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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A 75ª Assembleia Geral da ONU no ano pandêmico de 2020

UN Photo/Eskinder Debebe

Esse primeiro dia da Assembleia Geral da ONU de 2020, aos 75 anos da entidade, deixou uma sensação mista de mais do mesmo e desesperança, muito particular desse ano pandêmico. Embates que já deveriam estar aposentados, como entre o unilateralismo e a cooperação multilateral, o negacionismo e o valor da ciência, a autocomiseração e a solidariedade internacional, andam mais em voga do que se suporia há algumas décadas

  • 23 Setembro, 2020

    O ano de 2020 veio para provar que a humanidade precisa mesmo de suas nações unidas, caso queira sobreviver às intempéries, sejam elas previsíveis ou não. Não fosse a pandemia do novo coronavírus, os problemas ambientais e econômicos já seriam de grande monta. Mas os desígnios, por vezes insondáveis, da natureza trouxeram um desafio a mais para um tempo já no mínimo estranho. A difusão de um vírus letal e altamente infeccioso, cuja onda de contágio abraçou o planeta de leste a oeste, deu ao ano de 2020 os contornos inesquecíveis da primeira pandemia do século XXI. Como cada líder nacional lidou com a crise será lembrado por décadas, para tragédia dos cloroquiners e negacionistas em geral.

Foi a primeira vez, nos 75 anos de história da ONU, que os líderes dos países membros, hoje 193 (eram 51 em 1946), fizeram seus discursos gravados previamente e não sentiram os olhos do mundo observando suas performances ao vivo no púlpito do salão nobre do Edifício-Sede da ONU, projetado por Niemeyer e Corbusier ao final dos anos 1940. Na época da construção do edifício, entre os 50 projetos concorrentes, o de Niemeyer, que levava o número 32, foi considerado o “mais interessante de todos” e que, por generosidade do brasileiro, incorporou em sua versão final as ideias do projeto 23 do francês Corbusier. Generoso e interessante são adjetivos difíceis de serem empregados, por exemplo, ao discurso do representante brasileiro que esteve hoje na abertura da 75ª assembleia. Se houve algo de interessante no amontoado de palavras mal lidas por Bolsonaro, foi sua capacidade de proferir inverdades.

Na verdade, o bendito discurso deve ter causado antes de tudo uma boa diversão, pois Bolsonaro já se transformou nesse personagem tragicômico que vai se consolidando em uma espécie de lugar comum em nível global. “Não seja um bolsonaro” é uma expressão que muito em breve não será estranha a muitos ouvidos. Você será considerado “um bolsonaro” se trouxer em suas palavras e expressões traços de misoginia, misturados com homofobia, ignorância, subserviência aos americanos, inverdades, negacionismo científico e pinceladas de falsa religiosidade professada junto a impropérios de baixo calão. Se você for ao aniversário de 75 anos de alguém e não citar a data e nem o aniversariante, você estará sendo “bem bolsonaro”. Como hoje, na comemoração dos 75 anos da ONU, em que o presidente brasileiro não citou a efeméride e nem a dona da festa.

Se você atribui os incêndios na Amazônia e no Pantanal aos índios e caboclos você também está sendo “bem bolsonaro” e por aí vai: se você diz que combateu bem uma pandemia que matou 140 mil pessoas; se você diz que as queimadas nas florestas são inevitáveis; se você diz que os incêndios do Pantanal são semelhantes aos da Califórnia; se você diz que o Brasil é um país cristão e conservador, abstraindo as demais denominações religiosas, em especial as de matriz africana; se você diz que neste país há prevalência de direitos humanos; se você diz que Trump tem um plano de paz para a Palestina; se você diz que seu país está cooperando com o povo venezuelano e todos esses falsos enunciados hoje declamados bolsonaristicamente, você é um “bom bolsonaro”.

