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segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Não passarão

por estatuadesal

(José Soeiro, in Expresso Diário, 14/08/2020)

José Soeiro

1. As ameaças de que foram vítimas três deputadas e vários ativistas antirracistas são um crime. Como crime devem ser tratadas. A lei portuguesa já prevê os mecanismos legais para perseguir e reprimir os criminosos que recorrem à ameaça e à coação. Agora, cabe às instituições funcionarem exemplarmente: avaliar as ameaças feitas, investigar os seus autores, deter quem põe em perigo a segurança pública. Não pode haver nenhuma complacência.

2. Complacência foi o que houve, contudo, com a banalização do discurso de ódio e com a tentativa de normalizar a extrema-direita em Portugal. Não nos esqueçamos do episódio em que a TVI acolheu candidamente num programa da manhã Mário Machado, o nazi envolvido no assassinato ao pontapé de Alcindo Monteiro. Do palco dado pelo Correio da Manhã – e não só – a Ventura. Das tentativas recentes de um investigador de validar acriticamente as teses do Chega, usando o selo académico, mesmo que para isso tenha sido preciso atropelar os mais elementares protocolos do campo. Ou, mais recentemente, das declarações de Rui Rio, que admitiu uma eventual aliança com a extrema-direita, dependendo do modo como esta evoluísse. A indulgência política e mediática ajuda a criar o ambiente de à-vontade e o sentimento de impunidade com que atuam os racistas, mesmo que disfarçados, e o terrorismo da extrema-direita em geral.

3. O crime de intimidação contra estes dez combatentes pelos direitos humanos surge num contexto. Há uns meses, as inscrições racistas à porta de escolas, do SOS Racimo, do Centro Português de Refugiados ou no mural de José Carvalho. A ridícula manifestação de Ventura. A parada de um bando neonazi, de rosto tapado e tochas, frente à sede do SOS Racismo, divulgada pelos próprios nas redes sociais. O assassinato de Bruno Candé em plena luz do dia, crime que o alegado homicida terá feito acompanhar de um preto do caralho, vai para a tua terra!”, afinal de contas uma versão em vernáculo do que disse Ventura quando propôs que uma deputada portuguesa fosse “devolvida ao seu país de origem”. É tudo parte do ambiente de ódio que os criminosos, sejam os de gravata ou os de cabeça rapada, querem criar.

4. Para combater o ódio e os crimes racistas da extrema-direita já temos boas leis escritas. Falta-nos é trabalhar nas leis na prática, no combate à impunidade e à indiferença. Das instituições exige-se esse compromisso assumidamente antirracista. Às polícias cabe investigar e agir, extirpando do seu seio criminosos que perfilhem valores fascistas que violam a Constituição e demarcando-se de qualquer instrumentalização pela extrema-direita. Às políticas cabe romper sem hesitações as lógicas que reproduzem os padrões coloniais e ter, nos vários campos que vão do trabalho à educação, do desporto à cultura ou à habitação, medidas decididas para combater as desigualdades que têm no racismo estrutural um dos seus pilares.

5. A solidariedade para com todas as vítimas das ameaças e dos crimes da extrema-direita é um dever de todos. E convoca-nos para atitudes concretas que vão além das palavras.

Da Cabreira a Chico Buarque

Posted: 16 Aug 2020 03:23 AM PDT

«Há dias, a Paula Ferreira escrevia sobre uma reunião familiar na Cabreira, iria estilhaçar-se um ritual de 30 anos? Eu e a tribo acoitados lá, consultei o espelho - mesmo sem beijos e abraços, sendo o geronte anfitrião, que mensagem transmiti? Coragem? Inconsciência? Fadiga do estado de alerta?

Pontos de interrogação cravados num só pano de fundo - o medo. Emoção mais do que legítima; indispensável! Quantos de nós teriam sucumbido ao apetite de outros animais se, após diálogo com botões inexistentes, não tivessem buscado refúgio num ramo de árvore? Pode o instinto de sobrevivência ser confundido com cobardia? Não creio, o oposto do medo não é a coragem, mas a inconsciência. Coragem é vencer o medo que nos revira as entranhas e seca a boca.

Ou seja, a pandemia não o inventou, ele acompanha-nos há muito tempo. É verdade que o medo do contágio transformou alguns em "agorafóbicos", o Mundo transformou-se numa ameaça constante, resignamo-nos a viver entre quatro paredes a nostalgia do impossível - o risco zero.

Deixámos a Cabreira, deixemos a pandemia. Em termos gerais, o medo é um carcereiro feroz e ambicioso. Fecha-nos numa pequena cela que se vai transformando numa ala inteira da prisão, de um T1 raquítico voámos para um Alcatraz alucinado. De um medo específico passamos a outro, de largo espectro, que vai proibindo a socialização e a aventura que é a vida. Até não haver apenas distanciamento dos outros, mas de nós mesmos; é da nossa identidade que abrimos mão.

