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terça-feira, 18 de agosto de 2020

O lar de Reguengos e o preço de encerrar um país pobre

Posted: 17 Aug 2020 03:48 AM PDT

«Não é apenas em Portugal que os lares são os espaços mais sensíveis para esta pandemia. Cá, acrescem problemas como a pouca qualificação dos funcionários e os lares ilegais. Será a justiça a avaliar o que a lei pode punir, caso se confirme a macabra conclusão do relatório da Ordem dos Médicos que a ministra decidiu que não valia a pena ler antes de dar uma entrevista em que este seria, previsivelmente, um dos temas principais. Não é todos os dias que se descobre que pessoas institucionalizadas morreram desidratadas. Por isso, é justo que as falhas na fiscalização e a responsabilidade política da ministra em relação ao que aconteceu no lar de Reguengos dominem o debate público. Sobretudo depois da entrevista catastrófica que deu ao Expresso.

Mas é bom recordar que a responsabilidade primeira é da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, proprietária do lar e dirigida pelo presidente da Câmara. É injusto sublinhar o trabalho extraordinário do sector social quando corre bem e ficar pelas responsabilidades de fiscalização do Estado quando corre mal. Quando se trata de transferir funções sociais do Estado o sector social está acima de qualquer suspeita, mas quando há ganhos políticos a tirar de uma tragédia lá se descobre que também nele reina a promiscuidade com interesses partidários (e económicos, e religiosos). Porque este é um problema transversal ao país, não apenas no Estado.

Sei que todos preferiam ficar por aqui. Mas há uma culpa coletiva que pesa sobre os nossos ombros. Alimentamos um equívoco há meses: o de que instigar o medo nas pessoas levaria a que se preocupassem mais com os mais vulneráveis, a começar pelos velhos. Nunca foi assim nas pandemias. Para além de revelarem as fragilidades que já existem na sociedade, elas tendem a exibir os instintos mais primários e egoístas. E é por isso que os velhos de Reguengos foram abandonados. Porque o medo foi instigado até à crueldade. É verdade que, pelo menos ali, os problemas nem sequer começaram com o covid. Ele só agudizou o abandono. Ali e um pouco por todo o lado. O isolamento em relação às famílias e à sociedade nunca poderia ser bom para os mais velhos. Era só mais fácil, no meio do pânico.

Agora, que começa a vir à superfície o preço encerrar um país pobre em casa e nos lares, serão os que exigiram que isso se fizesse depressa, em força e sem ponderações os mais lestos a procurar os culpados pelos custos do confinamento. As doses cavalares de medo, que a absurda repetição quase diária em telejornais do número de mortos e infetados alimentou, tem forte responsabilidade no abandono destes velhos. E nos muitos que morreram por não procurarem ou não encontrarem apoio médico noutras doenças. E nas crianças roubadas do seu crescimento saudável. E no suicídio económico do país.

Estou nos antípodas da irresponsabilidade de um Bolsonaro ou de um Trump. Há uma pandemia e temos de ter cautelas. Mas a morte pela cura está mesmo a consumar-se. E estas mortes terão de pesar na consciência de quem, mesmo depois delas, não tenha a coragem de correr alguns riscos no regresso ao mínimos de normalidade. Comecemos por nos redimir abrindo todas as escolas, já em setembro, apoiados em estudos que nos dizem que é isso mesmo que temos de fazer.

Quanto aos lares, espero que este macabro episódio (que, como escreveu o Henrique Raposo, mobilizou menos indignação do que a tragédia de Santo Tirso) tenha pelo menos servido para deixar claro que o isolamento dos velhos nos lares é um crime. Morrer velho por causa de uma pandemia é, desde que às vitimas tenha sido dado o direito de escolha lúcida e informada, uma tragédia. Mas faz parte das tragédias humanas. Morrer abandonado e desidratado é uma inaceitável crueldade. Todos acabaremos por morrer, mas as mortes não são todas iguais. Pelo menos no que dizem da sociedade em vivemos.»