Mas, depois do show “made in Brazil”, veio o duelo de titãs já esperando na 75ª. AGNU, o embate entre EUA e China. Antes, o secretário-geral António Guterres já tinha dado a deixa ao dizer que “estamos em nosso 1945 particular” e “precisamos evitar uma nova guerra fria”. Em seu discurso, Trump acusou a China de espalhar o coronavírus, ao que a China respondeu, através de seu embaixador na ONU, dizendo que os EUA estão espalhando um “vírus político”.  Em resumo, o discurso de Trump foi primário, pintou a si mesmo como benevolente e responsável, ao citar o acordo entre os Emirados Árabes Unidos e Israel, por exemplo, e aos chineses como os agressores da humanidade a serem contidos, junto com a OMS, segundo ele instrumentalizada pelo país asiático. Por sua vez, Xi Jinping fez seu discurso sem citar os EUA diretamente. Falou de cooperação global e respostas humanitárias à crise do coronavírus. A fala do presidente chinês destoou por se encaixar propriamente em um encontro multilateral, com um chamado à mútua cooperação entre as nações em tempos de grandes desafios, enquanto Trump e Bolsonaro se ativeram à autocomiseração e autopromoção.

Esse primeiro dia da Assembleia Geral da ONU de 2020, aos 75 anos da entidade, deixou uma sensação mista de mais do mesmo e desesperança, muito particular desse ano pandêmico. Embates que já deveriam estar aposentados, como entre o unilateralismo e a cooperação multilateral, o negacionismo e o valor da ciência, a autocomiseração e a solidariedade internacional, andam mais em voga do que se suporia há algumas décadas. A fragmentação do Brics e da unidade sul-sul, puxada há pouco tempo por uma América Latina de amplas forças progressistas, ante o imperialismo do norte tem impacto perceptível no concerto das nações. Os efeitos da tragédia biológica e dos sacrifícios econômicos e sociais impostos, pari passu com o necessário distanciamento social que desumaniza as relações, parecem ter minado em parte a energia humana necessária neste momento de exigida capacidade de reconstrução. Em especial para os já desguarnecidos do Estado e socialmente marginalizados. Para enfrentar o imperialismo será necessário resgatar essa energia dissipada e reorganizar uma contraofensiva de força incomum na defesa do valor universal da vida, da paz e da igualdade.

Como disse Fidel, em um de seus memoráveis discursos na sede da ONU:

para que serve a consciência humana? Para que serve a ONU? Para que serve o mundo? Não se pode falar de paz em nome das dezenas de milhões de seres humanos que morrem todos os anos de fome ou doenças curáveis em todo o mundo. Não se pode falar de paz, em nome de 900 milhões de analfabetos. A exploração de países pobres por países ricos deve cessar. Dirijo-me às nações ricas para que contribuam. Dirijo-me aos países pobres para que distribuam. Basta já de palavras. Faltam ações”.


por Ana Prestes, Cientista social. Mestre e doutora em Ciência Política pela UFMG   |    Texto original em português do Brasil

O colapso climático contado pelo capitalismo europeu

por estatuadesal

(João Camargo, in Expresso Diário, 22/09/2020)

A apresentação do Estado da União da presidente da Comissão Europeia na semana passada, apesar de aclamada por muitos euroingénuos, não provocou em Portugal grandes reacções. De quem esperava um plano, o famoso “European Green Deal”, que respondesse à crise climática, apareceu o que é costume: optimismo tecnológico irrestrito, ilusionismo e contas erradas. Cantar vitória no campo da crise climática quando as contas são cortar 55% das emissões de 1999 até 2030 é rejeitar a ciência.

Não é seguramente fácil ter de fazer o diagnóstico calamitoso da economia capitalista europeia (mundial na verdade), da degradação ambiental, social e política e, ainda assim, anunciar uma sucessão de iniciativas que vão ultrapassar estas as dificuldades e fazer florescer o lucro de privados sem destruir os estados sociais, quem trabalha e o ambiente do qual dependemos. No entanto, foi esse jogo de luzes que Ursula von de Leyden teve que montar na semana passada, para prometer aquela que foi chamada de “ambiciosa” agenda para o pós-COVID europeu. Sendo um longo discurso, muito de interessante foi dito, como o pedido em 2020 que todos os Estados passem a ter salários mínimos, a esperança que no futuro os Estados cumpram leis (apesar das várias experiências fascizantes) ou a promessa da União dos Mercados de Capitais e a União Bancária para transformar a União Europeia no casino capitalista agora, quando os Estados terão de resgatar a quase totalidade da actividade económica. Cada vez mais o discurso público político europeu é expressão de alienação absoluta, mas é de destacar a audácia do pensamento irracional no que diz respeito ao combate às alterações climáticas.

