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domingo, 20 de setembro de 2020

A hora das verdades

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 19/09/2020)

1 Agora, que a segunda vaga ou coisa semelhante já começou a abater-se sobre nós, vem aí o grande teste à capacidade de resistência de todos e, em particular, dos serviços de Saúde. Independentemente de não parecer haver ainda uma estratégia clara e preparada para fazer frente a este de há muito esperado novo assalto do coronavírus — e cujo planeamento cabe ao Ministério e à DGS —, começa também a perceber-se que há hospitais, centros de saúde e lares que se estão a preparar por si e outros que estão sentados à espera de receber instruções. É claro que os primeiros se vão aguentar melhor, pois, como canta o Chico Buarque, está provado que quem espera nunca alcança.

2 E quem, como eu, contestou a realização da Festa do “Avante!”, embora em versão menor, nas circunstâncias actuais, não pode deixar de se espantar revoltadamente com o desplante com que, pela calada da imprensa e de todos, 50 mil peregrinos rumaram a Fátima em 13 de Setembro. E, se isto foi assim numa data que não tem tradição de multidões em Fátima, é de esperar semelhante ou pior a 13 de Outubro, data com abundante tradição de multidões. Eu sei que entre todos os poderes se cozinhou uma lei de excepção à medida dos interesses do PCP e da Igreja Católica, de forma a deixar de fora as respectivas celebrações litúrgicas. Mas há que ter algum respeito por todos nós, todos os outros que acreditam mais na ciência do que na fé e a quem todos os dias é repetido que depende do comportamento colectivo a salvaguarda de todos. Ouvir a directora-geral da Saúde dizer simplesmente “não creio” e “não é expectável” que, nestas circunstâncias, se voltem a reunir 50 mil pessoas em Fátima só pode ser um acto de fé peregrina. Anda a polícia a dispersar ajuntamentos de 15 jovens e depois vemos uma multidão de dezenas de milhares a acotovelarem-se, abençoados por uma lei de excepção e protegidos pelo temor reverencial dos políticos!

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

3 De visita ao Parlamento, o presidente do Novo Banco logo seguido pelo seu financiador encartado — o presidente do Fundo de Resolução — desembaraçaram-se, sem problemas de maior, das perguntas que uns impreparados deputados lhes quiseram fazer. É sabido, ou devia ser sabido de há muito, que os banqueiros falam uma língua diferente, que requer intérpretes qualificados e isentos e algum conhecimento daquele mundo opaco em que é tão fácil fazer passar o inexplicável pela coisa mais natural do mundo — do mundo deles. Assim, enquanto António Ramalho se limitou a justificar os inabaláveis prejuízos anuais do banco — cuja conta final há-de reverter sobre os contribuintes — com a descoberta de que os activos do “banco bom”, afinal, não valiam nada e por isso é que têm vindo a ser vendidos a preços de estarrecer, já Luís Máximo dos Santos, o supervisor das operações, declarou não ser o Sherlock Holmes para saber a quem são vendidos os activos do NB, nomeadamente, se a partes relacionadas com os seus próprios accionistas — questão esta que, como é fácil de perceber, está longe de ser despicienda. E, ao contrário do que o próprio NB faz com os seus activos, livrando-se deles a qualquer preço, numa estratégia definida como de cut loss ou “limpeza”, já ele recomenda vivamente que o Estado não se atreva a fazer o mesmo com o NB, antes pelo contrário — que continue a pagar tudo até ao fim.

Após dois dias de “esclarecimentos”, eu, que não percebo nada de banca, juntei apenas mais uma perplexidade à minha ignorância: então o NB perde dinheiro porque o património que herdou do defunto BES — casas, terrenos, fábricas — valia, afinal, muito pouco? Mas é essa a actividade principal de um banco — vender património dos clientes falidos? E, quando ele acabar, viverá de quê?

4 É perfeitamente adequada e justa a proposta de Rui Rio de mudar o Tribunal Constitucional (TC) e o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para Coimbra. Seria um passo concreto no sentido da tão falada descentralização, apoiada da boca para fora por todos. Porém, a fraqueza da proposta está na sua justificação: porque, diz ele, grande parte ou a maior parte dos juízes do TC e do STJ são de Coimbra, a “cidade dos doutores”. Logo, haveria menos um obstáculo a considerar, que seria o incómodo pessoal para os venerandos conselheiros. E, assim o justificando, Rui Rio, sem querer, põe o dedo na ferida: é aqui que reside justamente a grande resistência à descentralização administrativa do país. O que mexe o Estado português raramente são os seus interesses próprios, o interesse público que ele devia servir, mas sim os interesses particulares dos que o servem. No caso concreto, os funcionários do Estado não estão onde interessa ao Estado que eles estejam, mas onde lhes interessa a eles estar. Por isso é que, entre os muitos exemplos que se poderia arrolar, os médicos, com lugar garantido no Estado, não querem ir para o Algarve, ainda que com condições melhores do que na Grande Lisboa ou no Grande Porto e ainda que o Algarve não seja propriamente um lugar desagradável para se viver e trabalhar.

