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sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Não esquecer os esquecidos

Posted: 10 Sep 2020 03:50 AM PDT

«De pouco nos vale o contentamento de termos salvo o Serviço Nacional de Saúde (SNS) de si próprio, a expensas de uma pandemia que tirou o chão a todas as convenções e protocolos, se não tivermos aprendido uma lição fundamental: o país não pode esquecer-se novamente dos doentes que ficaram esquecidos. Dos largos milhares de portugueses não atingidos pela covid mas privados de consultas, tratamentos, cirurgias, internamentos, carentes de um simples aconselhamento médico, em demasiados casos órfãos de uma mísera prova de vida do outro lado do telefone.

É natural e desejável que a máquina da saúde se acautele para o inverno que pode fazer despontar uma tempestade perfeita, quanto mais não seja porque continuamos a caminhar sobre o arame escorregadio das projeções. O regresso às aulas, ao trabalho, aos transportes públicos lotados e o impacto de uma sempre imprevisível gripe sazonal são desafios que se tornaram ainda mais exigentes num contexto de tão elevada transmissibilidade do vírus em que desgraçadamente nos encontramos.

Mas uma coisa é adaptarmos o sistema à experiência adquirida e ao pior cenário, outra é fazê-lo de uma forma tão obstinada que acabará por resultar numa disformidade ainda maior. Nunca como agora foi tão clara a relevância de uma saúde pública acessível a todos. Mas os mais recentes números sobre os que ficaram para trás são alarmantes: menos 986 035 consultas nos cuidados primários, menos 16,8 milhões de atos médicos, menos 998 mil consultas externas hospitalares, menos 99 mil cirurgias. Se a atividade programada voltar a ser suspensa, será o caos. Por isso, a mensagem de que o Estado está preparado para responder a uma segunda vaga não pode sobrepor-se à ideia de que o SNS se esgota nessa resposta. As portas têm de continuar abertas para todos os outros. Salvar o sistema é salvar os doentes. Todos os doentes.»

Pedro Ivo Carvalho.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Quem tem medo da educação sexual? E da igualdade de género?

Posted: 09 Sep 2020 04:12 AM PDT

«Já tivemos famílias de etnia cigana nos tribunais exigindo dispensa da filha frequentar a escolaridade obrigatória, em nome da tradição. No Reino Unido há muitos casos de pais com as mais sortidas objeções de consciência. Pais extremistas tiraram os filhos das aulas de Educação Religiosa porque não aceitam que estes sejam contaminados com conhecimentos históricos sobre o Islão. Provavelmente acreditam que saber o ano da Hégira ou as diferenças entre sunitas e xiitas é três quartos do caminho para se oferecerem ao ISIS.

Pelo seu lado, pais muçulmanos conservadores, tanto no Canadá como no Reino Unido, têm objeção de consciência às aulas de música. Em Birmingham, várias escolas tiveram de parar de falar aos alunos da parte curricular dos direitos LGBT, porque os progenitores correram às centenas para resgatarem os filhos e os salvarem de tais informações.

Portugal, que não fica atrás no obscurantismo e na intolerância, também tem o já famoso caso do pai de Famalicão (sempre contente na televisão apesar do futuro escolar incerto da prole) que impediu os filhos de frequentarem as aulas de Cidadania e Desenvolvimento. E, aproveitando a conveniência da posição deste pai, um grupo bastante homogéneo de homens, com nomes sonantes (ainda que já um tanto fora de tempo), fez uma petição exigindo a possibilidade de objeção de consciência (dos pais) às tais aulas de Cidadania (dos filhos). Disciplina que, refira-se, o Comité das Nações Unidas para os Direitos das Crianças em 2019 aplaudiu e recomendou que o Estado português aprofundasse.

O que os perturba? Não é, claro, o módulo da segurança rodoviária ou de empreendedorismo. O que transtorna as personalidades signatárias são os módulos da sexualidade – onde se enquadram a Educação Sexual e os temas da tolerância para com gays, lésbicas e transexuais – e da Igualdade de Género.