Segundo van der Leyden, “temos mais provas de que o é bom para o clima é bom para os negócios e é bom para nós todos”. A frase, uma sucessão de absurdos, é a formulação necessária para conseguir chegar ao fim do discurso historicamente alienado. É uma frase que faz tanto sentido como dizer que “temos mais provas de que o que é bom para um condenado à morte é bom para um carrasco e para a multidão que assiste à execução”.

A presidente da Comissão afirmou que o Negócio Verde Europeu é o plano para a transformação necessária para ter mais espaços verdes, ar limpo e saúde mental e física. No entanto, o aprofundar da explicação tornou bastante claro que, em termos climáticos, o plano não responde sequer ao previsto no Acordo de Paris: travar o aumento de temperatura abaixo de 2ªC, idealmente nos 1,5ºC, até 2100.

As contas são relativamente simples: segundo relatório de 2018 do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas, é necessário cortar 50% das emissões globais de gases com efeito de estufa até 2030, comparando com o ano de 2018. O que nos propõe então van der Leyden?

- Neutralidade de carbono até 2050. Porquê focar em cortar emissões, quando se pode criar um pacote em que os sumidouros de carbono aparecem magicamente para “anular” as emissões (através da tecnologia de captura e armazenamento de carbono que não funciona, de plantações florestais por todo o lado como se os incêndios não cubrissem cada vez maiores áreas e até - isto foi mesmo dito no discurso - a construção civil tornar-se num sumidouro de carbono), e até 2050, porque as datas não contam para nada e 2050 é mais bonito que 2030.

- Cortar 55% das emissões de gases com efeito de estufa na União Europeia até 2030. Este parecia ser o grande trunfo, e até parece à primeira vista ser mais ambicioso do que a ciência exige. No entanto, há malabarismo. A UE promete cortar 55% das emissões usando como ano base 1990 e não 2018 ou 2020. Como as emissões internas baixaram 25% desde 1990, o truque só serve para enganar quem quer ser enganado. Usar percentagens em vez de valores concretos de emissões é uma excelente maneira de criar as confusões necessárias para não travar o colapso. Em 2030 a União Europeia deve poder emitir perto de 0,9MT de dióxido de carbono equivalente, mas a proposta de van der Leyden é emitir 2,5MT, uma erro de 170% e a composição química da atmosfera não terá flexibilidade política para negociações. Além disso, se justiça histórica significasse alguma coisa para a Comissão Europeia, teriam de ser cortadas muito mais do que os 50%, já que a responsabilidade histórica da Europa pela emissão de gases com efeito de estufa é muito superior à da grande maioria dos países do mundo.

- Que o combate às alterações climáticas se torne um hub para todos os entusiasmos tecnopositivistas (partilhados pelo governo português), com tecnologias como o hidrogénio a ser apresentadas como panaceias de que é possível manter o capitalismo e travar o colapso climático. Como apogeu, descobrimos que uma fatia do dinheiro do Negócio Verde Europeu, cujo principal objectivo é a descarbonização, irá para o gás, outro combustível fóssil que recebe uma linha de crédito público para acelerar ainda mais a corrida para o precipício.

A Comissão Europeia confirma uma vez mais que usa a acção climática como ferramenta de propaganda política para agradar a progressistas distraídos e cativar novos empreendedores e investidores. As meias medidas na crise climática são inúteis e, uma vez mais, a Comissão Europeia mostra como as instituições da elite do capitalismo mundial são o maior entrave à acção climática e à justiça social que podem travar o colapso climático. Por isso mesmo, importa recordar que dia 25 de Setembro as greves climáticas voltarão às ruas por todo o mundo, contestando esta impotência e contrapondo a sua força social, que no dia 5 de Outubro, em Portugal, os Anticorpos organizam uma acção de desobediência civil de massas e que, em Novembro será assinado na Escócia e por todo o mundo o Acordo de Glasgow, que pretende levar o movimento global pela justiça climática para uma nova etapa organizativa. Outra história tem de ser contada.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Liberdade vigiada ou o "novo normal"

Posted: 21 Sep 2020 03:59 AM PDT

Liberdade vigiada ou o "novo normal" «Nesses dias, quando ligávamos a televisão, surgia no canto superior ou em rodapé a injunção maior: Fique em casa! Qualquer que fosse a dimensão do nosso medo, para aqueles que tinham habitação com condições mínimas de vida e trabalho não essencial à sobrevivência comum abria-se um tempo diferente dentro do tempo.

