com enlevo a casa parisiense) para servir de marionete aos inimigos dos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial ou chantagear a sua família para o receberem de volta em Inglaterra, decidiu manter-se afastado do seu país pela razão mais prosaica: um enviado de Churchill a Lisboa informou-o da quantidade de impostos que teria de pagar se regressasse.

O Rei Alberto II da Bélgica possuía tal retidão moral que se recusou aceitar a paternidade e a sustentar uma sua filha de uma ligação não conjugal. Foi obrigado ao reconhecimento por um teste de ADN, qual playboy sem escrúpulos. O príncipe André do Reino Unido participou no esquema de exploração sexual de adolescentes de Jeffrey Epstein. No lado oposto, é difícil apontar um caso de génio ou talento excecional nas casas reais. Nos exemplos mais virtuosos, que também existem, são personagens sensaboronas sensíveis ao sentido de dever.

Esta falta de têmpera é resultado da endogamia das casas reais que torna o sangue fraco, mas também da sensação de casta intocável, de distância incontestada dos mortais comuns que é promovida nas famílias reais. Na carta que Juan Carlos escreveu ao filho, atual rei, informando-o de que iria residir fora de Espanha, refere investigações sobre a sua vida privada. Fazendo lembrar as desculpas dos corruptos mais escancarados, que igualmente se escudam nos dinheiros da sua vida privada para se esquivarem de dar explicações da forma como abusam da sua posição.

Juan Carlos e a família real espanhola – incluindo Filipe VI, conhecido por ser bem-parecido mas particularmente pouco brilhante – tornaram-se num exemplo da falibilidade da monarquia. Num país onde rei ou rainha poderiam trazer um efetivo benefício – sendo o tal símbolo unificador e de perenidade e estabilidade que se lhe aponta como razão de existência, o substituto de espírito nacional num país com várias línguas e regiões que em tempos passados se viam como inimigas e separadas –, Juan Carlos e a sua família falharam e expuseram a sua inutilidade.

O poder simbólico da monarquia já não é suficiente para manter em união aparentemente amistosa zonas que se querem separar. (A Catalunha acena-nos.) Questões como a integração económica das diferentes regiões ou a pertença à União Europeia e ao euro provavelmente pesam mais que partilharem o mesmo chefe de Estado hereditário. Vê-se o mesmo efeito na Escócia, com o “Brexit” incendiando os ímpetos independentistas, malgrado a rainha Isabel II.

Há tentativas das monarquias se modernizarem e humanizarem. Os casamentos românticos dos herdeiros dos tronos europeus com plebeias (e, no caso sueco, plebeu) atraentes, substituindo casamentos de conveniência por vidas familiares mais recompensadoras. Uma (pouco) maior parcimónia no uso do dinheiro dos impostos. Porém, permanece o paradoxo: se são uma família normal, não merecem privilégio hereditário; se são diferentes, então têm de ser incansavelmente perfeitos – e ninguém é.

Por muito que alguns membros das famílias reais se constituam interessantes espécimes da natureza humana, são falíveis, entediantes, egoístas, com defeitos de carácter – tal como os demais. Ora para termos chefes de Estado corruptos e imorais não é necessária a manutenção de riquezas e honrarias hereditárias. Com eleições e numa república, o consulado destas personagens é sempre temporário. É uma vantagem.»

Maria João Marques

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A economia do medo e suas consequências

por estatuadesal

(Eugénio Rosa, in Resistir, 01/08/2020)

– Aumento significativo do desemprego
– Redução do apoio aos desempregados
– Queda de 16,5% no PIB do 2º trimestre
– Uma opinião contra a corrente

O INE acabou de divulgar os dados da economia portuguesa referentes ao 2º trimestre de 2020, tendo-se verificado uma quebra no PIB (riqueza produzida no país) de 14,1% quando comparado com a do 1º trimestre deste ano, e de 16,5% quando comparado com o 2º Trimestre de 2019 (menos 8.760 milhões € de riqueza não criada só num trimestre, e menos 3.200 milhões € de remuneração não recebidas pelos trabalhadores). E logo se levantou um coro de surpresas e de críticas quer na comunicação social quer por parte de dirigentes políticos por causa do descalabro económico.