Incrível, não é? Um país com números aberrantes de violência doméstica, crimes sexuais que têm aumentado nos últimos anos, sentenças iníquas dos tribunais garantindo a impunidade a violadores e agressores domésticos, diferenças salariais de 17% a menos para as mulheres, num momento em que 90% dos desempregados com a crise da covid são mulheres – e há quem faça petições contra o ensino da igualdade de género.

Mas não espanta. Lá em cima falei em homens. É este o primeiro reparo que faço. Na petição de quase cem pessoas só 15 são mulheres. Um grupo de senhores, que julga ainda ser a palavra dos homens a encerrar os assuntos, com média de idades justificando a incapacidade de perceção das necessidades educativas dos anos 2020, que nunca necessitaram de se preocupar com gravidezes fora de tempo, agindo para que pais objetores de consciência possam impedir às filhas os conhecimentos indispensáveis para não contraírem doenças sexualmente transmissíveis nem engravidarem sem desejarem. (Aos rapazes também, claro. Mas, apesar de tudo, o conhecimento da existência de preservativos é mais generalizado. A sexualidade feminina é mais complexa. E os rapazes não engravidam.)

O segundo reparo que faço é a hipocrisia. Objetam à Educação Sexual obrigatória. No entanto, a lei que a tornou obrigatória é de 2009. Segundo me lembro, entre 2011 e 2015 houve um Governo liderado por um senhor chamado Passos Coelho. Era presidente Cavaco Silva. Curiosamente, os mais sonantes signatários da petição. Curiosamente, quando lideraram a política nacional não fizeram nenhuma alteração legislativa tornando a Educação Sexual facultativa. Por que razão? Mudaram de princípios ou é só oportunismo pelas crescentes ideias ultraconservadoras da extrema direita? Ou não estão acima de usar temas essenciais para a educação dos jovens como arremesso da politiquice?

O terceiro reparo é a mentira. O setor que pede – mas só agora que o Governo é socialista – Cidadania e Desenvolvimento facultativa garante que de modo nenhum querem privar os seus rebentos dos conteúdos. Até falam com eles em casa de tudo isso. Bom, é falso. Como é evidente, os pais não têm a informação necessária para transmitir os conhecimentos técnicos sobre sexualidade. Nem as mulheres, que normalmente estão a par do assunto contracetivos, têm informação que chegue para muito mais que uma conversa superficial. Ou formação pedagógica para transmitirem a dose de conhecimento certa a cada idade. Donde, o resultado seriam filhas e filhos obtendo a (des)informação através da pornografia da internet.

O quarto reparo vai para a alegação de ideologia. Qual é a ideologia de informar que a homossexualidade não é uma doença? Qual a ideologia de explicar aos adolescentes como funciona o seu sistema reprodutor? Os ciclos ovulatórios das mulheres tornaram-se marxismo cultural? Em que parte é ideológico ensinar – de um assunto com abundante pesquisa científica – que os preconceitos de género são o fator determinante nos menores ordenados das mulheres e na sua exclusão dos lugares de poder?

Ideológicos são os que se opõem à disciplina de Cidadania: pretendem manter as mulheres e os gays e os transexuais vítimas de discriminação e violência; insistem em controlar (pela ignorância e pelo medo de uma gravidez) a sexualidade feminina. Isto, sim, é ideologia – e da má.

Só se compreende o argumento da ideologia na medida em que parte da direita atualmente vê as alterações climáticas como assunto ideológico. O uso das máscaras na prevenção do contágio da covid como promoção do totalitarismo. E mais uns tantos exemplos esotéricos.

Não, não é ideologia informar os adolescentes sobre os seus corpos e a sexualidade saudável. É, pelo contrário, um direito deles que objeções de consciência parentais não podem varrer. Como também cabe no direito à educação serem expostos à necessidade de aceitação e tolerância do diferente, tanto de cor de pele como de orientação e identidade sexual. E ainda conceitos fundamentais como o que é o consentimento sexual.

