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sábado, 3 de outubro de 2020

Trump, o touro enraivecido

Posted: 01 Oct 2020 03:34 AM PDT

«Ao contrário do que os media logo opinaram, em uníssono e usando o mesmo adjetivo, caótico, o debate entre Trump e Biden autorizou pelo menos duas conclusões. A primeira é simples, os jornalistas estão e estarão mal equipados para lidar um touro como Trump. Falta-lhes o aguilhão, a vara para tanger bois. A segunda é ainda mais simples, os debates de Trump nunca são ou serão sobre políticas e sim sobre propaganda, diversão e insulto. Um debate é uma troca de ideias, de propostas e de argumentos e Trump é escasso em todos estes bens. O arsenal palavroso dele é um amálgama de ofensas, provocações e afirmações de potestade, quase todas falsas. Assim, o respeito está ausente e o caos garantido, e caos é o pântano onde floresce esta planta carnívora.

A campanha de Trump tinha preparado um panfleto onde proclamava que Trump tinha debatido o suficiente com Biden e acabava por ali. O problema? O panfleto foi solto antes do debate, ou seja, nada tinha a ver com o resultado da ação. Em Trump, nada tem a ver com o resultado da ação e sim com a perceção do que ele deseja ser o resultado da ação, repetido à exaustão e ventilado na plataforma de eleição dos trolls, o Twitter. O debate não foi um debate mais foi aquilo que Trump conhece, usa e abusa, a televisão do formato reality show. Neste caso, abusou. Em quantos votos isso o pode prejudicar? Provavelmente, poucos. O Trump com quatro anos de palco e de Casa Branca em cima não é o mesmo da campanha de 2016, e os eleitores dele também não são os mesmos. Os idólatras estão mais entrincheirados.

Trump está a lutar pela sobrevivência, pessoal e a do grupo económico com a marca, e usará todos os truques do gangsterismo para escapar ileso em caso de uma vitória de Joe Biden. Ilegalidades, intimidação, usurpação de poder, incitamento à violência, negação das evidências, manipulação distribuída pelas plataformas, do Twitter à imprescindível Fox News, e um rol de mentiras e factos negados, nada ficará de fora do arsenal Trump, e este arsenal não é político nem integra políticas. Querer retirar da torrente de lama uma pedra preciosa é exercício inútil. É como argumentar contra Bashar al-Assad, o presidente da Síria, quando ele negava o uso de armas químicas. Assad decidira lutar pela sobrevivência usando as armas proibidas e, num terreno menos sangrento, Trump luta pela sobrevivência usando as armas proibidas pelo civismo da polis. Quando ele mencionou os Proud Boys, um grupo de supremacistas brancos de extrema-direita, não foi, ao contrário do que disseram alguns jornalistas, para os absolver por não os condenar. Foi para os incitar à violência armada, avisando-os para se prepararem. A subtileza é importante. Os Proud Boys celebraram.

Se a eleição correr mal a Trump, não hesitará em atiçar as milícias da igreja de fiéis, e em desafiar a “lei e ordem”. Porque não só acha que pode ditar a lei e a ordem, como sabe que caso Biden ganhe, o grupo Trump estará condenado a anos no banco dos réus, e Trump e filhos gastarão os lucros inflacionados que nunca tiveram, mais uma cortina de fumo e marketing, em advogados e peritos legalistas. E nem vamos falar do crime de traição à pátria, que os serviços secretos guardam com prudência, decerto em camadas de encriptação. Ou negociará um perdão com os democratas, o que começa a ser uma possibilidade remota dada a acrimónia. Mas, se a guerra civil for uma ameaça, os democratas não hesitarão em aplacar o touro enraivecido.

Em última análise, Trump negociaria um retorno ao seu meio de origem, a televisão, e certamente a Fox News e o sr. Murdoch o contratariam para continuar a disparar flechas envenenadas para cima de uma Administração democrata. Mesmo ganhando a Casa Branca, sem o Senado ser retirado ao Partido Republicano, a democracia americana continua em risco de vida.

Assim o tem repetido Thomas Friedman, o colunista do “The New York Times” e um dos raros jornalistas equipados para lidar o touro. No “debate”, entre aspas, Chris Wallace foi massacrado pela boçalidade de Trump, e acabou, como sempre acontece aos jornalistas neste tipo de debates, a ser o bode expiatório da noite. Retirar o microfone ao Presidente, como alguns sugeriram? Seria um atentado à liberdade de expressão, esse elástico que estica até ao infinito, e um gesto que daria a Trump a oportunidade para se armar em vítima.

