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terça-feira, 8 de setembro de 2020

QAnon: o pináculo da demência neofascista

por João Mendes

Entretanto, numa manifestação de teóricos da conspiração contra o uso de máscaras, seguidores da seita QAnon clamam pela dupla Putin-Trump, que os salvará do deep state, das vacinas contra o sarampo, do marxismo cultural e, claro, de Satanás. São chanfrados? Sim, são chanfrados. E isso torna-os ainda mais perigosos. Já tínhamos os mujahedines, os telecurandeiros do dízimo e agora estes. Em princípio, é desta que o mundo acaba.

Segundo estas raríssimas espécies, "A Tempestade" está para breve. E o que é "A Tempestade", perguntam vocês? É o dia em que o exército tomará o país de assalto, durante o qual milhares de membros da cabala mundial de pedófilos adoradores de Satanás serão presos e sumariamente executados, e a Terra será salva. Não é um Nineteen Eighty-Four, mas dava um bom argumento para uma série televisiva. A Netflix que abra a pestana. Ler mais deste artigo

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Fantasia e realidade nas eleições presidenciais

Posted: 06 Sep 2020 03:58 AM PDT

«Talvez mais do que qualquer outra, a eleição presidencial é terreno propício ao surgimento de candidaturas circunstanciais (em 2011, Coelho teve 190 mil votos; em 2016, Tino ficou só a 30 mil votos do candidato do PCP), ao erro das sondagens (em 2016, antecipavam 18% para Maria de Belém e 1,9% para Marisa, quando o resultado final foi 4,2% e 10,1%) e ainda a estratégias avulsas. Nada disso sobra quando passa o tempo, implacável como é. Por isso, antes de serem apresentadas candidaturas que contam, supondo que o serão proximamente e ficando para novembro a certeza da recandidatura de Marcelo, sugiro algumas reflexões.

A primeira é a mais óbvia: que esta eleição disputa ideias para Portugal, mas não o resultado final. É convenien¬te que se tirem as conclusões desta evidência: fingir que há uma incerteza dramática será o mais deficiente dos incentivos eleitorais. A eleição é importante não por decidir o que está decidido, o Presidente do próximo mandato, mas antes por ajudar a situar os braços de ferro que hão de fazer a vida social. Melhor será levar a sério o que a eleição representa mesmo, uma forma de olhar as dificuldades estruturais de um país com défice de liderança social, com uma economia atravessada por dependências e amarrado a um estado insuficiente nos cuidados essenciais, ineficaz na sua gestão e vulnerável aos interesses corruptores. Por isso o que importa é o que as candidaturas respondem à crise económica, ao futuro das políticas sociais e de como a nossa democracia representará os excluídos, ao liberalismo agressivo que dita regras europeias, à ‘trumpização’ da política.

A segunda é a mais pesada: que não há uma candidatura unificadora da esquerda. Não há um Jorge Sampaio. E o povo não o exige. Todos sabemos que Marcelo ganhará e, com ele, a ideia de um Presidente de direita que coopera com Costa. É por isso que os votos dos eleitores do PS parecem ser-lhe tão fiéis. Desmontando a conflitualidade cavaquista, o atual Presidente ocupou esse espaço sem ser contrariado. No desgaste que o prolongamento da crise social impõe, está mais resguardado do que o Executivo, que por isso tem vantagem em manter a parceria. Neste contexto, pretender que o que está em causa é a exigência de uma “unidade da esquerda” soa a montagem artificiosa: não existe personalidade que a una, a massa dos eleitores de esquerda não vê a que caso ela responderia, e pedir a Costa que apresente candidatura é ficção, bem como pedir ao PCP ou ao Bloco que desistam é chantagem. Todas as candidaturas de esquerda serão tribunícias, como agora se diz; nenhuma será tocada pelos anjos, e melhor seria que não se sobrepusessem.

