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sábado, 5 de setembro de 2020

Cercado

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 05/09/2020)

Daniel Oliveira

Vi milhares de peregrinos nas imagens de Fátima, a 13 de agosto. Umas vezes distantes, outras menos. Em geral de máscara, outras com ela no queixo. Mas confio que todas as cautelas foram tomadas. E aplaudo a tentativa de regressar à normalidade. Se temos de aprender a conviver com o vírus, deveremos muito aos mais organizados que avançarem primeiro, com regras. Pela falta de rigor, desproporção e ausência de contraditório, aquilo que a comunicação social tem feito ao PCP nestas semanas tem um nome: campanha. Portimão prepara-se para receber o MotoGP e a Fórmula 1, onde se esperam dezenas de milhares de pessoas. Bebi copos em Famalicão, à uma da manhã, em bares a funcionar ao ar livre com autorização camarária. Apinham-se pessoas na Feira do Livro e em inúmeros festivais. E uma das grandes preocupações é que a realização da Festa do “Avante!” contribua para o fim do corredor aéreo com o Reino Unido, impedindo que o país receba festas bem regadas de turistas ingleses. Até tivemos partidos que organizam jantares semanais incumprindo as regras aos olhos de todos a exigirem conhecer o parecer da DGS. Há uma pandemia de hipocrisia nacional.

Há uma pandemia de hipocrisia nacional. Mas o PCP tinha o dever de conhecer o sentimento das pessoas

A suposta proibição dos festivais de verão, legalmente evitável através de uma coordenação com a DGS e que uma busca nas agendas culturais desmente, teve como objetivo ajudar os seus promotores, desobrigando-os de devolver imediatamente o dinheiro da bilheteira. Mas com a queda da procura e a vinda de muitos dos músicos irremediavelmente comprometida (pelo encerramento dos corredores aéreos e a alteração de agendas) a realização dos maiores festivais era inviável. A Festa do “Avante!” não depende de músicos estrangeiros, as pessoas não vão lá por causa do cartaz, e a militância, não oferecendo enchente, garante os mínimos.

Os festivais de verão nunca abririam as portas nas mesmas condições que a Festa do “Avante!” o fará. Porque nunca poderiam garantir a sua rendibilidade. É por isso, e não por qualquer tratamento diferenciado, que a Festa do “Avante!” se realiza e os grandes festivais não.

Muito menos o fariam com as regras que a DGS aconselhou ao PCP, um cruzamento das medidas para as praias, concertos e as mais apertadas limitações à vida noturna. Propõem-se até soluções contraproducentes, como a proibição de álcool depois das 20h e a não realização de eventos simultâneos, pensadas para evitar ajuntamentos onde eles já serão inevitáveis. Mas nem isto acalmou a excitação política.

Sendo o PCP um partido, o critério para a sua conduta é sempre político. Está há meses a falar da festa, enquanto os seus concorrentes debatem a resposta à crise e os problemas dos trabalhadores. E, neste fim de semana, até podem fazer tudo bem que bastará um pequeno deslize registado por um telemóvel e serão mais umas semanas de novela.

O cerco em que se deixou enfiar era previsível. O PCP tinha o dever de conhecer o sentimento das pessoas e como o medo é manipulável. Sujeitar-se a este assédio sem um propósito político — é uma festa, bolas! — é sinal de perda de contacto com o país, que era a sua principal qualidade no passado. Isso não lhe tira razão. Tira-lhe força. E um partido sem força pode meter a razão no bolso.

Educação para a cidadania incomoda

Posted: 04 Sep 2020 03:26 AM PDT

«Num país em que há elevado nível de abstenção nos actos eleitorais e baixo nível de participação cívica parecia ser natural que a inclusão da disciplina de Educação para a Cidadania nas nossas escolas fosse motivo de satisfação generalizada. No entanto, surgiu um manifesto que a hostiliza. Nele se exige que seja respeitada a objecção de consciência, tornando a disciplina não obrigatória. Alguns signatários são académicos e até ex-ministros da educação. Um destes, que é uma, sendo também comentadora política apressou-se a explicar-nos o motivo da indignação que está na base do documento: “O facto de ser [disciplina] obrigatória significa que toda a gente tem que pensar da mesma maneira; mas nestas matérias não pode haver unanimismo, como na História ou na Matemática. Se não há unanimismo, ele [o conteúdo lectivo] não pode ser imposto” (M. Ferreira Leite, TVI 24, 2/9/2020). Conclui-se, então, que na opinião da signatária e comentadora, se as disciplinas de História e Matemática não tratassem de matérias “onde há unanimismo” também deviam ser opcionais.