É este o meu quinto reparo: a desconsideração absoluta deste movimento conservador pelos direitos dos adolescentes e, igualmente, pelos direitos das mulheres e das pessoas LGBT – desde logo o direito de viverem livres de violência e usufruindo das mesmas liberdades e oportunidades. Felizmente, a sociedade civil já começou a responder e com as armas eficazes: números massivos (o manifesto pela Educação para a Cidadania em poucos dias tem mais de seis mil signatários) e a diversidade de sexos, de raças, de proveniências, de ideias políticas, de religiões, de idades que de facto espelha a sociedade portuguesa atual.»

Maria João Marques

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A abjeção de eterno retorno

por estatuadesal

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 05/09/2020)

Desde 1984, quando se decretou que devia haver educação sexual na escola, que periodicamente surge um escândalo fabricado seguido de manifesto para que tal não suceda. Nunca tínhamos era visto um ex presidente e um ex PM subscreverem a ideia de que a discriminação só se combate se os pais deixarem.


Em 2004, decidiu-se em França que na escola pública os alunos menores não podem comparecer ostentando símbolos religiosos. Anunciada sobretudo como uma proibição do véu muçulmano, a decisão incidiu sobre todas as formas de traje afetas à religião. Nem as meninas muçulmanas podem cobrir o cabelo com véu ou lenço - muito menos usar burqa ou niqab -, nem os rapazes judeus usar quipá, nem os cristãos exibir crucifixos. A lei foi apresentada como uma defesa da igualdade de género e da liberdade das crianças - "a sociedade francesa não pode aceitar atentados à liberdade dos sexos e ao seu convívio", lia-se no relatório de "sábios" que lhe deu origem -, e está em vigor até hoje.

Estranhamente, nunca vimos os habituais paladinos portugueses da "objeção de consciência" dos encarregados de educação face às imposições da escola pública fazerem referência a esta compressão da vontade e das convicções dos encarregados de educação, quanto mais contestá-la ou apresentá-la como "marxismo cultural", "ideologia de género" ou "politicamente correto".

Do mesmo modo, não vimos nenhuma dessas vozes rasgar as vestes quando em 2017 o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deu razão à Suíça no processo que os pais islâmicos de duas meninas de 11 e nove anos ali tinham levado devido à multa de cerca de 1300 euros que lhes fora aplicada por recusarem que estas participassem nas aulas - obrigatórias - de natação.

Argumentou o tribunal que o interesse das crianças de terem acesso a uma educação completa deve prevalecer face ao desejo dos pais de terem as suas filhas isentas das aulas de natação. A disciplina de educação física, da qual a natação faz parte, é vista pelos juízes como tendo um especial papel no desenvolvimento e saúde das crianças, observando o acórdão que "a escola desempenha um papel fundamental no processo de integração social das crianças" e que "o interesse dos estudantes em participar dessas aulas não é apenas nadar ou fazer exercícios físicos, mas, sobretudo, participar dessas atividades com todos os outros alunos, sem qualquer exceção quanto à origem da criança ou às convicções religiosas ou filosóficas dos pais."

Convém talvez frisar que o motivo pelo qual algumas famílias muçulmanas - há muitos muçulmanos que não concordam com isso - querem que as filhas cubram o cabelo e de um modo geral permaneçam "cobertas", não participando em aulas de educação física ou natação, é a ideia de que existe uma diferença fundamental entre os sexos, com papéis de género muito definidos, e que as raparigas devem ser educadas de forma diferente e "protegidas" dos rapazes. Quem pensa assim considera ser seu direito inalienável impor essa perspetiva não só às suas filhas como à comunidade escolar, com o que tal implica de exemplo de discriminação - porque crê que as suas crenças religiosas estão acima de tudo. Como se viu, o TEDH rejeitou tal perspetiva, tornando claro que vê o direito das crianças à igualdade, à saúde e ao desenvolvimento pessoal como sobrelevando as convicções dos pais e considera que os interesses dos menores não são sempre melhor representados pelos progenitores, não sendo estes donos dos filhos. Afinal, aquela multa imposta pelo Estado suíço é uma pena pelo dano que infligiram às filhas - aos seus direitos humanos.