A terceira é que há uma disputa à direita e, se esta é uma oportunidade conveniente para Ventura, não será uma esquerda que imite os seus temas que o atrapalhará. Essa candidatura, se existisse, seria de duvidoso resultado. Suponho até que não gostaríamos de assistir a tal espetáculo. Este é um confronto à direita, e é mesmo Marcelo quem o enfrenta, pela simples razão de que o eleitor radicalizado pelo ressentimento contra os ciganos poderá ser sensível a alternativas institucionais mas não responde à recusa dos termos do ódio. A esquerda não precisa de campeões de bate-boca, precisa de saber onde está o seu alvo, que é garantir segurança e proteção aos aflitos da crise. Por isso a fantasia seria desviar a atenção: para definir respostas consistentes para a gente, o medo do desemprego é mais importante do que os fogos de artifício dos venturistas. Mesmo nas presidenciais.»

O PR e o recandidato óbvio

por estatuadesal

Carlos Esperança, 06/09/2020

Marcelo Rebelo de Sousa nunca despiu a pele de candidato, e soube resistir ao desgaste da imagem com raro talento e a cumplicidade dos média.

Não tendo funções executivas ou competência em política externa, permite-se comentar tudo, em todos os lugares e momentos, fazendo com o poder moderador, que detém, um permanente ruído mediático, a condicionar a vida partidária.

Sem a dimensão ética de Jorge Sampaio, a sagacidade de Mário Soares ou a sobriedade de Eanes, Marcelo não é só um obsessivo cultor de afetos, torna-se um carrasco quando julga poder beneficiar da desgraça alheia. É cada vez menos o que desejava parecer e parece ser, cada vez mais, o seu antecessor de que só a cultura e a inteligência o distinguem.

A sua atitude recente contra a Diretora Geral de Saúde, cuja abnegação e discernimento compensam uma ou outra falha, foi a gota que fez transbordar o copo da benevolência de que beneficiou. A atitude hostil à Dr.ª Graça Freitas, a pretexto da Festa do Avante, remete-nos para a implacável insensibilidade com que acossou Constança Dias Urbano, juntando-se à campanha contra o Governo, na tragédia do incêndio de Pedrógão Grande.

A atitude do inevitável recandidato a PR é inaceitável por usar a manifestação partidária quando sabe que os Governos não podem impedir iniciativas de qualquer Partido, salvo se vigorar um “Estado de Emergência”, proposto pelo PR e aprovado pelo Parlamento, o que manifestamente sabe não ter proposto.

A perseguição à Dr.ª Graça Freitas foi ainda mais chocante porque se calou perante duas manifestações fascistas do Chega, outra contra as medidas sanitárias do uso de máscaras e distanciamento social, diversos espetáculos, a peregrinação a Fátima de 13 de agosto e outros eventos, igualmente legais, que reuniram grandes aglomerações e onde os riscos foram menos acautelados.

Sub-repticiamente alimentou a campanha negra contra o PCP, não no confronto leal de ideias, mas ao gosto do primarismo salazarista que assusta os democratas.

Marcelo abriu espaço para uma candidatura entre a sua e a dos candidatos do PCP e BE.

domingo, 6 de setembro de 2020

Imprudência e fúria — a história da Festa do Avante! em 2020

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 05/09/2020)

Pacheco Pereira

Em memória de Ruben Tristão de Carvalho

Na altura em que estiverem a ler isto está em curso a Festa do Avante! entre protestos e congratulações. Houve de tudo. O PCP foi imprudente e depois arrogante, menosprezou um factor que tinha a obrigação de conhecer muito bem: em tempos de crise não há nada mais explosivo do que a percepção (e nalguns casos a verdade) de que há desigualdades de tratamento, filhos e enteados. A Festa do Avante! foi vista como um caso excepcional de complacência das autoridades sanitárias, por troca de favores políticos, que permitiriam ao PCP fazer ajuntamentos, comes e bebes, exposições, concertos, que estavam proibidos a outros grupos e, em particular, aos profissionais dos espectáculos e festivais, que passam momentos de grandes dificuldades. Não é inteiramente verdade, mas tem uma parte suficiente de verdade para gerar um sentimento de indignação, que depois tem vindo a ser usado politicamente para atacar o PCP, o governo e as autoridades sanitárias.https://tpc.googlesyndication.com/safeframe/1-0-37/html/container.html