O problema é que contrariamente ao que a ex-ministra da Educação supõe, não se conhece nenhum espaço disciplinar em que reine o unanimismo ou haja rígido corpo de verdades absolutas prontas a serem comunicadas aos alunos. Assim sendo, à luz da argumentação apresentada, nenhuma disciplina devia ser obrigatória. Complicado.

Talvez seja bom parar e reflectir sobre o ponto a que se chegou. Não teremos passado os limites da decência intelectual? Não é já intolerável este abrandamento da chama da elevação mental?

Curioso que os autores do manifesto não sejam conhecidos por se terem manifestado com igual zelo contra a obrigatoriedade da disciplina de Religião e Moral no curriculum da escola pública do ancien régime, muito embora boa parte deles tenha vivido essa realidade. Também não são pessoas em quem se reconheça ter havido até hoje grande preocupação em criticar a influência ideológica e o controlo exercidos pela Igreja Católica sobre a escola ao longo de longuíssimo tempo. Ao que parece, aos seus olhos, esse influir ideológico monopolista era saudável. Não ignoro ser D. Manuel Clemente um dos signatários. Mas justificará a função cardinalícia a ausência de indignação crítica em relação a pretérita dominação ideológica?

A reivindicação da oposição de consciência transporta consigo um perigo para a educação: tende a retirar aos professores a responsabilidade de definir os conteúdos programáticos, transferindo-a para os pais ou para os encarregados de educação. Dessa forma, abre-se a porta aos pais criacionistas que pretendam ver os programas expurgados de darwinismo, ou aos terraplanistas que exijam a leccionação da sua crença. Será que também esses têm direito à objecção de consciência no espaço do ensino da Geografia ou da Biologia?

Os indignados apoiantes do manifesto (subscritores ou outros) são quase sempre sujeitos que defendem o ideal da família patriarcal, da hierarquização, no respeito pelo dogma da desigualdade entre os sexos e explorando a nostalgia de uma pureza mítica. Outras formas de família são consideradas uma negação da condição natural e da normalidade. São, devido a essa alegada conflitualidade com as leis da Natureza, sintomas de doença afectante do corpo da sociedade, sinais de degenerescência, de um mal que deve ser travado. Não nego que muitos dos que assim pensam e sentem sejam movidos por óptimas intenções. O problema é que, como a história ensina, isso não chega. E se as boas intenções se estribam em ilusões, em crenças preconceituosas, em visões míticas, podem facilmente conduzir ao terror.

Para se compreender a zelosa oposição à disciplina em causa é necessário ter presente que o modelo patriarcal é estrategicamente fundamental para a implementação de certo tipo de políticas. Essa visão sempre foi um dos pilares dos regimes totalitários. Daí que talvez não se deva estranhar o horror agora manifestado. O ressurgimento das direitas antidemocráticas é uma evidência do tempo presente. É também uma evidente ameaça à Liberdade, à Igualdade e à Justiça social.

Precisamos mesmo de educação para a cidadania.»

João Maria de Freitas-Branco

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Pela obrigatoriedade da Educação para a Cidadania

por estatuadesal

(Sandra Maximiano, in Expresso Diário, 04/09/2020)

Sandra Maximiano

Cerca de 100 personalidades, 88 homens e 13 mulheres, maioritariamente de direita, de uma classe social privilegiada, entre as quais o ex-Presidente da República Cavaco Silva, o ex-primeiro-ministro Passos Coelho e o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, assinaram um manifesto a apelar à não obrigatoriedade da disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento. Para os signatários, os pais têm o direito à liberdade na educação dos conteúdos da disciplina que advogam ser ideológicos e o Estado deve apenas cooperar e não impor esta educação.

Eu até consigo nutrir alguma simpatia conceptual por aqueles que defendem a liberdade de escolha individual e se levantam contra um Estado extremamente intervencionista e paternalista no que respeita à formação e educação dos cidadãos em matérias éticas e morais. Conceptualmente, a ideia de o Estado poder impor através da fixação de um currículo escolar o conceito de bom cidadão pode ser assustador, sobretudo quando pensamos em regimes totalitários. Mas a este nível, tenho dois pontos a ressaltar.