Daniel Oliveira

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

“De uma vez por todas e sem demoras”. Carlos César apela à esquerda que diga se quer acordo com PS”


“De uma vez por todas e sem demoras”. Carlos César apela à esquerda que diga se quer acordo com PS

por estatuadesal

(Liliana Valente, in Expresso Diário, 17/08/2020)

O presidente do PS lança pressão aos antigos parceiros da "geringonça". Ou decidem agora ou "preferem assobiar para o ar à espera de percalços"?


A colagem fotográfica é quase nostálgica. Nela aparecem os quatro líderes, Heloísa Apolónia (PEV), Catarina Martins (BE), Jerónimo de Sousa (PCP) e António Costa (PS) e num canto, Carlos César, a olhar para a assinatura das posições conjuntas que há cinco anos selavam o compromisso de um apoio que duraria os quatro anos da legislatura passada. O presidente do PS pôs esta colagem (os acordos foram assinados separadamente) no seu Facebook, pensada ao pormenor para o recado que tinha para dar: É hora de "PS, BE, PCP e PEV assumirem essa necessidade e definirem-se de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos. O país precisa dessa tranquilidade e de uma governação estável e responsável, com o apoio activo da esquerda portuguesa", escreveu Carlos César.O tempo em que o faz não é de somenos. Carlos César veio a terreiro na semana em que Governo e partidos à sua esquerda se preparam para se sentarem à mesa das negociações: esquerda com olhos postos no Orçamento do Estado para 2021; Governo com a intenção anunciada de um acordo para a legislatura, uma "geringonça" 2.0, com o PAN como plus e a pandemia como cola.

António Costa tem repetido que quer governar com os antigos parceiros e desde o debate do Estado da Nação, a meio de Julho, que fez saber que quer levar esta intenção de novo para o plano dos acordos, com um entendimento duradouro, que lhe dê garantias na legislatura. Aos apelos de Costa, junta-se o pragmatismo de César que diz à esquerda que "é tempo" de dizerem se "são ou não capazes de reunir esses consensos num enunciado programático com o PS, suficiente mas claro, para a legislatura...ou se preferem assobiar para o ar à espera dos percalços".

A expressão "enunciado programático" leva o tal entendimento a um conjunto de princípios mais do que medidas. E a expressão "suficiente, mas claro" remete para um acordo pelos mínimos, ou seja, um acordo de princípios em que estejam de acordo, não entrando nos pormenores em que se dividem. No seio do Governo há quem recorde que foi exactamente o que aconteceu nas posições conjuntas de 2016, em que os partidos deixaram de fora os temas sobre os quais não se entendem, as linhas vermelhas.

Contudo, em cima da mesa podem estar alguns dossiês em que não há grande confluência de pontos de vista, como é o caso da reforma da legislação laboral. BE, PCP e PAN querem aprofundar a legislação laboral no seu todo, o Governo só em pequenas doses, no que diz respeito ao teletrabalho e às novas formas de trabalho (como as plataformas colaborativas). O Bloco de Esquerda fez das alterações ao Código do Trabalho o seu cavalo de batalha nas negociações depois das eleições legislativas e não quer deixá-las cair. Aliás, o primeiro-ministro e Catarina Martins trocaram acusações durante meses sobre a "culpa" de não terem chegado a bom porto: Catarina Martins dizia que o Governo não quis negociar as alterações ao Código do Trabalho e Costa sempre disse que não aceitava as pré-condições para o diálogo.

No post que escreveu no Facebook, Carlos César fez arqueologia política para explicar o porquê de não haver entendimento desde o início, deixando de fora essa habitual troca de galhardetes com o Bloco de Esquerda e remetendo a responsabilidade da falta de acordo para o PCP. "A recusa do PCP, logo após as últimas eleições, em subscrever um acordo para esta Legislatura, tal como havia sido conseguido na anterior, prejudicou a coerência e a utilidade de um acordo com um único parceiro - o BE -, do qual resultaria, certamente, uma tendência de exclusão do PCP e em pouco reduziria a ameaça da instabilidade".

Mas o mundo mudou e agora a pandemia, acrescenta César, tornou imperativa a necessidade de mais estabilidade: "Entretanto, a crise pandémica do Covid 19, trouxe, ou assim devia ter acontecido, outra consciência sobre a absoluta necessidade de uma confluência formal e segura, que assegure um governo com uma orientação estável e um programa de recuperação com o fôlego e o sentido de médio prazo indispensáveis", escreveu.

