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domingo, 16 de agosto de 2020

Quem ganha com a explosão de Beirute?

por estatuadesal

(Por Pepe Escobar, )

Source: Quem ganha com a explosão de Beirute? – por PEPE ESCOBAR – A Viagem dos Argonautas

O prazer indiscreto da orgia

Posted: 15 Aug 2020 03:58 AM PDT

«A curiosa entrevista de Durão Barroso ao “Observador” na semana passada tinha um só alvo: lembrar a sua própria existência. Há de facto quem, porventura sentindo um íntimo chamamento para se eternizar como mandante, não se consiga libertar dessa feroz ansiedade de preparar o próximo passo na trabalhosa escadaria do poder. No caso de Barroso, a presidência da República em 2026 é um apetite motivador, pese embora a inconsistência da ambição, pois é mais provável que, uma vez estrangeirado e esquecido, esquecido continue, ou que, se for lembrado, o seja precisamente pela razão que torna implausível que a direita vá requisitar a sua candidatura.

No entanto, a entrevista tem um picante suplementar, a frase que veio a ser mais citada, que a União Europeia despejou uma orgia de dinheiro para cima dos coitados da pandemia. É uma revelação curiosa de um modo de ver e, mesmo ignorando outras conotações, algo desapontante. Lagarde, mais profissional, reconhecia que a dotação do plano de recuperação foi muito menos do que o necessário; o Governo alemão, mais enérgico, determinou um plano nacional que dobra o do total do Conselho Europeu. Não sei se, no caso, o termo orgia quer dizer uma inundação, ou se se referia à multiplicação de pecados que esta tornaria possível. Mas, de uma forma ou outra, nem é demais nem se sabe ainda como vai ser usada.

Em contrapartida, há mesmo uma orgia a decorrer e dela Barroso sabe o suficiente. No segundo trimestre do ano, os grandes bancos internacionais de investimento, ou seja, alguns dos maiores operadores financeiros, viveram uma rara prosperidade: os seus resultados foram os maiores desde a grande crise de 2008 e o dobro dos do mesmo trimestre de 2019. Para o Citibank, o Goldman Sachs e o JP Morgan, os lucros de negociação de títulos subiram 70%. A explicação é simples, as emissões de dívida provocadas pela evolução inicial das bolsas, pela recessão covid e mesmo pelo alto nível de endividamento das empresas antes da nova crise foram gigantescas, 5,4 biliões de dólares, um terço dos quais nos Estados Unidos (o que, no caso, equivale a 5% do total das obrigações empresariais no mundo). Essas emissões garantem um confortável lucro para os agentes financeiros, mais 56%. Ao mesmo tempo, estes três bancos, com o Wells Fargo, são obrigados a constituir elevadas provisões para os riscos de crédito (mais 30 mil milhões de dólares no segundo trimestre, depois de 20 no primeiro), e por isso o resultado final dependerá dos efeitos prolongados da recessão e de como estes monstros financeiros equilibram as suas carteiras de crédito e as suas operações especulativas. Para já, estão felizes: o Goldman Sachs, o banco presidido por Barroso, melhorou neste período os seus resultados em 41% e aumentou os seus salários e compensações em 35% (o lucro para os acionistas só subiu 2%, é a vida). Isto é que é uma orgia, não acha?»

Francisco Louçã

sábado, 15 de agosto de 2020

Passividade é cumplicidade

Posted: 14 Aug 2020 03:39 AM PDT

«Há um tema recorrente na discussão sobre a extrema-direita que se pode resumir na frase: “isso é o que eles querem”. Devemos indignar-nos perante cada provocação da extrema-direita? “Não lhes dês palco, isso é o que eles querem”. Devemos fazer de conta que não reparamos nas suas provocações, para não lhes dar palco? “isso é o que eles querem; se não reagires eles aproveitam para ganhar espaço”.

O que está de errado nesta premissa, seja qual for a conclusão, é que passamos a determinar as nossas atitudes e decisões por aquilo que “eles” querem — mesmo que seja sob o pretexto de fazer exatamente o contrário daquilo que “eles” querem. E assim perdemos rasto ao fundamental: o que é que nós queremos? Nós — os defensores da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos — qual é a nossa vontade? Que agenda política queremos que seja a dominante? Que narrativa deve ser a nossa, inadulterada e independente das pressões, caprichos e provocações de adversários e inimigos?