Primeiro, vivemos em democracia, e, não sendo menos verdade que existe uma certa escolha curricular para a disciplina, os conteúdos resultaram do trabalho de um grupo multidisciplinar com um vasto conhecimento científico de áreas sociais e exatas. A definição de conteúdos é consistente com o ensino da cidadania em sociedades democráticas e modernas com uma visão global dos problemas mundiais. Mais, em democracia o debate sobre os conteúdos da disciplina e a importância destes é certamente dinâmico e pluralista e deve seguir o contexto económico, social e ambiental do país e do mundo.

Segundo, a construção da cidadania na sociedade tem sido sobretudo assente em decretos de leis e imposta por penalizações. Veja-se o mais recente exemplo das multas para as beatas de cigarro deitadas para o chão. Estas multas fazem apenas sentido porque há ainda uma grande maioria de cidadãos que não respeita o espaço público nem o meio ambiente, havendo assim a necessidade de alterar este comportamento através de uma atitude mais coerciva. No entanto, idealmente, o que se pretende é que os cidadãos modifiquem o seu comportamento de uma forma mais intrínseca e estrutural onde o recurso a penalizações seja cada vez menos necessário. Para isso, a educação formal e informal, nas escolas e em casa, é extremamente importante. Se colocarmos numa balança estes dois “veículos de construção de valores de cidadania”, ou seja, a educação, por um lado, e as leis e as penalizações, por outro, a educação é certamente o meio que melhor defende a liberdade de escolha.

No que respeita aos conteúdos da disciplina, estes são latos e abordam temas como direitos humanos, educação ambiental, interculturalidade, participação cívica, igualdade de género, violência doméstica, segurança rodoviária, voluntariado, literacia financeira e sexualidade. No entanto, parece-me a mim, que a questão mais fraturante se prende com a

questão da sexualidade. Como o professor universitário e antigo reitor da Universidade Católica Manuel Braga da Cruz, mentor do abaixo-assinado, disse ao Diário de Notícias, “eu não sei o que é o estado a fazer educação sexual. Mais, afirmou ainda que “os pais consideraram que a educação sexual e de género, que não são propriamente assuntos de uma educação para a cidadania, são de grande sensibilidade moral e até religiosa”. Esta visão da disciplina é bastamente redutora, ideológica e totalitária.

Os pais, ao imporem a sua posição baseada num dogma religioso deixam espaço aberto para que se possa recusar o ensino de outras matérias, como por exemplo, o ensino do evolucionismo que contraria as crenças criacionistas. Não se deve restringir conteúdos porque estes chocam com dogmas religiosos ou outras crenças, o que se deve fazer é considerar práticas de ensino inclusivas e respeitadoras. A fé e a ciência não têm necessariamente de estar em conflito e não cabe aos professores criarem esse conflito e imporem escolhas. No que respeita ao evolucionismo, por exemplo, os estudantes não precisam de ser obrigados a acreditar que os humanos se desenvolveram de outras espécies, é preciso apenas que entendam porque é que os cientistas apoiam tal teoria e qual a evidência na qual os cientistas fundamentam a visão. Este é o tipo de ensino que permite abordar questões fraturantes de uma forma plural e justa.

Ensinar questões de grande sensibilidade moral e religiosa pode não ser tarefa fácil, mas o que é perigoso é transformar o ensino numa educação à la carte, onde aos pais seja permitido restringir os horizontes dos filhos. Permitir aos pais a objeção de consciência tornando a disciplina facultativa cria grandes injustiças para os jovens. Nem todas as crianças nascem numa família privilegiada, com disponibilidade de tempo para educar e com a capacidade para abordar determinados temas. Cai-se no perigo de muitos pais, sem perceberem a fundo quais são os conteúdos da disciplina, se sentirem chocados com um ou outro tema que pode ser mais sensível em termos religiosos e então impedirem o acesso aos seus filhos a conteúdos estruturantes. Assusta-me pensar nas famílias com baixa educação escolar e poder económico, que vivem em localidades mais isoladas onde o papel da religião é muito fundamental, mas que pode obscurecer a escolha destes pais. Se ter o Estado a escolher pode ser assustador, ter o padre da aldeia a escolher parece-me a mim bastante mais tenebroso.