Sabemos que este tribunal nunca teve de apreciar um caso em que em vez de educação física esteja em causa uma disciplina que visa especificamente familiarizar os alunos com os princípios da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e contribuir para que sejam cidadãos informados e responsáveis, como se passa com a disciplina portuguesa de Cidadania e Desenvolvimento. Mas em face da decisão citada parece pouco provável que aceitasse o mesmo tipo de argumentos daqueles pais para recusar uma disciplina que visa evitar comportamentos de risco, sensibilizar para as questões ambientais, promover a igualdade de género e a não discriminação e contribuir para o conhecimento pelas crianças e jovens dos seus direitos e deveres.

Falo, claro, do pai de Famalicão que quer ver a sua "objeção de consciência" à disciplina de Cidadania e Desenvolvimento reconhecida na justiça depois de impedir os dois filhos de a frequentar e vê-los chumbar por faltas não justificadas por esse motivo. O caso, no qual a justiça portuguesa deverá ter em consideração a decisão de 2017 do TEDH, será interessante de seguir. Até porque veremos pela primeira vez tratada nos tribunais uma questão que está sempre a regressar à discussão pública, trazida sempre pelos mesmos - agora com o oportunista apoio de outros - e poderemos finalmente ouvir os argumentos dos que se lhe opõem tão desesperadamente.

Trata-se, como esclarece o progenitor em causa, Artur Mesquita Guimarães, da educação sexual. Porque é que tanto o apavora que a escola fale disso não diz; afirma apenas que é "competência dos pais". Também o manifesto que surgiu esta semana contra a obrigatoriedade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento repete a ladainha: "No programa da referida disciplina inclui-se ensinamento sobre matéria de opinião íntima pessoal, moral e religiosa. Esta matéria tem sido publicamente anunciada em vista a libertar os alunos de "preconceitos e estereótipos" relativos à questão de género, e alterar "costumes, atitudes e valores" em matéria de sexualidade, assuntos que pertencem à responsabilidade educativa da família e não do Estado."

Mete sexo? É com os pais. Não surpreende ver sob estas palavras as assinaturas de prelados e reconhecidos fundamentalistas católicos, como não surpreenderia ver a de fundamentalistas muçulmanos - os pais das meninas suíças impedidas de nadar assinariam de cruz. Mas encontrar ali um ex-presidente da República (Cavaco), um ex PGR e juiz do Supremo (Souto de Moura) e um ex primeiro-ministro (Passos), todos da democracia e portanto da obediência à Constituição em vigor e à legislação europeia, não pode deixar de chocar.

É que, como se lê na muito resoluta resolução do Conselho de Ministros chefiado por Passos que em 2013 aprovou o V Plano Nacional para a Igualdade, Género, Cidadania e Não-discriminação 2014-2017, "é tarefa fundamental do Estado promover a igualdade entre mulheres e homens, sendo princípio fundamental da Constituição da República Portuguesa e estruturante do Estado de direito democrático a não-discriminação em função do sexo ou da orientação sexual."

Princípio fundamental e estruturante mas opcional, será? Parece que não: "A prossecução de políticas ativas de igualdade entre mulheres e homens é um dever inequívoco de qualquer governo e uma obrigação de todos aqueles e aquelas que asseguram o serviço público em geral."

Para tal, a resolução, cuja leitura se recomenda a todos e particularmente ao ex-primeiro-ministro que a assinou, privilegia "ações na área da educação enquanto pilar das políticas para a igualdade", nomeadamente "a produção do Guião de Educação, Género e Cidadania destinado ao ensino secundário (...) e que a igualdade de género constitua um eixo estruturante das orientações a produzir para a educação pré-escolar e para o ensino básico e secundário." Mais: reconhecendo que "tradicionalmente a sociedade portuguesa tem revelado alguma permissividade face às discriminações, no que diz respeito à orientação sexual e à identidade de género", anuncia-se como objetivo estratégico "prevenir e combater todas as formas de discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género e promover a sensibilização de toda a sociedade portuguesa para esta problemática."