De forma subtil, mas não deixando de referir, César deixa de fora o PSD. Nas últimas semanas, depois de Rui Rio ter admitido que não pode colocar de fora de cogitação no futuro conversas com o Chega, se este se moderar, o assunto tem estado na ordem do dia e não se tem ouvido muitos socialistas sobre o tema. Mas num dia em que sai uma sondagem que dá um aumento das intenções de voto em André Ventura, César diz do PSD: "O PSD está a ser claro quando se chega ao resto da direita". Frase que escreveu para concluir que não há outro caminho, que não seja pela esquerda.

Guia para vítimas sensatas

por estatuadesal

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 15/08/2020)

Parece que se descobriu que afinal temos um problema de racismo. Mas quem ainda ontem o negava agora diz que problema está tanto nos racistas como em quem os combate - é tudo gente nervosa. É que o racismo combate-se com muita calma: primeiro nega-se, depois nega-se e no fim culpam-se as vítimas.


Vou começar por um reductiozinho ad hitlerum, para poderem dizer que sou uma exagerada e já perdi a discussão antes de sequer começar.

É a história de seis raparigas que tinham entre 18 e 23 anos quando se deu a libertação dos campos de extermínio nazis, onde elas estavam e aos quais elas, ao contrário da maioria, sobreviveram. Essa sobrevida é contada em Depois de Auschwitz, um documentário de 2017 que narra o percurso de vida dessas seis judias, duas delas irmãs, e que passou na RTP3 na segunda-feira, 10 de agosto.

Nele ficamos a saber como a libertação esteve longe de ser o fim do martírio. As duas irmãs polacas, por exemplo, levaram um mês a conseguir voltar, pelos seus próprios meios, à cidade natal, para descobrirem que não só ninguém da família sobrevivera como a sua casa estava ocupada por polacos, que não tencionavam sair. A receção foi ódio e desprezo: "Porque voltaram? Estão a voltar mais do que os que partiram. Que vêm para aqui fazer? Vão-se embora."

Ainda assim, tiveram sorte: muitos dos que saíram dos campos de concentração, certifica-nos a voz off, acabaram por ser mortos ao tentar voltar a casa. Uma das irmãs confirma: dois judeus foram acusados de estar a negociar no mercado negro, amarrados a uma carroça e arrastados até à morte. O Reich fora derrotado mas o faroeste antissemita continuava muito bem de saúde, pelo que as duas perceberam que não bastava terem-lhes matado a família e roubado a casa: não tinham país sequer. E, como muitos outros nas mesmas circunstâncias, não viram outro remédio senão rumar à Alemanha ocupada, onde ao menos havia campos para desalojados.

É sempre tão fácil mantermos a calma e a fleuma, até o sentido de humor, em relação àquilo que não nos diz respeito. Raiva porquê, não é? Se podemos resolver as coisas com sensatez. Por exemplo o racismo - por que motivo havemos de nos irritar com o racismo?

"Estava muito zangada", diz uma delas. "Quando cheguei lá odiava tudo. Odiava o malvado chão, cada pessoa. Um dia estava num elétrico e vi um soldado americano a beijar uma alemã. Envergonho-me de o dizer mas empurrei-a para fora do veículo. Não conseguia controlar-me. Acho que se tivesse uma arma teria matado muita gente. Não podia perdoar o que nos tinham feito."

Acabaram por, como todas as seis sobreviventes, fugir para os EUA. Lá havia outros judeus, judeus que não tinham passado pelo mesmo. Mas precisamente por isso ninguém queria ouvir o que lhes tinha acontecido. "Cada vez que começava a falar do campo de concentração, diziam-me "Agora estás na América, isso ficou para trás, não interessa"", conta uma delas. E quando uma das irmãs polacas confessou a um primo americano que após a libertação tinha feito parte de um grupo que assaltava casas na Alemanha, a resposta dele foi: "Isso não está correto, roubar." Isso, explica ela com um sorriso, calou-a. "Percebi que não podia falar, porque seria julgada pelos padrões dele. Ele não sabia que existiam outros padrões."