Essa suspensão da ordem do tempo, da sua regulação e das suas rotinas, das suas imposições e da sua previsibilidade, trouxe-nos um sentimento que acompanha os grandes momentos de crise, as guerras como as catástrofes, a angústia de perder as referências do quotidiano e ficar de repente sozinho em frente de si próprio. O famoso paradoxo de Sartre "nunca fomos tão livres como sob a ocupação alemã" descreve essa situação em que, num mundo que não oferece mais qualquer segura referência que nos enquadre, somos obrigados nós próprios a assumir a liberdade das nossas escolhas de vida e a plena responsabilidade por essas escolhas. Há nesses momentos uma angústia pela perda de identidade misturada com uma estranha sensação de férias.

Muitos tiveram de viver com o seu núcleo familiar numa coexistência estranha, porque permanente e incontornável; muitos tiveram de enfrentar a mais dura e desumana solidão. A subsistência para muitos estava longe de estar assegurada. A vida endurecia dia após dia.

Nesse momento tornou-se evidente para todos que não era a mão invisível dos mercados que nos ia salvar, mas que era antes o Estado, o mais frio de todos os monstros frios, no dizer de Nietzsche, que poderia fazer alguma coisa por nós.

E fez. Bem ou mal, convictos ou em negação, muitas vezes mais em cacofonia do que em solidariedade, os Estados foram assumindo responsabilidades e construindo respostas. Até a União Europeia conseguiu moderar temporariamente o apetite voraz dos chamados "frugais" pelos juros da dívida futura e abrir caminho para a criação de novos mecanismos de cooperação. Como em todas as grandes crises, não foi através da fábula das abelhas de Mandeville (cada um prossegue o seu interesse privado e é na conjugação desses interesses que se estabelece o interesse comum) que se pôde enfrentar a situação, mas sim através dos meios, militares ou financeiros, materiais ou humanos, de que um Estado ou um conjunto de Estados possa dispor.

Se, como defendia a Sra. Thatcher, não existisse such a thing as a society, o mundo seria para os vírus e não para nós.

Mas porque parece que vamos passar a viver numa liberdade condicionada a que chamam o novo normal, é preciso que os Estados não esqueçam até que ponto estão a desfigurar e a desnaturar a vida humana com a aplicação cega das regras sanitárias. A revolta decorrente dessa situação antinatural, em que só a aglomeração no trabalho é legítima e é ilícita a festa, irá constituir um perigosíssimo risco para a coesão social, que não pode ser subestimado.

Só se pode desejar que, como achava Descartes com algum otimismo, o bom senso seja realmente a qualidade mais bem partilhada pelas gentes.»

Luís Filipe Castro Mendes

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Emergência exige negociação

Posted: 20 Sep 2020 03:15 AM PDT

«No contexto da gestão dos impactos da pandemia e em nome de políticas de emergência que facilitem a reorganização das empresas e serviços - no necessário incremento da retoma de atividades - o Governo vem impondo medidas de legislação laboral que estão a empurrar os sindicatos para fora do sistema socioeconómico e a aumentar a exploração dos trabalhadores.

Muito do trabalho essencial para o normal funcionamento da sociedade não tem o mínimo de segurança e é mal remunerado, mas isso não está a provocar um combate efetivo à precariedade e aos baixos salários; reconhece-se que o trabalho é central na sociedade, mas não se promove a sua dignificação e valorização. As turbulências e impactos imediatos da pandemia estão a ser aproveitados para justificar despedimentos, em muitos casos de forma oportunista, para agravar escandalosamente desigualdades, para impor unilateralmente formas de prestação de trabalho mais desprotegidas.

O Governo andou muito mal ao avançar com um diploma que possibilita às empresas promoverem unilateralmente (a consulta prévia é um simulacro) significativas alterações nos horários e organização dos períodos de trabalho das empresas das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. O tempo pertence às pessoas, que têm o direito e o dever de organizar a vida em todas as suas dimensões. E o princípio da conciliação do trabalho com a vida familiar e pessoal deve ser salvaguardado.