Acresce que há possibilidade de existirem cadeias de transmissão da covid com origem no ajuntamento da Festa. É um enorme risco para o PCP, que tem conseguido manter intacta a reputação de ter uma capacidade de organização e militantes disciplinados, e que foi capaz de organizar eventos como o 1.º de Maio sem efeitos epidemiológicos conhecidos. Mas gerir uma multidão não é a mesma coisa, e por muito que o serviço de ordem do PCP seja eficaz, há perigos reais e uma enorme responsabilidade.A fúria actual com a Festa do Avante! é tudo menos inocente. Tem uma clara motivação política

Mas, a fúria actual com a Festa do Avante! é tudo menos inocente. Tem uma clara motivação política, longe de qualquer preocupação com a pandemia e muito menos com os trabalhadores dos espectáculos e festivais. Ela insere-se numa clara deslocação para um radicalismo de direita que se tem vindo a acentuar em várias áreas da sociedade portuguesa, e de que o Chega é apenas a ala populista mais visível, e as redes sociais o viveiro do ódio, mas que encontra expressão numa elite que está órfã do poder, apoiada em think tanks, subsidiados por grupos empresariais, com um peso crescente na comunicação social.

Repetirei de novo que uma parte importante desta deriva vem da impotência, mas com o tempo essa impotência transforma-se em raiva. A vida política portuguesa vai ser crescentemente perigosa, num caminho que encontra em Trump um inspirador não nomeado por vergonha, mas real.

Metem-se agora com o PCP, porque o PCP está mais fraco e tem-se deixado acantonar e isolar da opinião pública. Mas a duplicidade é flagrante: nos últimos meses houve duas manifestações do Chega, uma de um grupo que partilha as teorias conspirativas contra as máscaras e a distanciação social, duas manifestações anti-racistas, uma das quais com bastante gente, vários eventos religiosos, feiras por todo o país, só para referir ajuntamentos legais, e nenhum dos argumentos usados contra a Festa do Avante! foi usado e, nem de perto nem de longe, a mesma veemência. Sobra apenas o argumento do número de presentes, que o PCP anunciou serem à volta de 30.000 e a DGS reduziu para metade.

Encurralado, o PCP subiu a parada, até porque a Festa do Avante! não é para o partido um comício, ou uma festa comum, tem um importante elemento identitário e comunitário. Todos os partidos comunistas tiveram na sua história uma festa associada com o jornal partidário, seja o L’Humanité, o Unitá, ou o Mundo Obrero, que faz parte da prática comunista. Não é de facto, como diz o PCP, “uma festa como as outras”, porque a cultura política comunista tem uma identidade própria, com a vantagem de permitir sinais de pertença e reconhecimento e a desvantagem da auto-suficiência e do bunker.

O papel da Festa na mobilização partidária começa antes, na sua montagem em grande parte feita por voluntários, que realizam “jornadas de trabalho”, e depois asseguram a realização do evento, e finalmente nas diferentes excursões de camionete e de comboio, que asseguravam que os militantes de Trás-os-Montes se podiam encontrar com os do Alentejo. No recinto são comuns formas de reconhecimento tribal entre “camaradas”, quer através das bancas de comida, objectos, artesanato local, quer inclusive com as delegações estrangeiras de outros partidos comunistas e movimentos revolucionários. A Festa é ao mesmo tempo provinciana e cosmopolita, e transmite aos que a visitam esse sentimento de que fazem parte de uma comunidade nacional e de um movimento internacional, com amigos e inimigos. Se tivermos em conta que muitos dos que a visitam não viajam facilmente, nem tem condições económicas para conhecer o mundo, isso é um momento importante nas suas vidas.