E, claro, a obsessão jornalística com a imparcialidade e a neutralidade, fez com que logo a seguir ao debate os títulos online tentassem fazer equivaler o touro desembestado a um político normal. Os primeiros títulos tentavam também responsabilizar Biden pelo desastre e colaram-lhe a frase do “palhaço”. Biden chamou palhaço a Trump, uma ofensa onde os únicos ofendidos seriam os palhaços. A equivalência moral dos dois candidatos é uma falsa premissa que conduz a falsas conclusões. Às primeiras sondagens sobre quem ganhou e quem perdeu, igualmente inúteis para virarem o eleitorado como as eleições de 2016 demonstraram, os títulos online começaram a mudar. Sobretudo no “Financial Times”, que parecia acusar Biden de ter contribuído para um debate “mal-educado” ou “sem maneiras”. O título foi logo substituído pelo adjetivo “caótico”. O que o adjetivo não diz, e omite, é que o caos tem um único criador, e não dois. Trump é o caos, e não é um caos criativo. A propaganda não é política, mas é uma arma política eficaz, perguntem aos totalitaristas e autocratas, perguntem à história de todas as ditaduras.

Ao cabo de quatro anos de desordem, Trump continua a ser um magnete mediático. Quatro anos em que a CNN se transformou numa plataforma de Trump por oposição, quatro anos de Trump bashing em vez de informação clara e factual, e de igualdade de tratamento e tempo de antena aos dois partidos, de alargamento do ecrã a Biden em vez da sua ocupação a tempo inteiro por Trump e comentadores de Trump. Quatro anos em que os eleitores Trump sentiram que o seu homem era vítima de tratamento diferenciado e negativo, quatro anos em que nem um facto ou factoide do grupo Trump e da família foi investigado. Biden foi deslizando na invisibilidade, bem como os democratas. É um elogio à sua resistência que tenha conseguido chegar inteiro ao debate. A televisão não o queria. E, pior ainda, também não o detestava, como detestava Hillary Clinton. Se Biden conseguiu a nomeação, isso atesta uma capacidade política. E se for eleito, é Kamala Harris que será eleita para um segundo mandato. Ou não. E a democracia expirará em direto.»

Clara Ferreira Alves

Travar agora uma segunda vaga de despedimentos

Posted: 29 Sep 2020 03:34 AM PDT

«Em março, o Bloco lançou o despedimentos.pt, um site para a denúncia de despedimentos e abusos laborais. O objetivo é informar e apoiar quem mais precisa, mas também fornecer um retrato realista de uma das piores faces da crise: a irresponsabilidade das empresas que despedem por escolha e que aproveitam a pressão da crise para todos os abusos.

Até hoje, recebemos 1382 denúncias, correspondentes ao universo de 145 mil trabalhadores, de todos os distritos do país e quase todos os setores de atividade.

Em empresas como o Pingo Doce, a Trofa Saúde ou a Bourbon, a desregulamentação dos tempos de trabalho transformou-se em horários excessivos, retirada de dias de descanso e abusos nos bancos de horas. Noutras, como a Molaflex ou a Gestamp, foi imposto trabalho a tempo inteiro a trabalhadores em lay-off. Noutras empresas ainda, foram reportadas violações das regras de segurança e higiene no trabalho, abusos na marcação de férias ou no exercício do teletrabalho. Entre todos os casos analisados, são os despedimentos e, em particular, o rompimento dos vínculos precários, que afetam a maior parte das pessoas que nos contactaram. Trabalhadores "à experiência" na FNAC, na Altice ou no McDonalds; trabalhadores temporários ou em outsourcing na Galp, no IKEA, na HiFly ou na Roca; trabalhadores com contratos a prazo na Prozis, Continental-Mabor, Eurostyle; trabalhadores a recibos verdes na Casa da Música, em Serralves, no IEFP, na Segurança Social... todos foram despedidos, independentemente da situação financeira da entidade patronal.

Nós sabemos que, a cada crise, os despedimentos, os abusos e os cortes salariais só contribuem para afundar a economia. E sabemos que é nestes momentos que a chantagem cresce, impondo regras ainda mais desfavoráveis para o futuro. Tudo isto é feito em nome da "excecionalidade" da crise. Mas porque é que essa mesma "excecionalidade" não nos leva, pelo contrário, a criar medidas especiais de proteção do emprego e do salário?