Em "A Política do Medo", Al Gore citava uma frase lapidar de Brandeis: "Os homens temiam as bruxas e queimavam as mulheres". (Para variar, os bruxos homens tinham menos a temer.) Constatação histórica de um "talento" do medo - transformar-se em ódio. O que vive em nós e é temido, projecta-se no Outro, como os filmes nas paredes da aldeia no genial "Cinema Paraíso".

Em tempos de populismo eufórico e instáveis movimentos de massas, é caso para perguntarmos o que pode acontecer. Nas ruas, veja-se as recentes ameaças a cidadãos e cidadãs anti-racistas, e nas urnas, utilizadas por quem as despreza para aumentar o seu poder. Não precisamos de recuar cem anos para saber como terminam esses processos autofágicos.

Para não se trair, a Democracia assegura os direitos de quem anseia fazer dela uma sinistra paródia. Cabe-nos impedir que medos legítimos, manipulados por demagogos, se tornem álibis para autos de fé em que as chamas devorem a (imperfeita) Cidade construída no pós-25 de Abril.

Sob pena de voltarem a fazer sentido os versos do Chico (Saltimbancos, 1976) em plena ditadura,

"Alô, liberdade

Levante, lava o rosto

Fica em pé

Como é, liberdade...»

Júlio Machado Vaz

domingo, 16 de agosto de 2020

Quem ganha com a explosão de Beirute?

por estatuadesal

(Por Pepe Escobar, )

Source: Quem ganha com a explosão de Beirute? – por PEPE ESCOBAR – A Viagem dos Argonautas

O prazer indiscreto da orgia

Posted: 15 Aug 2020 03:58 AM PDT

«A curiosa entrevista de Durão Barroso ao “Observador” na semana passada tinha um só alvo: lembrar a sua própria existência. Há de facto quem, porventura sentindo um íntimo chamamento para se eternizar como mandante, não se consiga libertar dessa feroz ansiedade de preparar o próximo passo na trabalhosa escadaria do poder. No caso de Barroso, a presidência da República em 2026 é um apetite motivador, pese embora a inconsistência da ambição, pois é mais provável que, uma vez estrangeirado e esquecido, esquecido continue, ou que, se for lembrado, o seja precisamente pela razão que torna implausível que a direita vá requisitar a sua candidatura.

No entanto, a entrevista tem um picante suplementar, a frase que veio a ser mais citada, que a União Europeia despejou uma orgia de dinheiro para cima dos coitados da pandemia. É uma revelação curiosa de um modo de ver e, mesmo ignorando outras conotações, algo desapontante. Lagarde, mais profissional, reconhecia que a dotação do plano de recuperação foi muito menos do que o necessário; o Governo alemão, mais enérgico, determinou um plano nacional que dobra o do total do Conselho Europeu. Não sei se, no caso, o termo orgia quer dizer uma inundação, ou se se referia à multiplicação de pecados que esta tornaria possível. Mas, de uma forma ou outra, nem é demais nem se sabe ainda como vai ser usada.

Em contrapartida, há mesmo uma orgia a decorrer e dela Barroso sabe o suficiente. No segundo trimestre do ano, os grandes bancos internacionais de investimento, ou seja, alguns dos maiores operadores financeiros, viveram uma rara prosperidade: os seus resultados foram os maiores desde a grande crise de 2008 e o dobro dos do mesmo trimestre de 2019. Para o Citibank, o Goldman Sachs e o JP Morgan, os lucros de negociação de títulos subiram 70%. A explicação é simples, as emissões de dívida provocadas pela evolução inicial das bolsas, pela recessão covid e mesmo pelo alto nível de endividamento das empresas antes da nova crise foram gigantescas, 5,4 biliões de dólares, um terço dos quais nos Estados Unidos (o que, no caso, equivale a 5% do total das obrigações empresariais no mundo). Essas emissões garantem um confortável lucro para os agentes financeiros, mais 56%. Ao mesmo tempo, estes três bancos, com o Wells Fargo, são obrigados a constituir elevadas provisões para os riscos de crédito (mais 30 mil milhões de dólares no segundo trimestre, depois de 20 no primeiro), e por isso o resultado final dependerá dos efeitos prolongados da recessão e de como estes monstros financeiros equilibram as suas carteiras de crédito e as suas operações especulativas. Para já, estão felizes: o Goldman Sachs, o banco presidido por Barroso, melhorou neste período os seus resultados em 41% e aumentou os seus salários e compensações em 35% (o lucro para os acionistas só subiu 2%, é a vida). Isto é que é uma orgia, não acha?»