Nunca mais me esqueci de uma frase inspirada de Jorge Sampaio quando era presidente da Câmara de Lisboa e tropeçou numa discussão sobre o “centralismo do Terreiro do Paço”, enfrentando os argumentos habituais: que tudo tinha de passar por Lisboa e pelo Terreiro do Paço, sede omnipresente de todo o poder, de que Lisboa não abria mão nem por nada... E Jorge Sampaio, então a contas com o desespero de não conseguir convencer nenhum ministério a desamparar a praça mais bonita de Lisboa, abriu os braços e respondeu: “Mas querem levar daqui o Terreiro do Paço? Por favor, levem-no!”

Não é só o TC e o STJ que poderiam, sem prejuízo algum do interesse público, ser deslocados de Lisboa ou outros organismos do Estado serem igualmente deslocados do Porto. Já não estamos no tempo da mala-posta ou sequer da “carreira” — embora, de facto, em termos ferroviários, ainda estejamos no dealbar do século XX, graças à grande visão estratégica de sucessivos governos e governantes. Mas temos as tais auto-estradas, a internet, as videoconferências e agora a moda do teletrabalho. Não falando de ministérios, são inúmeros os organismos do Estado que poderiam e deveriam ser deslocados para cidades de média dimensão, cidades universitárias, cidades com pólos industriais e infraestruturas capazes: secretarias de Estado, direcções-gerais, institutos, juntas, laboratórios, oficinas e por aí fora. E porque é que não são? Porque quem lá está não se quer mudar — lembrem-se da humilhantemente falhada tentativa de mudar o Infarmed de Lisboa para... o Porto. Eu sei que os funcionários têm direitos que não podem ser ignorados e que há vidas estabelecidas num local que não podem ser mudadas sem transtorno. Mas esse não é um obstáculo intransponível, há maneiras de o contornar, desde que haja vontade política de o fazer. Desde que haja verdadeira vontade de descentralizar o país — o que eu duvido.

A Administração Pública portuguesa está montada de forma em que a ascensão profissional arrasta os funcionários para onde está o poder — para Lisboa, sobretudo, e, em parte remanescente, para o Porto, com os casos à parte das administrações regionais. Para subir na pirâmide é preciso ir-se aproximando de Lisboa e do Porto — e, uma vez lá chegado, ninguém quer voltar à terrinha, nem que seja como chefe. E, para tornar o sistema inexpugnável, o mesmo esquema é reproduzido dentro da estrutura dos partidos do poder, que gerações de nomeações partidárias tornaram a espinha dorsal dos quadros superiores da Função Pública. Uns e outros confundem-se e não querem arredar o pé de onde estão. É por isso — e apenas por isso, não se iludam — que PS, PSD e PCP (que ocupa o que resta do poder do Estado) congeminaram a tal regionalização, um embuste vendido ao país como a única “descentralização” possível.

Não é verdade, é uma grossa mentira. Descentralizar é, de facto, aquilo que Rio propõe agora, embora em versão minimalista: deslocar centros de poder. E não só: como disse Mao, não basta dar uma cana de pesca a quem tem fome, é preciso também ensiná-lo a pescar. Dar força a uma região, dar-lhe futuro, é transferir para lá centros de poder e centros de criação de riqueza: empresas, universidades, centros de investigação e capital humano qualificado. Mas não é isso que os regionalistas querem fazer. O que eles querem fazer é dar ocupação aos seus quadros partidários que não encontram lugar no Terreiro do Paço ou na Avenida dos Aliados — por isso é que o mesmo Rio e Costa já trataram de escolher entre ambos os presidentes das Comissões de Coordenação Regio­nal (embrião das sonhadas regiões) que supostamente serão depois “eleitos” pelos autarcas. Eles querem dar-lhes uma legitimidade política própria e autónoma que servirá para criar problemas onde eles não existem e, a seguir, despejar-lhes sacos de dinheiro, com o qual não saberão o que fazer. Já vimos este filme no passado: acaba mal.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Não deixem aos populistas a conversa sobre a corrupção...