Para travar uma nova vaga de despedimentos é urgente uma lei que impeça despedimentos em empresas que apresentaram lucros nos últimos seis meses ou que recebam apoios (protegendo vínculos permanentes como precários). Esta medida excecional, a vigorar em 2021 e 2022, deve ser complementada com outras formas de proteção dos trabalhadores: a revogação da duplicação do período experimental: a reposição do valor da indemnização por despedimento ou caducidade do contrato de trabalho; a obrigação de contratos de trabalho para os milhares de estafetas e trabalhadores de plataformas digitais que, tendo sido essenciais na pandemia, foram descartados da proteção laboral.

Já conhecemos o resultado quando a vida das pessoas é jogada na precariedade e no desemprego. Se queremos mudar essa sina, então é tempo de alterar as regras.»

Mariana Mortágua

A ordem moral das coisas e a identidade de género

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 30/09/2020)

Daniel Oliveira

O que os assusta não é que a menina chegue a casa e diga que quer ser rapaz. É que elas possam ser tão livres ou egoístas como eles. As identidades estão baralhadas porque foram construídas por quem tinha o poder. Sem isso, a genitália não chega para definir o lugar de cada um. Já não dá para pôr a mulher livre no hospício. Por isso, é fundamental que elas continuem a aprender qual é o seu lugar. Tivesse Adelaide nascido neste tempo...


Adelaide Coelho da Cunha teve a sorte ou o azar de ser a legítima herdeira e proprietária do “Diário de Notícias”. E, por despeito ou amor, cometeu o erro ou a audácia de se envolver com o seu motorista e abandonar “o leito conjugal” de um marido que lhe era infiel. O motorista era pobre e muito jovem. Pobre como a criada que o seu filho engravidou, jovem como a amante do seu marido. Mas Adelaide era mulher. E não é normal as mulheres fazerem o que os homens fazem. Porque, diz-se, as mulheres são diferentes dos homens.

Para além disso, o marido de Adelaide Coelho da Cunha queria vender o “Diário de Notícias” e ela não deixava. E não era normal uma mulher vetar a vontade do seu marido. Pelas duas razões, foi internada num hospício com a ajuda empenhada de homens ilustres, como Egas Moniz e Júlio de Matos. A história de Adelaide Coelho da Cunha é contada em “Ordem Moral”, de Mário Barroso.

Em cem anos mudou muita coisa. Mas há coisas que mudaram menos do que pensamos. Veja-se o caso da rapariga filmada a fazer sexo com dois rapazes, numa carruagem de comboio, que foi achincalhada no espaço público e mereceu uma patologização do seu comportamento que foi dispensada aos seus parceiros, como bem descreve este texto de Fernanda Câncio. A rapariga será maluca, eles serão uns "grandes malucos". Ou, na pior das hipóteses, um pouco indecentes. Porque os homens, já se sabe como são. Agora, uma rapariga?

Anda por aí, graças a uma moda importada, uma grande preocupação com a identidade de género. De tal forma que os ultraconservadores inventaram uma ideologia para os seus opositores: a ideologia de género. A expressão nasce nos estudos de género para caracterizar as crenças sociais vigentes sobre o lugar da mulher e do homem na sociedade e foi apropriada por Ratzinger, ainda antes de ser Papa, para definir os que contestam essas crenças. Hoje é usada por grupos de extrema-direita e de religiosos radicais. E vai fazendo o seu caminho.

Os ultraconservadores têm medo que esta ideologia de género, que supostamente tomou conta das escolas sem que os professores me consigam dizer em que canto das salas de aulas se escondem, confunda as crianças. Que os seus filhos cheguem a casa e, do nada, lhes digam: “pai, eu quero ser menina”, “mãe, eu quero ser menino”. Espanta-me a pouca confiança que demonstram ter na natureza. Se é tão esmagadoramente natural a diferença entre homens e mulheres não será uma palestra que afastará o rapaz do azul e a menina do cor-de-rosa. Não serão uns livros que retirarão à rapariga o instinto maternal e ao rapaz a testosterona de guerreiro. As coisas acontecerão porque têm de acontecer.

O que temem nada tem a ver com as rasteiras que a ideologia consiga dar à natureza. Temem o que temia a sociedade que meteu Adelaide Coelho da Cunha no hospício: que cada um deixe de saber o seu lugar. É de poder que falamos. O poder que afasta as mulheres do topo de todos os poderes. O que quer continuar a impor a vontade masculina ao aparelho reprodutivo das mulheres. O que lhes reserva o lugar de grandes mulheres atrás de grandes homens. É apenas isso: poder.