As perguntas que surgem de imediato para reflexão são as seguintes: O que poderia acontecer de diferente quando se fecham empresas e estabelecimentos, se paralisa a economia e se manda para casa quase dois milhões de trabalhadores? O que poderia acontecer de diferente quando se espalha e difunde sem um mínimo de racionalidade e de equilíbrio o medo e o pânico? Quando se assiste ao massacre diário pelos media da população confinada em casa, de manhã à noite, com noticias de mortes e de milhares de infetados, como se não existissem mais doenças e mais mortes em Portugal que, com falta de assistência médica, se multiplicaram, mas de que os media não falam e logo não existem? E quando os números de mortes em Portugal não eram suficientes para aumentar o medo juntava-se os de outros países, com muito mais população? O que poderia acontecer de diferente quando se trata uma crise de saúde desta dimensão sem um mínimo de equilíbrio e de racionalidade? O que estava em jogo era demasiadamente importante e sério, e com consequências dramáticas em todas as áreas da vida dos portugueses, que merecia ter sido tratada de uma forma mais racional, rigorosa, equilibrada e planeada, e não deixada às "caixas" chocantes da comunicação social nem às declarações contraditórias dos "especialistas" e dos responsáveis da Direção Geral da Saúde.

Embora Bernard-Henry Lévy seja um filosofo francês com quem não me identifico, ouso transcrever algumas das suas afirmações feitas numa entrevista recente ao semanário Expresso, correndo o risco de desagradar alguns leitores, pois obrigam à reflexão por serem diferentes das ideias dominantes. Afirmou ele: "acho ignóbil" que se ponha a questão "entre saúde e economia. "A economia ou a vida. A bolsa ou a vida. Voltamos a essa máxima antiga dos salteadores de estrada. É ignóbil. Porque a economia é a vida. É a vida contra a vida. Sabemos bem que se pararmos a economia durante demasiado tempo isso leva ao desemprego, o desemprego leva à miséria, e a miséria leva à morte. Portanto, não é a economia ou a vida. É a vida contra a vida".

Em Portugal tudo isto ganhou uma gravidade maior porque para o combate ao COVID-19, da forma como foi feito, a assistência medica a outras doenças foi reduzida drasticamente, como os números divulgados sobre o numero de consultas, de exames e de operações que se deixaram de fazer provam, o que causou um aumento significativo de mortes que, quando forem divulgadas, chocarão todos os portugueses. E BHL acrescentou: "o medo foi excessivo, havia uma parte desse medo irracional, insensata. E ao medo irracional chama-se pânico, cujos efeitos sociais não são bons". Na economia, afirmamos nós, os efeitos são nefastos e dramáticos como os dados do INE já revelam.

Estamos agora com um pais – Portugal – em que o medo e o pânico se alastrou, em que os portugueses têm medo de sair de casa e de regressar mesmo com a segurança possível ao trabalho e em que o teletrabalho, isolado e individualizado na maioria dos casos é trabalho desorganizado (segundo BHL, "o trabalho à distância é a solidão, o tédio, a mistura do publico e privado, a ideia que não há esfera privada fora do imperativo produtivo, é o produtivismo, é a espionagem eletrónica dos empregados pelos patrões"). A Administração Pública é um exemplo de improvisação e de incapacidade do governo para dar orientações claras, deixando tudo ao arbítrio das chefias. O teletrabalho tornou-se a panaceia e se criou a ilusão de que o país poderá funcionar e recuperar desta forma. Mas não funciona nem é verdade que recuperará –. os dados do INE acerca do PIB já provam isso

A REDUÇÃO DA RIQUEZA CRIADA NO PAÍS NO 2º TRIMESTRE DE 2020 É DE 16,5%
DESTRUIÇÃO CRESCENTE DO APARELHO PRODUTIVO NACIONAL E DO EMPREGO

Uma das ilusões que o governo e muitos jornalistas estão a difundir é que a crise é passageira (para o ministro Siza Vieira: "já atingimos o pico da crise") e que o país após a pandemia tem o seu aparelho produtivo intacto (diretor do ECO) e rapidamente recuperará (seria uma saída em V o que não é verdade, talvez em U ou W longos).