Por último, há quem ressalte o perigo de os conteúdos da disciplina serem políticos. É verdade que o são. Mesmo os temas que aparentemente podem não levantar qualquer celeuma são políticos. Veja-se o caso do voluntariado. A promoção da atuação voluntária constitui uma das formas de construção de uma cidadania ativa e participativa, fortalece a integração das classes, promove a igualdade e a inclusão e ajuda os voluntários no seu processo de crescimento e realização pessoal. No entanto, apesar da importância do terceiro setor, para alguns, o seu crescimento pode implicar a diminuição da ação social do Estado.

A meu ver, o facto de os conteúdos serem políticos intensifica a importância da obrigatoriedade da disciplina. O debate de ideias e o pensamento crítico não deve estar apenas acessível a elites. A sobrevivência e crescimento da democracia, nomeadamente o combate à

abstenção, a maior transparência na condução de políticas públicas e a diminuição da corrupção estão dependentes do desenvolvimento de uma sociedade educada e participativa.

Sou uma das subscritoras de um manifesto em defesa da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento como estruturante e obrigatória no ensino básico e secundário. O manifesto foi dinamizado pela Helena Ferro de Gouveia, e conta com o apoio da Susana Peralta, Ana Gomes, Maria João Marques, Teresa Violante, Pedro Bacelar de Vasconcelos, Teresa Pizarro Beleza, Daniel Oliveira, Alexandre Quintanilha, Catarina Marcelino, Miguem Somsen, entre outros apoiantes de diferentes esferas profissionais.

O facto de subscrever a obrigatoriedade da disciplina não significa que ache que o papel dos pais na educação para a cidadania não deve ser fundamental ou até mesmo o mais fundamental. Mas choca-me a arrogância intelectual das elites que se esquecem que a liberdade de escolha só existe verdadeiramente numa sociedade educada e informada.

As crianças quando nascem não escolhem o meio social, económico, as crenças religiosas, o partido político, o clube de futebol, nem se querem ser vegetarianas ou não. Os pais, como tutores, imputam a sua visão sobre o mundo, as suas preferências, muitas das vezes de uma forma totalitária e absolutista. Esta disciplina não pretende fechar visões, muito pelo o contrário, oferece aos jovens a possibilidade de crescerem para além da família, como seres individuais e com uma participação ativa em democracia.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A vacina russa contra a COVID 19, sobre os ombros da URSS

por estatuadesal

(Angeles Maestro (*), in Resistir, 21/08/2020)

Se escrevo este artigo é porque creio que ninguém está a dizer o óbvio:   as equipas científicas russas foram capazes de criar a vacina porque ainda existe uma poderosa estrutura estatal de laboratórios de investigação que foi desenvolvida pela União Soviética.

O anúncio de que a Rússia já dispunha de uma vacina contra a Covid-19 deu lugar a massivas desqualificações prenhes de carga política e económica. O alinhamento com os EUA por parte dos grandes meios de comunicação, correias de transmissão da servil subordinação política ao imperialismo norte-americano – que por outro lado se assemelha cada vez mais àquele que tenta salvar-se agarrando-se a quem se afoga –, leva a desqualificar tudo o que vem da Rússia com a irracionalidade e sistematicidade de uma mola.

No caso da vacina russa, a rejeição mediática generalizada está também untada pelos poderosíssimos interesses das multinacionais farmacêuticas. Os impérios do medicamento já esfregavam as mãos e preparavam os seus cofres para recolher os lucros da venda mundial de centenas de milhões de vacinas.

Ainda está fresca a memória dos milhares de milhões de dólares obtidos pela Gilead [1] com o Sovaldi ou pela Roche com o Tamiflu [2] , fármaco criado contra uma epidemia, a da Gripe A, que nunca existiu.

Muito se ironizou sobre os dois lapsos de Fernando Simón ao atribuir a vacina à URSS. Desconheço qual é a opinião de Simon sobre a URSS, mas efectivamente, os avanços soviéticos em saúde pública e medicina preventiva – alguns dos quais sobreviveram à Perestroika de Gorbachev, que considerava suspeito de ineficácia tudo o que era público – tornaram possível uma vacina à qual, significativamente, chamaram Sputnik V.

A URSS e a saúde pública

A Revolução de Outubro de 1917 deu origem ao primeiro sistema público de saúde, universal, baseado na promoção da saúde e na prevenção da doença e que exigia no seu funcionamento a participação da população na tomada de decisões [3] .