O que os assusta não é que, por descobrirem que a homossexualidade existe, os meninos comecem a gostar de meninos. Isso acontecerá se tiver de acontecer, nas suas barbas ou às escondidas. Com o seu apoio se quiserem que os seus filhos sejam felizes ou a sua oposição se preferirem torturá-los. É que isso baralha o papel que cada um dos géneros deve desempenhar na sociedade e na família. O que os assusta não é que a menina chegue a casa e diga que quer ser rapaz. É que a mulher descubra que, como o homem, pode ter amantes e eles podem ser mais novos e mais giros do que os seus maridos. É que elas possam ser tão livres ou egoístas como eles. Que deixem de ser “galdérias” (ou tantos outros insultos que não têm correspondente para os homens) e passem a ser apenas o feminino do “mulherengo” (também não foi inventado). É que elas possam ser chefes deles, ganhar mais do que eles. Aquilo de que têm medo é de perder parte do poder que herdaram e pelo qual nunca tiveram de lutar.

Já não é possível, como no início do século XX, pôr a mulher livre no hospício. Mas dá para lhes continuar a ensinar o seu lugar. Tentam travar o vento com as mãos. As identidades estão baralhadas porque foram sempre construídas por quem tinha o poder para as impor. Sem isso, a genitália não chega para definir o lugar de cada um. E não falta muito para que não chegue ser homem para ter o lugar da frente. Tivesse Adelaide nascido neste tempo...

Mais um prego no caixão da escola pública

por estatuadesal

(Luís Aguiar Conraria, in Expresso Diário, 28/09/2020)

Este fim de semana saíram os resultados das candidaturas ao ensino superior. Os resultados dos exames facilitistas da época covid estão à vista. As notas de entrada na Universidade subiram muito e tornaram o acesso aos cursos mais desejados numa lotaria.


No exame de acesso de Matemática A, a moda — ou seja, a nota que se repetiu mais vezes — foi 19. Em Física e Química A, do 11º ano, a moda foi 18. Olhando para as médias de acesso à Universidade, ficamos com a ideia de que o futuro do país está garantido. Os gestores portugueses serão, em breve, os melhores do mundo. Os economistas, idem. Temos uma medicina que não se compara a nada. Os juristas são tão extraordinários que a nossa Justiça rapidamente se tornará uma referência internacional. Cereja em cima do bolo, temos os melhores engenheiros aeroespaciais do mundo: em 10 anos, vamos a Marte e voltamos.

(Se tivermos em atenção que mais de metade dos professores universitários tem a avaliação máxima, de Excelente, somos obrigados a concluir que a academia portuguesa há de ser a melhor do mundo.)

Como, evidentemente, não somos todos uns génios, o que isto quer dizer é que os exames foram fáceis demais, não permitindo distinguir os bons alunos dos muito bons e dos excelentes. Isto tornou o acesso a alguns cursos numa autêntica lotaria. E numa tremenda injustiça para tantos jovens. Não consigo imaginar o que é estar na pele de um adolescente que desde o 10º ano só tira dezoitos, dezanoves e vintes, que nas provas de acesso não tem nenhuma nota abaixo de 18 e não consegue entrar no curso pretendido. Ou estar na pele de alguém que, ao longo de 3 anos, tirou 20 a tudo e que teve um azar no exame de Matemática, não conseguindo mais do que 16, e que por isso não entra no seu curso de sonho. Ao tornar o acesso ao superior numa lotaria, os exames foram um fracasso.

À injustiça referida, junta-se outra. Todos sabem que há escolas onde as notas internas são inflacionadas e outras onde acontece o contrário. Os alunos destas últimas são sistematicamente prejudicados, pois para a média de acesso contam não só os exames mas também as notas internas. Apesar de tudo, em anos anteriores, um aluno que viesse de uma escola que sistematicamente desse notas mais baixas poderia compensar essa injustiça fazendo exames brilhantes. Um aluno de 18 que conseguisse nos exames ter 19 e 20 conseguiria entrar no seu curso de eleição, como Medicina ou Engenharia Aeroespacial. Com a superinflação de notas dos exames deste ano — que ainda se vão refletir nas notas de entrada do próximo, porque alguns dos exames inflacionados são do 11º ano —, muitos excelentes alunos que vêm de escolas mais exigentes não tiveram hipótese de recuperar dessa desvantagem. Se tivermos em conta que o grupo de escolas que mais inflaciona as notas é, por uma larga maioria, constituído por colégios privados e que o grupo que mais as deflaciona é constituído maioritariamente por escolas públicas, logo percebemos quem fica a ganhar.