Poderá Passos, como poderão Cavaco o ex-ministro da Educação David Justino, também signatário do manifesto - e que em 2004, enquanto titular da pasta, defendeu que a educação sexual deveria fazer parte, incluída "num conjunto de questões ligadas à educação para a saúde e cidadania", de uma disciplina obrigatória ao longo de sete anos -, alegar que mudou de ideias. Que afinal as discriminações não devem ser combatidas pelo Estado, que a legislação europeia deve ser ignorada, que a defesa da igualdade na escola é só se os pais quiserem e que se a sociedade portuguesa é permissiva face à exclusão de pessoas, incluindo crianças, por causa da sua identidade de género e orientação sexual, ou se os estereótipos de género continuam a penalizar muito as meninas e mulheres - como a resolução citada reconhece - olha, azar.

Pode Passos, como podem Cavaco e Justino, até defender a "imediata revogação das leis de igualdade de género", à imagem do partido que está a marcar-lhes a agenda. Podem, em inconsciência ou consciência, objetar à Constituição. Podem isso tudo - e nós sentir abjeção.

Jornalista

Os dias do Orçamento

Posted: 08 Sep 2020 03:47 AM PDT

«Até às próximas eleições parlamentares, cada orçamento vai contar com uma considerável dose de dramatismo político próprio das oportunidades perdidas. Se há exemplo de saídas de sendeiro, a condução política que o Governo fez deste orçamento é o melhor exemplo que se poderia encontrar nas actuais circunstâncias. A partir da altura em que o PS declarou que está fora de causa um entendimento político com o PSD, o orçamento transformou-se numa manifestação privilegiada das propostas que os partidos situados à esquerda do PS têm quanto ao que vêm defendendo desde que, pelo menos, os acordos de 2015 criaram um conjunto de oportunidades que prometiam condições da vida democrática bem melhores do que as que temos vivido nos últimos tempos.
Embora o orçamento acabe por ser aprovado com todos os avanços e recuos do Governo, cabe a vez ao BE e ao PCP tornarem as suas exigências condições para verem concretizadas grande parte das suas propostas, e pelas quais se têm batido, tanto nas palavras como nas acções. A verificarem-se recuos, eles só poderão ser fruto das condições próprias de uma negociação, mas em que nenhuma das partes é inferior à outra. Contudo, as negociações que se vão seguir com aqueles partidos irão decorrer, nas actuais circunstâncias, num ambiente próprio de uma troca de argumentos mais tenso do que o habitual, e deverão ser muito mais do que que um cerimonial já escrito e decidido.
As movimentações políticas que se têm vindo a assistir, com o Presidente da República, uma vez mais, a procurar influenciar o desfecho do que aos partidos políticos diz exclusivamente respeito, é prova de que os muitos milhões que o orçamento representa, somados aos milhões que Bruxelas decidiu colocar à disposição dos governos, são a causa de tanta turbulência política. Porque a razão principal para aproveitar as condições de aprovação deste orçamento é a satisfação de grande parte das necessidades que se têm mantido prisioneiras mais do acessório do que do fundamental, mais dos grandes interesses do que das condições de vida das pessoas, assistindo-se ao seu apodrecimento nos gabinetes dos ministérios. Toda esta situação tem responsáveis e um histórico político. São conhecidos e não vamos regressar a eles. Mas esses milhares de páginas de promessas não podem nem devem representar o argumento para tudo ficar na mesma.
O orçamento passou a ser, nas actuais circunstâncias, a prova da sinceridade com que as esquerdas se têm de apresentar aos eleitores. Por isso, cabe sobretudo ao PS dar os passos indispensáveis para que o orçamento para 2021 represente uma resposta ao tanto que há a fazer e que até agora se tem mantido na sombra das escolhas políticas. PS, BE e PCP continuam a representar a maioria eleitoral representada na Assembleia da República. Porém, é manifestamente insuficiente que o secretário-geral do PS mostre disponibilidade para replicar a aritmética de 2015. Porque, agora, já não se trata tanto de somar o número de deputados, e depois logo se vê, trata-se de dar a essa soma a qualidade programática que esteve deficitariamente presente na solução então encontrada. Agora trata-se de ir mais além, muito mais além, e o PS deve, por isso, mostrar que está disposto a abdicar das tradicionais cedências aos grandes interesses e virar-se para os milhares de trabalhadores que vivem do seu trabalho.
Encontrar soluções com aqueles empresários que contribuem para a riqueza nacional é bem diferente do que até agora tem sido a linha política do PS. Os empresários, quer pelo seu estatuto económico, quer pelo poder que detêm na qualidade de detentores dos mecanismos que têm limitado as margens por onde o rio deve passar, terão de desempenhar o seu papel social: geradores de riqueza para ser investida no bem-estar social. Esta deve ser uma das condições da solução política que o secretário-geral do PS afirma agora tanto desejar.»
Cipriano Justo