Posted: 19 Sep 2020 03:57 AM PDT

«… porque senão eles tornam-na num ataque contra a democracia, usando como pretexto a corrupção, que lhes é verdadeiramente indiferente. Mais do que nunca, temos que ter uma conversação rigorosa, dura, intransigente, mesmo impiedosa, sobre a corrupção. Por vários motivos: um, estrutural, porque a corrupção é endémica em Portugal; outro, de circunstância: porque vem aí da Europa o alimento da corrupção, milhares de milhões de euros. Já se vêem os bandos de pombos atrás do milho. Por último, porque nada mais fragiliza a democracia nos dias de hoje do que a corrupção num debate público envenenado pelas redes sociais, com a crise de toda a informação de qualidade, mediada e séria a ser substituída pelo clamor populista e pela crise colectiva da “educação para a cidadania” dos seus cultores...

Comecemos pelo carácter estrutural da corrupção em Portugal nos dias de hoje. O que é que se pode dizer quando temos enredados na justiça, arguidos, acusados, indiciados, toda a panóplia de graus de indiciação, um antigo primeiro-ministro, vários ex-ministros, vários secretários de Estado, autarcas, dirigentes da administração pública, militares de altas patentes, responsáveis policiais, juízes, procuradores, dirigentes desportivos de grandes clubes, empresários, gestores de topo, deputados, banqueiros, personalidades do jet-set, génios das tecnologias, uma multidão de medalhados, doutorados, homenageados, por aí adiante. Quem é que escapa?

O que aconteceu é que toda esta gente se encontrou uma ou mil vezes perante uma tentação a que não resistiu, ou que acolheu de braços tão abertos, que nem chega a ser tentação, felizes pelas oportunidades de ganhar dinheiro ilegalmente, de fugir aos impostos, de vender ou comprar um favor, de roubar com colarinho branquíssimo, de usar os seus conhecimentos nas altas esferas e os melhores conselheiros no mercado, para defraudar os “parvos” dos outros. Tiveram oportunidades, e criaram oportunidades, e é a facilidade com que isto aconteceu, e a fila enorme de gente importante que foi lá buscar o seu quinhão, que mostra que não é um problema de meia dúzia de corruptos, mas do “meio” que facilita o crime, ou seja, é estrutural e não conjuntural. Eles vivem no “meio” e são o “meio”.

Hoje isto é dinamite para a democracia. Já houve alturas em que não foi assim, ou não foi tão grave assim. Hoje, é. Os populistas usam a corrupção para atacar a democracia divulgando o mito de que regimes de ditadura como o de Salazar-Caetano não tinham corrupção. Completamente falso, e isso seria evidente se se tirasse a tampa da censura. Mas os políticos sérios em democracia ajudam a demagogia dos populistas a ter sucesso pela flacidez com que numa sociedade estruturalmente corrupta defrontam a corrupção. O problema da corrupção não vem da democracia, daí que o seu principal agente não seja sequer a chamada “classe política”, mas vem da sociedade, das debilidades do nosso tecido social, de uma burocracia assente em favores, da desigualdade de acesso ao poder e informação, e das várias promiscuidades entre poderes fácticos, como o contínuo que vai da construção civil aos clubes desportivos e terminando no poder político.

O problema é que os promíscuos não estão sozinhos, porque, se se pensa que o alarido populista significa verdadeira recusa deste tipo de actos, estão bem enganados. Como os culpados lembraram, faziam habitualmente este tipo de tráficos sem qualquer protesto, como se fosse normal e era reconhecido como normal. Até porque, como diz o ditado, o peixe apodrece pela cabeça e por isso, de cima a baixo, o sistema de cunhas, tráficos de influência, patrocinato e favores mergulha até ao fundo e, numa sociedade com este tipo de convívio com a pequena, a média e a grande corrupção, nunca haverá verdadeiro repúdio da corrupção a não ser nas bocas de café, agora transpostas para as redes sociais.

Uma das coisas que faz o populismo é centrar as suas acusações à corrupção “deles” e isolá-la como alvo principal, deixando de lado o meio em que ela é partilhada com “forças de segurança”, “agentes económicos”, “empresários de sucesso”, magistrados, protagonistas de um mundo em que o populismo não toca. Já viram alguma especial indignação com a corrupção nos grandes clubes quando não é o “nosso”? Como se as pessoas que vociferam nos cafés e nas redes não tivessem uma ideia de onde vem e para onde vão os muitos milhões e milhões que custam os jogadores.