Desde há vários anos que os rankings das escolas mostram que muitos colégios privados preparam melhor os alunos para os exames. Graças a isso têm atraído os jovens das classes privilegiadas. Há uns dias, o JN noticiava que, por causa da (falta de) resposta das escolas públicas à pandemia durante o 3º período do ano letivo passado, os colégios privados não tinham mãos a medir com tanta procura. Quando os pais perceberem o que se passou este ano no acesso ao ensino superior, a procura ainda aumentará mais. É uma triste ironia ter um governo socialista a empurrar os estudantes para o ensino privado.

P.S. Quando vim para o Expresso, aceitei o desafio de escrever duas vezes por semana. Ao fim destes meses, sou obrigado a concluir que não sou capaz. Exige-me demasiado tempo e, principalmente, atenção. Quer as minhas aulas quer a minha investigação estavam a ser prejudicadas. As aulas na UMinho estão quase a começar, por isso esta é a altura certa para parar de escrever no Expresso online à segunda-feira. Agradeço à direção do Expresso a compreensão.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Então, porque não descem o salário mínimo?

por estatuadesal

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso, 26/09/2020)

Pedro Santos Guerreiro

É evidente que quanto mais baixos forem os salários mais empregos haverá. Mas então desafio Rui Rio a levar o seu argumento ao absurdo e a propor uma descida do salário mínimo para 500 euros líquidos, o limiar de risco de pobreza. Pois então não haveria mais novos empregos? Claro que sim, o chão de fábrica ficaria repleto de gente. Gente meio-morta ante a legitimação da miséria.

Rui Rio — e muitos economistas — pode discordar da subida do salário mínimo, até porque os seus argumentos não são estúpidos. O que não pode é acusar quem defende o contrário de demagogia. Demagogia teve o Governo com a redução do horário de trabalho da função pública, mas não a tem com a (sublinhe-se) pequena subida do SMN que prepara. E que assim não suspende nem ameaça a tendência dos últimos anos, que teve impacto na vida de centenas de milhares de pessoas e reduziu a desigualdade, que ainda assim prevalece brutal no nosso país.

Com a subida do SMN, de 30% desde 2014, o número de trabalhadores a recebê-lo foi aumentando, para mais de 22% do total. Hoje haverá cerca de 750 mil pessoas a ganhar 635 euros (565 líquidos 14 meses por ano), com grande peso na restauração e alojamento, comércio, indústria transformadora e construção – setores muito sovados pela pandemia. Com a crise, que já ninguém esconde que será longa, os rendimentos já estão a cair e os quase 170 mil postos de trabalho que já foram varridos serão ainda engrossados por mais falências e empresas que já não querem ou não podem beneficiar do lay-off ou de linhas de crédito. Os salários médios descerão através do desemprego.

Um economista fala assim: o problema dos salários baixos está na baixa produtividade, que resulta das baixas qualificações e pouca acumulação de capital. Um assalariado mínimo ouve assim: trabalho que me farto, estou na mesma há anos e não saio da cepa torta porque há sempre uma crise.

É melhor ganhar pouco do que nada, diz Rui Rio. Vamos legitimar a desigualdade?

Pois, a produtividade. Mas produtividade não é apenas “trabalhar mais para produzir mais” como se fosse preciso chicote: em Portugal ela é muito prejudicada por falta de investimento, que faz empresas trabalhar com maquinaria e tecnologia antiga ou de segunda. Foram as exportações que nos tiraram da crise anterior e foi o turismo que alimentou milhares de bocas, mas criando trabalhos precários ou mal pagos. O salário mínimo é um nivelador mínimo pela dignidade da vida dos trabalhadores.

Abdicar de combater as desigualdades por causa de uma crise que por natureza já as aprofunda é aceitar que os mais desfavorecidos ficarão entregues a si próprios. É como dizer que não vamos legislar mais sobre a desigualdade salarial entre homens e mulheres (elas ganham menos 17% do que eles) porque agora, enfim, não dá jeito.

Quando se sai do estirador analítico para essa coisa chamada vida real, topa-se com um país com salários baixos e impostos altos, com uma desigualdade gritante e níveis persistentes de miséria, em que ou se sai daqui para fora ou se fica preso em elevadores num prédio com demasiados fogos no rés do chão, poucos pisos no meio e algumas penthouses a arranhar o céu. E se o Estado está tão preocupado com as empresas, baixe as contribuições para os salários mais baixos. Não pode, não é? Pois, mas pode o trabalhador, ou como dizia um banqueiro há uns anos, o país “ai aguenta, aguenta”.

635 euros. Menos do que até aqui, mas aumente-se o salário mínimo.