O resto da Festa serve quer o financiamento do partido, quer uma tentativa de aproximação aos mais jovens pelos espectáculos e alguma abertura por essa via ao exterior (um visitante habitual era Marcelo Rebelo de Sousa…), sobrando a parte objectivamente menos importante para o interior dos discursos da rentrée do PCP para marcar o calendário. Este ano, no contexto da actual situação política, com os apelos do PS a entendimentos, o que lá se disser pode ser relevante.

Amanhã ver-se-á, e, se tudo correr bem com a pandemia, o que vai ficar destes dias será a fúria contra a Festa. O que se passa à volta da Festa é um sinal preocupante da evolução da vida política portuguesa, a caminho de um cada vez maior radicalismo, no limiar da raiva e da violência. Pensam que é exagero? Infelizmente é só esperar.

Deus perdoa... tudo?

Posted: 05 Sep 2020 03:45 AM PDT

«A expressão, recorrentemente usada entre os católicos, serve, normalmente, para expiar os pecados dos crentes e será, porventura, uma das suas maiores provas de fé. Mas repetir várias vezes, para dentro, que "Deus perdoa", resolve tudo?

Uma crise, quando chega, afeta todos. Uns mais do que outros, é verdade, mas, seguramente, a Igreja não é uma exceção. Seja pela diminuição das receitas - mais conhecidas por esmolas -, seja pelos encargos adicionais que uma pandemia acarreta a qualquer instituição. Mas não só a Igreja não é uma instituição qualquer, como, certamente, o Santuário de Fátima não tem qualquer justificação para despedir trabalhadores.

Fátima é aquilo a que, em linguagem popular, se pode chamar uma mina de ouro. Em muitos casos, o ouro é literal, tantas são as ofertas que o Santuário tem recebido dos fiéis ao longo dos anos, as heranças e os bens em espécie que vão avolumando o património num valor que, sendo incalculável, nunca foi verdadeiramente revelado.

E este é um dos aspetos mais negativos e perniciosos na atuação da Igreja: a opacidade. Quem fizer uma pesquisa rápida no Google à procura de informação sobre as contas do Santuário de Fátima tem de recuar 14 anos para encontrar alguma coisa. E o que encontra é curto. É como se os fiéis - e os não crentes, já agora - não tivessem direito a conhecer os números. Pior, é como se a Igreja gozasse de um privilégio divino que a desobriga de prestar contas ao comum dos mortais e só a Deus tivesse de confessar o que fatura e onde gasta o dinheiro.

Os privilégios da Igreja são, precisamente, o segundo fator que torna esta reestruturação no Santuário de Fátima ainda mais incompreensível. As regalias e as isenções fiscais garantidas pela concordata deviam, em consciência, obrigar a Igreja Católica a um outro sentido de responsabilidade para com o país e a sociedade. Despedir 100 trabalhadores num universo de 400 (com rescisões, não renovações ou de qualquer outra forma), quando se "fatura" milhões livres de impostos todos os anos e se tem tanto património é, no mínimo, ultrajante. E dificilmente encontrará explicação na Bíblia.

Para a hierarquia da Igreja, no acerto de contas final com Deus, pode até ficar tudo perdoado. Mas, pelo caminho, cerca de 100 pessoas - que não têm sindicatos nem comissões de trabalhadores para as defender - perderam o emprego. Há famílias que vão passar pior a partir de agora e tudo isso era desnecessário. Bastaria, porventura, que a Igreja fosse coerente com a doutrina que apregoa aos outros, todos os domingos, e desse o exemplo. Porque, se não o começar a fazer rapidamente, o número de fiéis vai continuar a diminuir e a "crise económica" será o menor dos problemas.»

Anselmo Crespo