Isto significa que não se pode fazer nada? Bem pelo contrário, pode até fazer-se muito, mas de um modo geral não é o que habitualmente se faz na resposta pavloviana à pressão populista. O populismo é contraproducente para combater a corrupção; pelo contrário, até a reforça. Não é aumentar as penas, não é diminuir as garantias do Estado de direito, não é oscilar entre a complacência e a intransigência. É pensar de uma ponta a outra a administração, das autarquias aos ministérios, é cortar radicalmente os milhares de pequenos poderes discricionários que por aí existem, obrigar a que sejam transparentes e escrutináveis muitos processos que nada justifica não serem públicos. Agora que vêm aí vários barris de dinheiro, é vital que tal se faça.

Mas é também dar o exemplo de que não se mistura “honra” com mundos muito pouco honrados. Por isso é que a participação do primeiro-ministro, do presidente da Câmara de Lisboa e de vários deputados num acto de promiscuidade com o poder fáctico do futebol é muito grave, porque significa indiferença face à corrupção, numa altura crítica do seu combate. Como não se retractaram, ficam com uma mancha.»

José Pacheco Pereira

sábado, 19 de setembro de 2020

Israel entra no segundo confinamento sob protestos

De  euronews  •  Últimas notícias: 18/09/2020 - 13:24

Israel entra no segundo confinamento sob protestos

Direitos de autor JACK GUEZ/AFP or licensors

Centenas de pessoas protestaram contra o novo confinamento antipandemia que começa esta sexta-feira, em Israel.

O primeiro-ministro do país admitiu que as restrições são necessárias e que podem vir a ser mais apertadas nas próximas semanas caso o número de novos contágios não pare de crescer.

Benjamin Netanyahu diz "não ter alternativa" em relação ao segundo confinamento que entra agora em vigor. O primeiro-ministro do país referiu o caso da Austrália como um exemplo de como a quarentena deu resultado e disse acreditar que "os restantes países que lutam contra a covid-19 vão ter que seguir as mesmas medidas".

A partir desta sexta-feira, vários negócios fecham portas e grande parte da população fica em casa, de quarentena. Medidas que já tinham sido aplicadas na primavera para conter o o novo coronavírus.

Desde o início do surto, morreram em Israel 1.163 pessoas infetadas com covid-19 e foram registados 172 mil positivos.

A lista de Vieira: da tragédia à farsa em cinco dias

Posted: 18 Sep 2020 03:59 AM PDT

«Eu sei que é suposto a História dar-se primeiro como tragédia e repetir-se depois como farsa, mas que diabo, ninguém me tinha dito que seria tão rápido. Na segunda-feira caprichei a escrever sobre a inclusão de António Costa na lista da Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira como tragédia shakespeariana, com punhaladas e discursos grandiloquentes, e eis que cinco dias volvidos tudo se desfaz em farsa, com Luís Filipe Vieira a tirar inopinadamente da sua lista não só António Costa como os políticos que o tinham decidido honrar.

A tentação seria repetir também a dose, e em vez da tragédia chamada Júlio César, que me serviu de mote na segunda, optar agora por uma farsa, talvez Comédia de Enganos. Mas não vale a pena. Não há nada de mais elaborado a dizer sobre esta reviravolta da história do que notar que a emenda conseguiu ficar ainda pior do que o soneto. Ou seja, os titulares de cargos públicos querem honrar Vieira, mas é Vieira a tirá-los da lista como se eles fossem desonrosos. É o mundo ao contrário!

Tendo em conta o coro de críticas à mistura da política com o futebol num tempo em que sobre Luís Filipe Vieira impendem suspeitas de interferência com a justiça, o que se esperaria seria uma de duas coisas. Ou António Costa (porque é principalmente dele que se trata, enquanto chefe do poder executivo) mantinha a sua posição de que estar naquela lista fazia parte de uma parte da sua vida enquanto adepto de futebol que é absolutamente irrelevante para a política, pese embora a contradição aparente com o dever de reserva que ele recomenda aos ministros. Ou então António Costa tomaria em conta as críticas que lhe foram feitas e, dando-lhes razão no fundo ou aceitando os seus argumentos na forma, diria que tinha decidido retirar o seu nome da lista.

O que acabou por acontecer, não sendo nenhuma dessas duas opções, pode parecer à primeira vista ter isentado o primeiro-ministro de ter de fazer uma escolha, ainda para mais quando o Presidente da República já tinha anunciado que este seria um tema da conversa semanal entre ambos. O assunto parece assim encerrado, mas a verdade é que deixa um gosto amargo, porque é precisamente ao primeiro-ministro que compete tomar este tipo de escolhas, para o bem e para o mal. Ao retirar com pouca cerimónia os titulares de cargos públicos da sua lista de honra, Vieira acaba por reforçar a ideia de que é o futebol que manda nisto tudo e que são os presidentes de clube os únicos a poderem verdadeiramente tomar decisões, nos tempos que correm, sem temerem consequências por parte da opinião pública. Mesmo aí, Vieira teria podido tomar uma atitude mais cívica, e humilde, declarando publicamente que lamentava a situação criada e que embora agradecesse a disponibilidade dos titulares de cargos públicos em causa, os desejava dispensar do compromisso que eles tinham assumido. Mas as boas maneiras parecem não fazer parte do acervo do presidente de clube de futebol. E foi assim que, tratando o chefe de governo como um daqueles treinadores a quem se dá uma chicotada psicológica dias depois de se lhe ter demonstrado confiança, Vieira acabou por pôr e dispor das pessoas que o tinham querido honrar com os seus nomes.