Imaginem isto, se conseguirem: terem perdido toda a vossa família, a vossa vida, na mais completa barbárie; terem sobrevivido por um triz sofrendo e assistindo a coisas inomináveis e dizerem-vos que não podiam ter raiva, que não podiam ter vontade de vingança, que não podiam sequer assaltar as casas vazias dos vossos inimigos para sobreviver. Conseguem imaginar? Se calhar conseguem - basta não terem imaginação suficiente para tentarem colocar-se no lugar destas mulheres. Basta acharem que a raiva e o ressentimento são sempre coisas más, que nunca se justificam, mesmo perante o maior mal.

Isto leva-me a outra parábola, contada em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski: a da criança serva que o senhor feudal russo castiga à frente da mãe. A criança magoou sem querer um dos mastins do senhor; furioso, este encerra-a no canil toda a noite e a seguir larga os cães contra ela, obrigando a mãe a assistir à sua morte atroz. A conclusão do narrador é de que a mãe não tinha, mesmo que quisesse, o direito de perdoar-lhe; não podia perdoar pelo filho despedaçado pelos cães - essa dor, esse pavor, não era dela.

Lembro-me desta história sempre que vejo pessoas a advogar calma e perdão em relação a agravos e dores que não suas - é sempre tão fácil mantermos a calma e o fleuma, até o sentido de humor, em relação àquilo que não nos diz respeito. Raiva porquê, não é? Se podemos resolver as coisas com sensatez. Por exemplo o racismo - por que motivo havemos de nos irritar com o racismo? Foi racismo, claro, que ergueu os campos de concentração dos quais as seis raparigas do início do texto conseguiram escapar; foi racismo que lhes ocupou as casas; racismo que lhes disse, quando vinham do horror absoluto, "vão-se embora, não vos queremos aqui". Foi o racismo de muita gente, de países inteiros, de povos inteiros, que as vitimizou - mas, hey, elas não podiam ter raiva, não podiam sequer falar disso com fúria. Não puderam falar disso durante anos, décadas - era um assunto chato, desagradável, pesado. Melhor calar.

Com sorte, porém, talvez ninguém tenha dito às jovens judias "vocês com essa conversa sobre o antissemitismo é que criaram o nazismo". Talvez com sorte ninguém lhes tenha chamado histéricas ou odientas. E agora, dizem vocês que me leem, se chegaram aqui: mas estás a comparar o que aconteceu a essas raparigas com o que se passa com os negros e ciganos em Portugal? Reparem, estou. Estou realmente a comparar vítimas de racismo com vítimas de racismo, e racistas com racistas. Estou a comparar negacionistas com negacionistas e gente bem-intencionada e com muitos princípios que sofre de absoluta falta de empatia e de imaginação, como o primo da miúda polaca, com tantos de vocês, que não fazem a menor ideia do que é ter medo de polícias só porque se é negro ou cigano, que não sabem o que é ser insultado quotidianamente só porque se é negro ou cigano, ouvir todos os dias na vossa terra "volta para a tua terra". Que não sabem o que é ter a mãe ou o pai a dizer "não ligues quando te chamarem preto, nem respondas, continua como se nada fosse".

Como se nada fosse: é isso que vocês advogam, baixar a cabeça, calar a boca, engolir a humilhação, assumir o medo "para não ser pior"? Era isso que fariam? Ou nunca pensaram bem nisso sequer, porque não vos acontece, não vos aconteceu nem nunca acontecerá e, importante, não vai acontecer aos vossos filhos?

Reparem: eu, branca, também não sei o que é. Mas posso tentar perceber. Posso por exemplo ouvir crianças e adolescentes contarem a sua experiência de racismo ainda antes de saberem dar-lhe um nome, ainda antes de sequer se verem como diferentes da norma - porque é essa experiência que lhes confere uma identidade outra. Não sei dessa violência, não a senti nunca. Mas sei que não tenho, como a mãe de Dostoievski, o direito de perdoar pelos outros, muito menos exigir-lhes que perdoem ou que tenham calma, que não se irritem, que sejam "sensatos".