O Governo devia ter negociado com os sindicatos o diploma e, acima de tudo, tem o dever de garantir que as alterações a introduzir, em cada setor ou empresa, sejam obrigatoriamente negociadas. Todos temos consciência de vivermos tempos que exigem medidas excecionais e por vezes urgentes. Isso não dispensa o respeito pela efetividade da negociação. Pelo contrário, é nestes tempos difíceis e propícios ao aumento de vulnerabilidades que é preciso demonstrar a importância da partilha de responsabilidades e implementar compromissos equilibrados.

Quando os sindicatos são esquecidos, desvalorizados, marginalizados na elaboração da legislação laboral e lhes é diminuído o direito à negociação coletiva, a sociedade toda perde o contributo de competências e poderes estruturais e institucionais determinantes para proteger os trabalhadores, para induzir fatores de equilíbrio na reorganização das empresas e para influenciar positivamente a gestão, até tornando-a menos permeável a compadrios e corrupção. O Governo tem a obrigação de conhecer e assumir tais factos.

O Plano de Recuperação Económica que o Governo tem de apresentar na União Europeia, e de que o país precisa, corporizará inúmeros projetos de investimento estruturantes, envolvendo empresas privadas e subsetores do Estado. Em todo este processo os sindicatos não podem deixar de ser chamados a participar e têm de preparar-se para isso. As opções quantitativas e qualitativas quanto ao emprego ou as condições sociais inerentes ao trabalho digno devem estar sobre a mesa desde o primeiro momento das discussões.

Fala-se muito da digitalização da economia e da Administração Pública que vai acontecer, mas esquece-se que os instrumentos de trabalho devem ser negociados quando são introduzidos. O mesmo se passa com o incremento do teletrabalho, que traz problemas novos para as relações de trabalho a necessitarem de verdadeira negociação.»

Carvalho da Silva

domingo, 20 de setembro de 2020

Mais 4 anos de Trump serão fatais para a ordem constitucional americana

Afirma no livro que os EUA e o mundo não aguentam mais quatro anos de Donald Trump. Qual é o grande problema?
Os problemas das organizações internacionais são anteriores a Trump. O que ele faz de uma maneira abrupta é esvaziá-las financeira e politicamente. Para as recuperar é preciso reinvestir e dar-lhes capital político. Joe Biden tem essa predisposição mas vai precisar de um alinhamento com as bancadas do Congresso. Diria que mais quatro anos de Trump podem ser fatais para a ordem constitucional americana. Ela já está em choque, com a arbitrariedade do poder, com um presidente que incita quase à violência, que acomoda todo o tipo de anarquia, desde milícias a entrar em parlamentos estaduais e a fazer policiamento nas ruas, não condena toda a violência, só parte. Olhamos para a Casa Branca como um sítio que em teoria faça um discurso de paz social e não da guerra. Ele é exatamente o contrário, como Bolsonaro. Essa paz social, que não existe, morre de vez com mais quatro anos. Como o Partido Republicano neste momento não existe, é um culto, se vencer outra vez e garantir o Senado implica uma prepotência e uma cegueira no sistema que vai inviabilizar pontes com os democratas, quando elas são necessárias para qualquer pacote financeiro estancar a crise que se vive. Depois, vencendo, tenderá a fazer uma caça às bruxas brutal, metendo o pé em cima das oposições, seja os media, seja parlamentares democratas. Tem um fundo de autoritarismo que, se pudesse, fazia o que outros protoditadores fazem: dar um golpe na Constituição. Não estou a dizer que tem condições para isso, mas que teria vontade, que é do mesmo calibre. Isso é que é preocupante. Para nós também há uma grande pressão nas nossas democracias, que se estão a adaptar ao novo exercício do poder, com o mesmo tipo de narrativa. As tiradas de André Ventura surgem porque há uma legitimação internacional vinda do Brasil ou dos Estados Unidos para este tipo de retórica, é uma receita de sucesso. Mas precisa ser travada porque, quanto mais não fosse, a pandemia provou que estas pessoas com este tipo de exercício de poder são nefastas. Não é por acaso que os Estados Unidos e o Brasil estão no topo das infeções e das mortes.


Bernardo Pires de Lima