Se este episódio já revelava uma estranha ausência do mais simples tato político, agora ele acaba por ilustrar uma problemática incompreensão dos valores republicanos. Não é, nunca por nunca ser, um presidente de clube de futebol que “despede” um primeiro-ministro, nem que seja da sua comissão de honra. Se António Costa foi surpreendido por esta decisão de Vieira, é mau. Se de alguma forma sabia dela antes, é pior, porque nesse caso teria aceitado esta menorização do cargo que representa. Prefiro então pensar que tenha sido exclusivamente Luís Filipe Vieira a tratar os seus apoiantes como objetos, assim como trata jogadores de futebol ou treinadores ou, quem sabe, juízes. Mas mesmo assim isso diz muito sobre o tipo de figuras deste mundo do futebol que as pessoas que faziam e fazem parte da comissão de honra dele estão a honrar com os seus nomes. Eles emprestaram-lhe honra, ele retirou-lhes dignidade.

Para onde quer que nos viremos, tudo isto é triste, tudo isto existe, mas tudo isto é mais do que fado — ou futebol. Para um país, ser farsa não deixa de ser também trágico à sua maneira.»

Rui Tavares

A vacina não vem já, vamos começar a pensar nos nossos filhos?

Posted: 17 Sep 2020 03:38 AM PDT

«Não sou médico nem cientista. Não faço a mais pálida ideia da real probabilidade de termos, a curto ou médio prazo, uma vacina contra o coronavírus eficaz e ministrada à escala global. O máximo que posso expressar é o meu cepticismo. E acho que é com base nesta cautela que os políticos devem gerir esta pandemia.

A suspensão dos testes da vacina da farmacêutica AstraZeneca ajudou a temperar esperanças de curto-prazo. Temo, aliás, que com uma opinião pública ansiosa por boas notícias e um poder político ansioso por as dar, se façam por aí grande e inúteis negócios. Por mim, preparo-me para viver algum tempo com este vírus e sem vacina. O que dizer que me preparo para não aceitar medidas que não sejam sustentáveis por um tempo razoável. E que temo a ansiedade de políticos e médicos indisponíveis para ouvir especialistas de outras áreas, que lhes expliquem os efeitos perigosos de muitas das medidas que os primeiros impõem por pressão dos segundos.

Ao ouvir políticos franceses e espanhóis aventar a possibilidade de mais um período de confinamento, fica claro que não estamos preparados para lidar com os perigos das epidemias e em nome de uma falsa segurança estamos e totalmente disponíveis para o suicídio coletivo. E o problema é que gastámos todos os cartuchos logo na primeira fase. O futuro dirá se fizemos bem ou mal e não estarei aqui para cobrar a quem teve de decidir com base no pouco que se sabia. Os suecos decidiram de forma diferente e foram trucidados. No fim saberemos quem tinha razão.

Temo os efeitos psicológicos e psiquiátricos do medo induzido de forma persistente e incisiva. Temo os efeitos sociais e políticos que destruam aquilo pelo qual tantos morreram. Temo as vítimas colaterais de outras doenças e a lenta e irreversível destruição de um Serviço Nacional de Saúde obcecado pelo vírus. Temo a destruição de relações laborais minimamente decentes. Temo os efeitos duradouros na economia. E temo os sacrifícios que exigimos a uma geração que se está a formar agora para uma vida inteira a que tem direito.

Se das milhares de tarefas que temos pela frente tivesse de escolher duas, elas seriam o investimento nos lares, para proteger o principal grupo de risco onde ele se encontra – e mesmo assim sabemos que não evitaremos mortes inevitáveis a curto prazo –, e a abertura sem mais uma interrupção das escolas. Com aulas presenciais. Esta semana começa o derradeiro teste. Tivemos meses para preparar estes dias. Veremos se estamos disponíveis para compensar o que tirámos, nestes meses, aos nossos filhos. O que me chega é pouco mais do que mudanças de horários. Pouco, muito pouco.»

Daniel Oliveira