Num Estado que apresentava no início do século XX taxas de mortalidade infantil elevadíssimas – de cada 1.000 mortos, dois terços eram crianças com menos de 5 anos – e de mortalidade por doenças infecciosas (a mortalidade por tuberculose era de 400/100.000), a implementação de serviços de saúde em todos os recantos do imenso território foi acompanhada pela implementação de medidas de prevenção generalizadas [4] .

A vacinação de toda a população foi mais uma medida, entre outras também decisivas. O acesso a água potável e ao tratamento de resíduos, à electricidade ("O comunismo é o poder dos sovietes mais a electrificação de todo o país" V.I. Lénine [5] ), a habitação higiénica com aquecimento, a boa alimentação, a condições de trabalho decentes, a educação, … e ao poder político – conditio sine qua non –, são muito mais importantes do que os medicamentos para melhorar a saúde das populações [6] .

A Rússia czarista já havia desenvolvido uma importante trajectória científica em microbiologia, e especificamente em vacinas, que não chegavam ao seu povo. Antes da descoberta da vacina contra a varíola por Edward Jenner em 1796 e uma vez que a doença devastava desde há séculos a vida de milhões de pessoas em todo o mundo, aplicava-se um procedimento arriscado: a variolização. Provocava-se o contágio para induzir imunidade, embora o risco de morte fosse elevado.

Após a morte por varíola do czar Pedro I em 1730, a imperatriz Catarina II, juntamente com o seu séquito, submeteu-se publicamente a tal procedimento – que teve êxito – e utilizou-o como arma propagandística a favor da ciência e contra a superstição. Efectivamente, com apoio estatal foram desenvolvidas instituições científicas relacionadas com a imunologia.

O Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e Microbiologia, responsável pela descoberta da vacina contra a Covid 19, tem o nome do cientista Fiodor Gamaleya . Gamaleya desenvolveu nos finais do século XIX importantes investigações sobre a raiva com Luis Pasteur e com o seu apoio fundou o primeiro Instituto Bacteriológico da Rússia, o segundo do mundo. Seguiram-se descobertas de Gamaleya e outros cientistas russos sobre vacinas e mecanismos de transmissão da cólera, peste, tifo, etc.

O triunfo da Revolução em 1917 criou as condições para a aplicação desses avanços, que tinham permanecido encerrados em laboratórios, ao conjunto da população. Realizou-se a primeira campanha de vacinação universal da história da humanidade:   em 18 de Setembro de 1918, o Comissário do Povo para a Saúde Pública N.A. Semashko adoptou o "Regulamento de vacinação contra a varíola" baseado no relatório científico de Gamaleya e em Abril de 1919 o Presidente do Conselho de Comissários do Povo V.I. Lénine assinou o decreto correspondente. Foi a primeira campanha de vacinação universal da história da humanidade [7] .

No início dos anos 1930, a URSS foi o primeiro território do mundo a anunciar a erradicação da varíola. À escala mundial esse facto ocorreu 50 anos depois.

Os anos em que a OMS gozou de prestígio e autoridade mundiais – antes de ser engolida pelas multinacionais farmacêuticas – foram tempos de grande influência da URSS. Em 1958, Viktor Zhdanov, vice-ministro da Saúde soviético, propôs à Assembleia da OMS um plano para erradicar a varíola à escala global, que foi aprovado e posto em marcha. Algo mais de vinte anos depois, ao declarar a erradicação da varíola no planeta, o director da OMS lembrou a contribuição extraordinária da URSS para os países carentes de recursos: 400 milhões de doses da vacina [8] .

A vacina contra a poliomielite na URSS e a da Covid 19

Em meados do século XX uma nova epidemia causava grande mortandade e incapacitações: a poliomielite. Nos EUA, em 1955, foi desenvolvida a primeira vacina, baptizada Salk com o nome do seu descobridor. Pouco depois, o virologista Albert Sabin descobriu outro tipo de vacina mais eficaz, mais barata e mais segura (a vacina de Salk tinha apenas 60% de eficácia). Dado o sucesso da primeira não foi possível testá-la nos EUA.

Os cientistas soviéticos, Mikhail Chumakov e Anatoly Smorodintsev, foram enviados aos Estados Unidos. Sabin e Chumakov acordaram continuar a desenvolver a vacina em Moscovo. Vários milhares de doses da vacina foram trazidos dos Estados Unidos numa mala vulgar e as primeiras vacinações começaram.