Agora, a outra questão, que é a mesma: se o discurso antirracista, se a denúncia do racismo, se a voz e o protagonismo crescente dos excluídos e discriminados acicata os racistas e os pode levar a uma escalada de violência? Sem dúvida. As mães e os pais negros sabem isso, por isso aconselham os filhos a calar. Se a maior representação e libertação dos grupos oprimidos tem uma relação direta com a ascensão da extrema-direita? Tem. Tal como é sabido que no contexto de violência doméstica o momento de maior perigo é aquele em que a vítima se tenta libertar, é provável que quando as vítimas de racismo se revoltam e começam a combatê-lo e a exigir direitos quem não quer admitir-lhos se sinta na necessidade de assumir mais claramente a sua posição. A violência esteve sempre lá - porque racismo é violência - mas fica mais visível para quem andava distraído.

Se compreendemos que os pais negros por medo do que possa suceder aos filhos negros lhes digam que oiçam e engulam os agravos e andem para a frente, como país não temos esse direito. Não temos o direito de pedir às vítimas que baixem a cabeça, e muito menos de as comparar, de as equivaler aos que as vitimizam e ameaçam.

Mas se sabemos tudo isto, e compreendemos que os pais negros por medo do que possa suceder aos filhos negros lhes digam que oiçam e engulam os agravos e andem para a frente, como país não temos esse direito. Não têm esse direito os representantes eleitos, não tem esse direito o Presidente da República, não tem esse direito o governo nem o líder da oposição. Não têm o direito de pedir às vítimas que baixem a cabeça, e muito menos de as comparar, de as equivaler aos que as vitimizam e ameaçam. Não chegava já termos chegado aqui graças à insultuosa persistência no negacionismo; tínhamos ainda de ouvir prescrições de sensatez e calma que não são mais do que culpabilização das vítimas. Tínhamos de como o primo da jovem polaca dar lições de boa educação à sobrevivente. Talvez dizer: se para sobreviveres tens de usar a tua raiva, então talvez seja melhor não sobreviveres. Soçobra sensatamente ao ódio que te dirigem - vai para a tua terra, vá.

Não passarão

por estatuadesal

(José Soeiro, in Expresso Diário, 14/08/2020)

José Soeiro

1. As ameaças de que foram vítimas três deputadas e vários ativistas antirracistas são um crime. Como crime devem ser tratadas. A lei portuguesa já prevê os mecanismos legais para perseguir e reprimir os criminosos que recorrem à ameaça e à coação. Agora, cabe às instituições funcionarem exemplarmente: avaliar as ameaças feitas, investigar os seus autores, deter quem põe em perigo a segurança pública. Não pode haver nenhuma complacência.

2. Complacência foi o que houve, contudo, com a banalização do discurso de ódio e com a tentativa de normalizar a extrema-direita em Portugal. Não nos esqueçamos do episódio em que a TVI acolheu candidamente num programa da manhã Mário Machado, o nazi envolvido no assassinato ao pontapé de Alcindo Monteiro. Do palco dado pelo Correio da Manhã – e não só – a Ventura. Das tentativas recentes de um investigador de validar acriticamente as teses do Chega, usando o selo académico, mesmo que para isso tenha sido preciso atropelar os mais elementares protocolos do campo. Ou, mais recentemente, das declarações de Rui Rio, que admitiu uma eventual aliança com a extrema-direita, dependendo do modo como esta evoluísse. A indulgência política e mediática ajuda a criar o ambiente de à-vontade e o sentimento de impunidade com que atuam os racistas, mesmo que disfarçados, e o terrorismo da extrema-direita em geral.

3. O crime de intimidação contra estes dez combatentes pelos direitos humanos surge num contexto. Há uns meses, as inscrições racistas à porta de escolas, do SOS Racimo, do Centro Português de Refugiados ou no mural de José Carvalho. A ridícula manifestação de Ventura. A parada de um bando neonazi, de rosto tapado e tochas, frente à sede do SOS Racismo, divulgada pelos próprios nas redes sociais. O assassinato de Bruno Candé em plena luz do dia, crime que o alegado homicida terá feito acompanhar de um preto do caralho, vai para a tua terra!”, afinal de contas uma versão em vernáculo do que disse Ventura quando propôs que uma deputada portuguesa fosse “devolvida ao seu país de origem”. É tudo parte do ambiente de ódio que os criminosos, sejam os de gravata ou os de cabeça rapada, querem criar.