Esta pergunta, por ser a fundamental, deveria ser a de mais fácil resposta para nós. Tem também de ser a que mais imediatamente temos na ponta da língua, sob pena de confundirmos matérias puramente táticas, e como tal mutáveis, com aquilo que para nós tem de ser estratégico ou, mais ainda do que isso, cardinal e imutável.

Felizmente, a resposta é simples: o que os defensores da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos querem é a defesa intransigente da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos. É isso que nos une, ainda antes de sermos de esquerda ou de direita, de cima ou de baixo, de trás ou da frente. É nossa a defesa intransigente das instituições democráticas. É nossa a defesa intransigente dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição. É nossa a defesa intransigente dos direitos humanos, de que ninguém possa ser discriminado por cor de pele, orientação sexual, origem étnica ou opinião. É nossa a defesa intransigente de que a democracia e o Estado de direito se fazem de pessoas concretas, que merecem e têm de viver sem medo, sem insegurança, sem ameaças.

E essa defesa que é nossa e nos deve unir para lá de todas as diferenças, tem de se fazer de forma permanente, assumida e clara. A própria noção de que deveríamos calibrar esta defesa em função dos desejos ou das táticas de outros já é em si mesma uma cedência. Causa por isso espanto que três deputadas da República — Beatriz Gomes Dias, Joacine Katar Moreira e Mariana Mortágua — tenham esta semana sido ameaçadas de morte sem que isso tenha gerado um coro unânime e imediato de condenação, da esquerda à direita. Causa por isso espanto que cidadãos e associações — incluindo a SOS Racismo e o Conselho Português de Refugiados — tenham sido incluídos nessas mesmas ameaças, e coagidas e intimidadas por uma manifestação de mascarados empunhando tochas — sem que tenha havido uma mais vigorosa reação dos órgãos de soberania.

Eu compreendo o que quer dizer o Presidente da República quando apela à “sensatez” na reação, e quando diz ser “tão condenável uma manifestação racista com contornos criminais contra deputados como contra outro cidadão”. Mas não por acaso nos EUA uma ameaça de morte a um congressista é imediatamente crime federal e merece visita dos serviços secretos mesmo que o autor dela seja maluquinho — porque um ataque às pessoas que transitoriamente representam a democracia é um ataque à democracia. Pouco importa em quem votámos, que diferenças ou que afinidades temos, as três deputadas que foram ameaçadas — duas delas mulheres negras, já por muitas outras vezes atacadas com discurso de ódio — são deputadas de nós todos e devemos-lhes que possam exercer o seu mandato em segurança, e em sossego para as suas famílias, que foram também visadas pelas ameaças.

Compreendo também — e espero verdadeiramente que seja o caso — que haja averiguações a fazer discretamente pelas forças policiais e de investigação. Mas também não por acaso, na Alemanha a agência de segurança que investiga este tipo de crimes se chama de Serviço Federal de Defesa da Constituição. Porque é de defesa da Constituição que se trata, contra grupos que desejam subvertê-la. E porque sabemos, nomeadamente através de copiosas e profundas investigações jornalísticas, que há ligações entre a extrema-direita portuguesa e os neo-nazis alemães (que ainda recentemente mataram políticos), e que os elementos que destes grupúsculos fazem parte já tiveram no passado participação em crimes violentos de índole racial e política. As investigações, por discretas que tenham de ser, não podem prescindir de uma sinalização política clara, por parte do governo e dos partidos parlamentares, de que a Constituição é mesmo para defender sem tergiversações contra os cultores da intimidação e da violência política — todos eles, venham de onde vierem, ainda que nos últimos anos em Portugal seja unicamente da extrema-direita que estejamos a falar.

O que é inaceitável não pode ser aceitado. Isso deve ser dito sem nenhuma hesitação, e logo à cabeça. O que é que “eles” querem? A única coisa que quero saber é que não vão conseguir — e ponto final.»

Rui Tavares

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

O medo não pode ter tudo

Posted: 13 Aug 2020 03:50 AM PDT

«Somos humanos na exata medida em que nos relacionamos, estabelecemos relações sociais. Nunca tivemos dúvidas desta circunstância que nos diferencia dos restantes seres. Mas as coisas estão a mudar. O vírus, que nos apanhou de surpresa, mais do que a ameaça do risco de morte, parece roubar-nos a humanidade, uma longa história de partilha de afetos. Empurra-nos para a solidão, para um egoísmo securitário. Quantas vezes dou comigo, hesitante, sem saber o que fazer, sem ter a certeza se deva procurar aquela pessoa querida ou se ao fazê-lo estarei a causar um problema - a ternura a tornar-se ameaça.