Chumakov e a sua companheira, a virologista Marina Voroshilova, iniciaram a experiência em Moscovo com os seus próprios filhos. A vacina consistia num vírus debilitado, utilizava-se a via oral e era administrada por meio de um torrão de açúcar, de forma que não necessitava de pessoal qualificado.

Em ano e meio acabou a epidemia na URSS. Em 1960, 77,5 milhões de pessoas foram vacinadas. Albert Sabin foi chamado a depor acusado de actividades anti-americanas.

Uma anedota da época acaba por ser de grande actualidade. No Japão, a poliomielite assolava a população infantil e apenas a vacina Salk, de eficácia limitada e além disso em quantidade insuficiente, estava disponível. A vacina produzida na URSS não conseguia, por óbvias razões políticas e económicas, as licenças para ser importada. Depois de diversas peripécias, milhares de mulheres japonesas saíram à rua para exigir a vacina e alcançaram o seu objectivo. O filme soviético-japonês "Step" do realizador Alexander Mitta conta a história [9] .

Deve sublinhar-se que os avanços russos em matéria de vacinas continuaram após a queda da URSS. O Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e Microbiologia descobriu recentemente uma vacina contra o Ébola e trabalha actualmente em várias linhas de investigação, uma das mais avançadas a que tenta encontrar a vacina contra outro Coronavírus, o MERS-Cov. Desta forma, como reiteraram proeminentes investigadores russos, a rapidez do processo com a vacina contra a Covid-19 deve-se ao facto de se ter trabalhado sobre plataformas criadas há anos que avançavam em direcções semelhantes. De momento, a Rússia anunciou a fabricação de 1.000 milhões de doses para 20 países solicitantes.

A experiência continuará a escrever história. O que não se pode ignorar é que a campanha para desacreditar a vacina russa é orquestrada por gente que nada tem a ver com procedimentos científicos e tem, sim, muita relação com poderosíssimos interesses económicos, entre outros, da indústria farmacêutica.

Por outro lado, apesar dos lapsos de Fernando Simón, nem Putin é Lénine, nem a Rússia é a URSS. Mas nós, trabalhadores de todo o mundo, não deveríamos esquecer que a gigantesca gesta operária de Outubro de 1917 e a derrota do fascismo na Segunda Guerra Mundial, ainda continua a permitir alcançar, como neste caso, avanços científicos desenvolvidos sobre décadas de trabalho não sujeito aos interesses do capital e produzidos em instituições públicas.

Não é de todo provável que, apesar do sofrimento causado pela pandemia e do evidente desastre do sistema de saúde no Estado espanhol, o governo "progressista" se atreva a dar prioridade à saúde do seu povo e enfrentar, mesmo que apenas uma vez, o poder de um dos baluartes do imperialismo:   a indústria farmacêutica.

A conquista da independência, da verdade, terá que vir de outras mãos, da construção de outro poder capaz de derrotar a barbárie.


(A autora é médica e dirigente da Red Roja em Espanha)