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Compromissos de esperança

Posted: 07 Sep 2020 03:54 AM PDT

«Os portugueses e o país beneficiarão muito se, no quadro da discussão do Orçamento do Estado para 2021 e para um horizonte mais amplo, o Partido Socialista (PS) e os partidos à sua Esquerda forem capazes de fixar, com respeito recíproco, as linhas vermelhas do posicionamento de cada um e, a partir daí, trabalharem propostas geradoras de esperança.

A responsabilidade por tal empreitada reparte-se por todos, mas ao PS, que é maioritário e Governo, cabe a fatia maior. E não haverá exercício de ilusionismo, encenação de ruturas, ou sacudidela de água do capote que o possa isentar dessa obrigação.

Escrevi, neste espaço, no dia 4 de outubro de 2015, dia das eleições para a Assembleia da República donde emergiu a tão importante solução política e de Governo que enchem anterior legislatura: "Não tenhamos medo dos debates, do conflito de posições, da necessidade de mais negociação e da criação de compromissos novos". Nessa altura esse exercício impunha-se porque eram precisos "passos inovadores para corresponder aos apelos dos cidadãos", submetidos a uma austeridade injusta e estéril. Porém, os problemas com que Portugal se depara hoje e as dificuldades com que a maioria das pessoas se debate são, infelizmente, de maior dimensão que em finais de 2015.

No plano mundial as dinâmicas em marcha aceleram desigualdades e aumentam a especulação financeira. Da União Europeia não virão apoios que correspondam à imensidão das necessidades de que o país carece. Por outro lado, nos últimos cinco anos a matriz da nossa economia não evoluiu. O desemprego vai ser tão ou mais grave que na anterior crise e é enorme o número de trabalhadores sem acesso a subsídio de desemprego. Estes factos e a continuação de uma proteção social frágil farão disparar a pobreza. No plano político nacional, a extrema-direita foi penetrando na sociedade e arrasta a Direita, no seu todo, para políticas mais conservadoras e retrógradas. Marcelo Rebelo de Sousa, que tem largas possibilidades de ser eleito para um segundo mandato, já iniciou as guinadas que por certo o situarão bem na Direita.

Um Governo de centrão, agindo concertado com uma Presidência dos afetos, constituiria, no quadro em que estamos e vamos viver, a solução política perfeita (porque adocicada) para impor brutais políticas de austeridade, de submissão das pessoas, de retrocesso, de enfraquecimento da democracia. É, pois, imperioso aumentar-se a exigência de convergências e compromissos entre as forças da Esquerda.

Espera-se, com confiança e para bem dos nossos interesses coletivos e da democracia, que a festa do Avante corra bem e se possa esvair, a partir de amanhã, a histeria (em grande parte anticomunista primária) que se desencadeou a pretexto da sua realização e que, entre outros efeitos, tem servido para secundarizar o debate dos temas políticos prementes. Para se proteger as pessoas e implementar a atividade económica urge reajustar condições e capacidades das escolas, reajustar e reforçar o Serviço Nacional de Saúde, estruturar garantias para as pequenas e médias empresas e gerar-lhes confiança, pôr em marcha políticas laborais e salariais que travem oportunismos de redução de salários ou de eliminação de direitos fundamentais.

Como se provou na anterior legislatura é pela Esquerda que se pode gerar esperança e confiança no futuro.»

Carvalho da Silva