Ficamos assim, por opção consciente ou apenas por constrangimento, longe de quem gostamos. Além do fim do abraço, um gesto tão antigo que a higiene sanitária proíbe, escondemos o rosto, recolhemos a casa, comodamente, para afugentar a peste. No fundo, julgamos que o outro prefere estar longe de nós. O medo, o medo vai ter tudo?

Em mais de 30 anos, este verão, o convívio que a minha família faz todos os verões numa serra do Minho ficou ensombrado. O receio de contágio, contagiar o outro ou ser contagiado, está a provocar o que nenhuma circunstância, mesmo as mais trágicas, alguma vez ousou alcançar. Desistir de estarmos juntos, de inventar jogos para os mais pequenos, de fazermos a desforra do jogo de damas que perdemos no ano anterior. De nos rirmos, de ouvir o discurso jocoso a fechar a festa e nomear os "mordomos" para a do ano seguinte. Senti que pertencia à família quando fui pela primeira vez a esta festa ao ar livre, quando levei comigo os meus pais, e com os meus filhos ao longo do ano preparamos a reunião fraterna. Se este ano não formos à serra da Cabreira com um belo farnel, é aos mais novos desta enorme família que estamos a roubar alguma coisa. Não deixemos que o vírus nos vença. O medo não pode ter tudo.»

Paula Ferreira

Babuínos como nós

por estatuadesal

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 08/08/2020)

O grande filósofo grego Epitecto, escravizado e agredido pelo seu proprietário romano, secretário de Nero, lembra-nos como na humanidade o desprezo e o domínio dos outros não precisou do racismo para existir. Ao longo da história, diferentes e muitas vezes convergentes são as formas de xenofobia, de opressão e exclusão do Outro. Apenas a superioridade na componente militar de cada cultura é o fator decisivo que separa vencedores e vencidos. No dealbar do século XVI, os astecas tinham água canalizada na sua capital, mas Cortés tinha armas de fogo. A lança mais comprida é também inseparável da moderna hegemonia planetária do Ocidente.

Mas isso não é racismo. Para perceber a diferença, importará revisitar os estudos do saudoso Manuel Viegas Guerreiro (1912-1997), sábio pluridisciplinar e conhecedor do mundo. Na sua leitura dos escritos de Pero Vaz de Caminha e de Cristóvão Colombo, o geógrafo português identifica um genuíno desejo de verter na escrita o espanto por povos tão diferentes e desconhecidos (a América foi uma espécie de encontro do 3.º grau), mas nunca abandonando o pressuposto da "unidade psíquica do homem". Em contrapartida, se percorrermos a literatura colonial europeia do século XIX - incluindo os nossos tardios africanistas, que ainda estavam a percorrer os caminhos entre Angola e Moçambique, quando as fronteiras dos impérios europeus em África se decidiam em Berlim -, o racismo está caudalosamente omnipresente. Na descrição dos africanos, os colonizadores europeus, inchados de arrogância, limitavam-se a despejar os seus preconceitos sobre povos que foram considerados sub-humanos. No final do século XV, D. João II fazia alianças e apadrinhava no batismo príncipes dos reinos da África Ocidental. No século XIX, pelo contrário, a aliança tóxica entre uma biologia rústica e um nacionalismo cada vez mais belicista criou o ódio ontológico, que tanto exterminaria milhões pelo trabalho forçado no Congo belga como aniquilaria a aristocracia intelectual judaica, num Holocausto consentido pelas massas que apoiaram o nazismo.

Poderemos e deveremos analisar os dispositivos constitucionais de Portugal, ou de qualquer país, para verificar se neles persiste a presença de elementos discriminatórios de base étnica. Não ouso sequer colocar a possibilidade de o brutal assassínio do artista Bruno Candé Marques ter outro desfecho que não seja o da condenação do homicida, após um regular e rigoroso processo de justiça. Faremos bem. Mas será sempre insuficiente. Dito de outro modo: um país pode não ser racista, à luz das suas normas constitucionais (como é claramente o caso de Portugal), mas manter em simultâneo uma maioria sociológica que partilha ou tolera crenças de teor racista.

Em 1953, a descoberta do ADN mostrou que o racismo "científico" é uma fábula. Mas ele alimenta-se do vírus do mal, que não pode ser extirpado. Apenas minimizado pela disciplina do respeito. Na verdade, nós, humanos, ainda não saímos do estaleiro. Partilhamos 94% do material genético com os babuínos. Sem ofensa para os babuínos.