Ora tudo isso é uma ilusão, quando não mesmo uma mentira. Com o medo que se instalou na sociedade portuguesa (e o medo tem um efeito enorme na economia pois leva a quebra significativa da produção e do consumo), com a quebra generalizada de rendimentos dos trabalhadores (lay-off, horários reduzidos, e desemprego) e com o fecho de mercados externos, é evidente que a crise vai ser prolongada e vai causar uma enorme destruição de empresas (fecho) que não se aguentarão por falta de vendas (alguns chamam a isso "destruição criativa" pois só se aguentarão as empresas mais fortes) e também uma enorme destruição de emprego que levará muito tempo a recuperar e muitos trabalhadores serão excluídos definitivamente do mercado de trabalho e muitas empresas desaparecerão.

Não compreender isto é estar cego, não tomar medidas imediatas para reativar a economia é suicídio. O aumento do desemprego e o fecho definitivo de muitas empresas que já se verificou é apenas o sinal de uma crise social e económica que não sabemos quando terminará e cuja recuperação será mais difícil devido à desorganização que está a causar em toda a Administração Pública. Esta, um instrumento vital no combate à crise, antes da crise já enfrentava graves deficiências e problemas que a crise só multiplicou (são necessário objetivos claros, decisões rápidas, medidas implementadas urgentemente, investimento, nomeadamente público, elevado, tudo isto era necessário por parte do Estado para vencer a crise mas nada disto está a acontecer nem vai acontecer a breve trecho).

Os dados da evolução do desemprego real em Portugal do INE (quadro 1), que é apenas o sinal inicial da crise que vamos enfrentar, confirmam a gravidade da situação que se procura iludir.

Quadro 1.

Entre março e junho de 2020, em apenas três meses, o desemprego oficial aumentou em 4.100, mas o desemprego real subiu em 109.600, ou seja, em 26,7 vezes mais. E isto porque o INE não considera para cálculo do "desemprego oficial" todos os desempregados que no período em que fez o inquérito não procuraram emprego, apesar de serem trabalhadores no desemprego (os chamados "inativos disponíveis" que em junho de 2020 já somavam 305.000 quase tanto como desemprego oficial), que incluímos no cálculo do desemprego real, por serem verdadeiros desempregados. O desemprego real atingia, no fim de jun/2020, já 636.200 trabalhadores. O desemprego oficial do INE oculta à opinião pública o desemprego real. O número dos que estão a receber subsídio de desemprego é muito reduzido como mostra o gráfico 1 (Segurança Social).

Gráfico 1.

Em jun/2020, o número de trabalhadores desempregados já atingia 636.200, mas o número destes que recebiam subsidio de desemprego eram apenas 221.701. E entre maio-junho 2020 diminuiu em 3.652 apesar do número de desempregados ter aumentado nesse mês em 20.300. Somente 35 em cada 100 desempregados recebem subsídio de desemprego. E o subsídio médio de desemprego pago neste mês foi, segundo dados da Segurança Social apenas de 504,70€.

É a miséria que se está a alastrar no país perante a inação de um governo que nada faz de concreto para reativar a economia (só promete "bazucas" da UE que continuam sem disparar). Não é com lay-offs, com reduções de horários de trabalho e dos rendimentos dos trabalhadores, e moratórias que se consegue a recuperação. Isso só prolonga a agonia e torna o final muito mais doloroso e destrutivo.

O zoom dos imperadores

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 04/08/2020)

Nunca na história moderna houve empresas tão poderosas e nunca as empresas mais poderosas foram as de comunicações, o que significa que desenham o poder. Por isso, a aliança entre Zuckerberg, em particular, e Trump, seja ela episódica, é um dos factos mais influentes deste ano de 2020.