[1] A multinacional norte-americana Gilead quadruplicou os seus lucros ao comprar a patente do medicamento Sofosbuvir para Hepatite C. O medicamento, descoberto em laboratórios públicos dos Estados Unidos, era vendido em função da negociação com o Estado comprador. Um tratamento na Índia custava entre 100 e 200 dólares e em Espanha, 25.000. www.nogracias.eu/2014/04/10/tamiflu-la-mayor-estafa-de-la-historia/
[2] O Tamiflu da farmacêutica Roche, a maior vigarice da história. Governos de todo o mundo gastaram milhares de milhões de dólares num medicamento contra uma epidemia que não existiu. A multinacional ocultou resultados de investigações que demonstraram que não encurtava os internamentos, nem reduzia as complicações e que, pelo contrário, tinha importantes efeitos secundários. O governo de Zapatero gastou 333 milhões de euros em Tamiflú em 2009, em plena crise, quando a despesa pública era maciçamente cortada na saúde e outros serviços públicos. www.nogracias.eu/2014/04/10/tamiflu-la-mayor-estafa-de-la-historia/
[3] Uma ampla referência à obra seminal sobre os princípios fundamentais e o desenvolvimento do sistema de saúde soviético e o ensino das profissões da saúde "Social Hygiene and Public Health Organization" por A.F. Serenko e V.V. Ermakor, acessível em espanhol, pode ser consultada em https: www.scielosp.org/article/rcsp/2017.v43n4/645-660/
[4] Um resumo das origens do Sistema de Saúde da URSS e da figura de Nikolai Semasko, primeiro Comissário do Povo para a Saúde, pode ser encontrado em russo, com tradução automática, aqui: regnum.ru/news/polit/ 2318307.html
[5] "Lâmpada de Ilyich" A primeira lâmpada foi inventada por um engenheiro russo em 1874 e sua chegada às aldeias mais remotas da Rússia tornou-se o símbolo da Revolução. Aqui pode ver pormenores do GOELRO, o plano de electrificação de toda a Rússia. https://es.wikipedia.org/wiki/GOELRO
[6] Sobre o médico prussiano Rudolf Virchov, patologista de destaque e considerado o fundador da Saúde Pública. http://webs.ucm.es/centros/cont/descargas/documento28401.pdf
[7] A história da primeira campanha de vacinação universal da história da humanidade e da erradicação da varíola na URSS pode ser consultada aqui:   books.google.es/...
[8] https://www.who.int/mediacentre/news/notes/2010/smallpox_20100517/es/
[9] Com base nesta história, o realizador Alexander Mitta filmou em 1988 a coprodução sovieto-japonesa "Step", com Leonid Filatov e Komaki Kurihara nos papéis principais. Oleg Tabakov, Elena Yakovleva, Vladimir Ilyin, Garik Sukachev actuaram com eles. A sua canção "My Little Babe" é reproduzida no filme www.academia.edu/39610881/CINE_RUSO_Historia_y_literatura_rusa_y_española

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Velhos e pobres, o que fazemos com os lares?

Posted: 02 Sep 2020 03:50 AM PDT

«Todos os desenvolvimentos humanos, por mais positivos que sejam, têm efeitos colaterais negativos. Mesmo a entrada da mulher no mercado de trabalho, que lhe permitiu conquistar a liberdade que, lentamente, lhe deu domínio sobre a sua subsistência, o seu corpo, a sua carreira, a sua vida. Isso e muita luta, claro está. Um dos efeitos foi deixar de existir quem, em casa, ficasse a tratar da família. Sejam as crianças, sejam os idosos. Ninguém quer esse passado de volta.

Quem diz que as famílias abandonam os velhos nos lares fala de barriga cheia. Claro que há quem os abandone. Há até quem tenha sido abandonado pelos pais e tenha aprendido com eles. E há quem não tenha outra forma de fazer, quando tem de ganhar o pão de cada dia, casa pequena e muito pouco tempo. Quem faz julgamentos generalizados sobre o abandono de velhos esquece que muitos dos seus familiares foram abandonados com eles. E é bom perceber que o aumento da longevidade leva a que a vida não seja apenas mais longa, mas seja longa com doenças, deficiências, incapacidades e dependências, o que torna a ideia de que os cuidados a idosos possam ser uma responsabilidade solitária das famílias num mito irrealizável e numa fonte de sofrimento para todos, idosos, cuidadores outros familiares.

Na realidade, os portugueses abandonam menos os velhos nos lares do que muitos europeus. Não porque sejam mais solidários. Somos um dos países que mais maltrata os idosos e, na OCDE, dos que menor percentagem do seu PIB gasta com respostas de longa duração para eles. A razão é mais prosaica: mesmo com a comparticipação da segurança social, nem para abandonar os velhos em lares temos dinheiro.

Quando a ministra do Trabalho e Segurança Social sublinhou que tivemos menos mortes por covid em lares do que muitos países europeus faltou-lhe falar da nossa taxa de institucionalização. Os lares legais garantirão um pouco abaixo de cem mil lugares, e se a isso juntarmos os lares clandestinos deve aproximar-se dos 120 mil. Certo que só 13% dos nossos idosos têm apoio formal, seja em lar (legais), em centro de dia ou em apoio domiciliário. Ainda somos dos países que mais depende dos cuidados informais.

O que também quer dizer que se este país se desenvolver um pouco, e mesmo que outras soluções ganhem peso, teremos mais velhos em lares. Também é previsível que a média de idade da nossa população continue a aumentar. Isto criará pressão na necessidade de resposta em quantidade. Depois há a qualidade. A pandemia revelou a alguns distraídos que os lares são, em geral, maus. Se tudo correr bem, haverá cada vez mais pressão para que melhorem, nas suas condições físicas e no acompanhamento à saúde.