Francisco Louçã

sábado, 15 de agosto de 2020

Passividade é cumplicidade

Posted: 14 Aug 2020 03:39 AM PDT

«Há um tema recorrente na discussão sobre a extrema-direita que se pode resumir na frase: “isso é o que eles querem”. Devemos indignar-nos perante cada provocação da extrema-direita? “Não lhes dês palco, isso é o que eles querem”. Devemos fazer de conta que não reparamos nas suas provocações, para não lhes dar palco? “isso é o que eles querem; se não reagires eles aproveitam para ganhar espaço”.

O que está de errado nesta premissa, seja qual for a conclusão, é que passamos a determinar as nossas atitudes e decisões por aquilo que “eles” querem — mesmo que seja sob o pretexto de fazer exatamente o contrário daquilo que “eles” querem. E assim perdemos rasto ao fundamental: o que é que nós queremos? Nós — os defensores da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos — qual é a nossa vontade? Que agenda política queremos que seja a dominante? Que narrativa deve ser a nossa, inadulterada e independente das pressões, caprichos e provocações de adversários e inimigos?

Esta pergunta, por ser a fundamental, deveria ser a de mais fácil resposta para nós. Tem também de ser a que mais imediatamente temos na ponta da língua, sob pena de confundirmos matérias puramente táticas, e como tal mutáveis, com aquilo que para nós tem de ser estratégico ou, mais ainda do que isso, cardinal e imutável.

Felizmente, a resposta é simples: o que os defensores da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos querem é a defesa intransigente da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos. É isso que nos une, ainda antes de sermos de esquerda ou de direita, de cima ou de baixo, de trás ou da frente. É nossa a defesa intransigente das instituições democráticas. É nossa a defesa intransigente dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição. É nossa a defesa intransigente dos direitos humanos, de que ninguém possa ser discriminado por cor de pele, orientação sexual, origem étnica ou opinião. É nossa a defesa intransigente de que a democracia e o Estado de direito se fazem de pessoas concretas, que merecem e têm de viver sem medo, sem insegurança, sem ameaças.

E essa defesa que é nossa e nos deve unir para lá de todas as diferenças, tem de se fazer de forma permanente, assumida e clara. A própria noção de que deveríamos calibrar esta defesa em função dos desejos ou das táticas de outros já é em si mesma uma cedência. Causa por isso espanto que três deputadas da República — Beatriz Gomes Dias, Joacine Katar Moreira e Mariana Mortágua — tenham esta semana sido ameaçadas de morte sem que isso tenha gerado um coro unânime e imediato de condenação, da esquerda à direita. Causa por isso espanto que cidadãos e associações — incluindo a SOS Racismo e o Conselho Português de Refugiados — tenham sido incluídos nessas mesmas ameaças, e coagidas e intimidadas por uma manifestação de mascarados empunhando tochas — sem que tenha havido uma mais vigorosa reação dos órgãos de soberania.

Eu compreendo o que quer dizer o Presidente da República quando apela à “sensatez” na reação, e quando diz ser “tão condenável uma manifestação racista com contornos criminais contra deputados como contra outro cidadão”. Mas não por acaso nos EUA uma ameaça de morte a um congressista é imediatamente crime federal e merece visita dos serviços secretos mesmo que o autor dela seja maluquinho — porque um ataque às pessoas que transitoriamente representam a democracia é um ataque à democracia. Pouco importa em quem votámos, que diferenças ou que afinidades temos, as três deputadas que foram ameaçadas — duas delas mulheres negras, já por muitas outras vezes atacadas com discurso de ódio — são deputadas de nós todos e devemos-lhes que possam exercer o seu mandato em segurança, e em sossego para as suas famílias, que foram também visadas pelas ameaças.

Compreendo também — e espero verdadeiramente que seja o caso — que haja averiguações a fazer discretamente pelas forças policiais e de investigação. Mas também não por acaso, na Alemanha a agência de segurança que investiga este tipo de crimes se chama de Serviço Federal de Defesa da Constituição. Porque é de defesa da Constituição que se trata, contra grupos que desejam subvertê-la. E porque sabemos, nomeadamente através de copiosas e profundas investigações jornalísticas, que há ligações entre a extrema-direita portuguesa e os neo-nazis alemães (que ainda recentemente mataram políticos), e que os elementos que destes grupúsculos fazem parte já tiveram no passado participação em crimes violentos de índole racial e política. As investigações, por discretas que tenham de ser, não podem prescindir de uma sinalização política clara, por parte do governo e dos partidos parlamentares, de que a Constituição é mesmo para defender sem tergiversações contra os cultores da intimidação e da violência política — todos eles, venham de onde vierem, ainda que nos últimos anos em Portugal seja unicamente da extrema-direita que estejamos a falar.

O que é inaceitável não pode ser aceitado. Isso deve ser dito sem nenhuma hesitação, e logo à cabeça. O que é que “eles” querem? A única coisa que quero saber é que não vão conseguir — e ponto final.»

Rui Tavares