4. Para combater o ódio e os crimes racistas da extrema-direita já temos boas leis escritas. Falta-nos é trabalhar nas leis na prática, no combate à impunidade e à indiferença. Das instituições exige-se esse compromisso assumidamente antirracista. Às polícias cabe investigar e agir, extirpando do seu seio criminosos que perfilhem valores fascistas que violam a Constituição e demarcando-se de qualquer instrumentalização pela extrema-direita. Às políticas cabe romper sem hesitações as lógicas que reproduzem os padrões coloniais e ter, nos vários campos que vão do trabalho à educação, do desporto à cultura ou à habitação, medidas decididas para combater as desigualdades que têm no racismo estrutural um dos seus pilares.

5. A solidariedade para com todas as vítimas das ameaças e dos crimes da extrema-direita é um dever de todos. E convoca-nos para atitudes concretas que vão além das palavras.

Da Cabreira a Chico Buarque

Posted: 16 Aug 2020 03:23 AM PDT

«Há dias, a Paula Ferreira escrevia sobre uma reunião familiar na Cabreira, iria estilhaçar-se um ritual de 30 anos? Eu e a tribo acoitados lá, consultei o espelho - mesmo sem beijos e abraços, sendo o geronte anfitrião, que mensagem transmiti? Coragem? Inconsciência? Fadiga do estado de alerta?

Pontos de interrogação cravados num só pano de fundo - o medo. Emoção mais do que legítima; indispensável! Quantos de nós teriam sucumbido ao apetite de outros animais se, após diálogo com botões inexistentes, não tivessem buscado refúgio num ramo de árvore? Pode o instinto de sobrevivência ser confundido com cobardia? Não creio, o oposto do medo não é a coragem, mas a inconsciência. Coragem é vencer o medo que nos revira as entranhas e seca a boca.

Ou seja, a pandemia não o inventou, ele acompanha-nos há muito tempo. É verdade que o medo do contágio transformou alguns em "agorafóbicos", o Mundo transformou-se numa ameaça constante, resignamo-nos a viver entre quatro paredes a nostalgia do impossível - o risco zero.

Deixámos a Cabreira, deixemos a pandemia. Em termos gerais, o medo é um carcereiro feroz e ambicioso. Fecha-nos numa pequena cela que se vai transformando numa ala inteira da prisão, de um T1 raquítico voámos para um Alcatraz alucinado. De um medo específico passamos a outro, de largo espectro, que vai proibindo a socialização e a aventura que é a vida. Até não haver apenas distanciamento dos outros, mas de nós mesmos; é da nossa identidade que abrimos mão.

Em "A Política do Medo", Al Gore citava uma frase lapidar de Brandeis: "Os homens temiam as bruxas e queimavam as mulheres". (Para variar, os bruxos homens tinham menos a temer.) Constatação histórica de um "talento" do medo - transformar-se em ódio. O que vive em nós e é temido, projecta-se no Outro, como os filmes nas paredes da aldeia no genial "Cinema Paraíso".

Em tempos de populismo eufórico e instáveis movimentos de massas, é caso para perguntarmos o que pode acontecer. Nas ruas, veja-se as recentes ameaças a cidadãos e cidadãs anti-racistas, e nas urnas, utilizadas por quem as despreza para aumentar o seu poder. Não precisamos de recuar cem anos para saber como terminam esses processos autofágicos.

Para não se trair, a Democracia assegura os direitos de quem anseia fazer dela uma sinistra paródia. Cabe-nos impedir que medos legítimos, manipulados por demagogos, se tornem álibis para autos de fé em que as chamas devorem a (imperfeita) Cidade construída no pós-25 de Abril.

Sob pena de voltarem a fazer sentido os versos do Chico (Saltimbancos, 1976) em plena ditadura,

"Alô, liberdade

Levante, lava o rosto

Fica em pé

Como é, liberdade...»

Júlio Machado Vaz