Os cuidados sociais não tiveram, quando foi escrita a Constituição, o mesmo tratamento que teve a educação e a saúde, mantendo-se sobretudo dependentes do sector social e privado, mesmo com subsídio do Estado. Nem nos primeiros anos da infância, nem na velhice. A questão não é apenas a de saber quem presta o serviço, mas se é dever do Estado garantir a sua universalidade. Para essa decisão talvez tenha pesado, na altura, a pressão da Igreja e das Misericórdias, que queriam garantir o seu poder na única área que lhes sobrava.

Só que mudou uma coisa: o envelhecimento da população, com cada vez mais doenças e incapacidades durante mais tempo de vida. Entre os utentes dos lares, metade tem mais de 80 anos. Neste momento, há lares a fazer as vezes de cuidados continuados: são hospitais de retaguarda, com doentes acamados, entubados, algaliados e totalmente dependentes. Segundo a Carta Social, cerca de 80% dos utentes dos lares não toma banho sozinho, mais de 75% não se veste sozinho, 60% é dependente na mobilidade e para ir à casa de banho, 60% sofre de incontinência e quase 40% não consegue alimentar-se sem apoio. E onde se faz a fronteira entre a manutenção da saúde de pessoas fisicamente dependentes e o trabalho social? Até há hospitais a fazer as vezes dos lares, com os internamentos sociais por não haver onde pôr as pessoas.

Mesmo com todo o empenho, o pessoal que trabalha em lares é pouco qualificado. Porque é muito mal pago. E mesmo assim, os lares são tão caros e estão tão lotados (mais de 90% de taxa de ocupação, obrigando muitos idosos a irem para lares fora do seu concelho) que abrem ao lado lares clandestinos, ainda piores, para um público com menos recursos. O que por lá acontece, nem sonhamos. E quando o Estado fecha um abre outro ao lado. Haja procura que vai sempre haver oferta.

A preguiça manda trocar a complexidade da solução de problemas complexos pela simplicidade do discurso moral. É disso que vive a indignação profissional. Neste caso, o problema até é simples: somos pobres e temos problemas de ricos. Não temos dinheiro para os lares mas já não temos as estruturas familiares de sociedades menos “desenvolvidas” (não cabe neste texto discutir o termo). Complexa é a solução.

Podemos discutir se queremos apostar mais no apoio domiciliário, semirresidencial e no apoio aos cuidadores informais. E, como imaginam, acho relevante discutir a eficácia (para além dos custos) de soluções públicas, privadas, privadas com apoio público ou do sector social com apoio público. Sendo para mim mais do que certo que o Estado está constitucionalmente obrigado a dar resposta às necessidades de saúde que ocupam uma boa parte do trabalho dos lares, isso dá-lhe um papel reforçado em todas as respostas. No fim, continuará a faltar lugar e apoio a muita gente, porque as nossas capacidades estão muito longe das nossas necessidades. Seja qual for o caminho não deixaremos de ter mais pessoas institucionalizadas e precisar de mais dinheiro. E se não queremos depósitos para velhos, os custos serão muito maiores por pessoa do que são agora.

Não é indiferente o modelo. Mas qualquer um deles, para ser decente, é muito mais caro do que aquilo que temos hoje. O que nos leva ao mesmo debate que temos sempre que falamos do envelhecimento da população: a sustentabilidade financeira. Os irados de Facebook (muitos coincidem com os que se opõem à imigração, que ajudaria a reverter a crise demográfica) falarão das mordomias dos políticos e da corrupção. Os que procuram soluções sabem que essa conversa fácil é fogo de artifício para esconder a falta de resposta.

Uns países criaram uma sobretaxa para pagar o internamento, outros têm sistemas de poupança obrigatória e penso que o Reino Unido até ponderou ir buscar às heranças os custos do Estado com lares. E há quem perceba que, tendo de se reforçar largamente a valência de cuidados continuados em todos os lares, estamos a falar de serviços de saúde e é discutível que isso não seja dever do Estado, como é o SNS. Seja qual for a solução, é preciso lidar com este facto: o de sermos um país pobre e envelhecido. Não há poema sobre a velhice, texto indignado com a indignidade dos lares ou saudades das mulheres cuidadoras sem vida própria, que ainda as há, que resolva isto. É de políticas públicas que precisamos.»

Daniel Oliveira