Quando Bezos (Amazon), Cook (Apple), Zuckerberg (Facebook) e Pichai (Google) se sentaram nos seus gabinetes para um zoom com a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, no fim da semana passada, nem era a primeira vez que o faziam nem seria a mais difícil das suas audições. Mas o surpreendente é que demonstraram algum nervosismo. Trata-se dos gestores de quatro das empresas mais poderosas do mundo e, se os deputados norte-americanos tinham perguntas a fazer-lhes sobre a forma como estabelecem monopólios nos seus sectores de atividade, estariam relativamente tranquilos quanto à inconsequência das questões: aquele Parlamento não concebe a ideia de impor restrições que dividam os monopólios, ao contrário do que aconteceu há um século com maior companhia petrolífera.

Assim, durante cinco horas, os quatro executivos desembaraçaram-se, mesmo que com alguma atrapalhação, das inquietações dos deputados, que ficaram na mesma. Desviaram a conversa para o “perigo chinês”, tão ao gosto de Trump, e para um discurso meloso acerca do “sonho americano”, que justificaria todas as tropelias na destruição de concorrentes e no condicionamento dos consumidores. Os “imperadores”, como lhe chamou a imprensa norte-americana, limitaram-se a exibir o seu poder, deixando as respostas no ar.

O que não conseguem evitar é que a questão do poder dos monopólios de busca de conteúdos, de comunicação, de publicidade e de plataformas sociais se torne mais notória no debate sobre o presente e futuro da democracia. Por isso radicalizam as suas posições. O que os imperadores estão a tentar construir é um castelo inexpugnável e que, estando acima dos estados nacionais e de autoridades internacionais, defina as suas próprias regras. Nunca na história moderna houve empresas tão poderosas e nunca as empresas mais poderosas foram as de comunicações, o que significa que desenham o poder. Por isso, a aliança entre Zuckerberg, em particular, e Trump, seja ela episódica, é um dos factos mais influentes deste ano de 2020. Mesmo que não seja suficiente para recuperar o terreno eleitoral já perdido pelo milionário, assim se conformarão os poderes mundiais deste século: o que decide são os mísseis, o comando financeiro e o controlo de massas pela internet.

Nesse contexto, a intervenção da Casa Branca contra a rede TikTok, da chinesa ByteDance, foi interpretada como uma vingança: adolescentes norte-americanos terão utilizado a rede para popularizar a ideia de um boicote artificioso ao comício de Trump em Tulsa em junho, pedindo centenas de milhares de bilhetes para deixarem a sala às moscas. O presidente quereria banir a rede, que é a que mais tem crescido nos EUA (já terá 100 milhões de utilizadores, um terço da população, sobretudo jovens) e teria inventado o estratagema de impor a sua compra por uma empresa norte-americana para a domesticar. Em todo o caso, parece que a justificação é exagerada, a direita republicana também já tem grande presença na rede (o hastag #conservative tem 1,9 mil milhões de visualizações). O resultado, apesar de tudo, foi que a Microsoft se ofereceu, teria assim um canal de entrada no mundo das redes sociais e fala-se de um preço de 50 mil milhões.

Ora, a perspetiva da venda desencadeou uma tempestade entre os trumpistas. O conselheiro para o comércio externo, Peter Navarro, recusa a operação e pede iniciativas para proibir a ação da Tiktok e do WeChat, da Tencent, outro gigante chinês. Ameaçou mesmo a Microsoft de ter de encerrar as suas operações da China, se fosse adiante com a compra. Num tuíte de sexta-feira, Trump apoiou-o e anunciou a proibição do negócio, mas voltou atrás esta semana depois de um telefonema de Satya Nadella, chefe da Microsoft. Se se concretizar nas próximas semanas, será a maior compra de empresa do ano, com um simbolismo evidente: quando todo o mundo mergulha em recessão, há um setor que cresce, o da comunicação.

A lógica parece ser a de que, se for um gigante tecnológico norte-americano a crescer, a soberania dos imperadores ficará reforçada e, no fim das contas, é isso mesmo que é determinante. Os presidentes passam pela Casa Branca mas quem fica são os poderes que tutelam a comunicação e o nosso dia a dia.