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terça-feira, 13 de outubro de 2020

Com taxas e bolos se enganam os tolos

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 13/10/2020)

Daniel Oliveira

O Governo fez saber, como notícia extraordinária, que pretende mexer no IRS para “aumentar salários”. Que isso até seria um doce que tinha guardado para os seus supostos parceiros à esquerda. A ver se nos entendemos: o Governo não pretende mexer uma décima nas taxas de IRS. O que quer mexer é na taxa de retenção, o que é coisa bem diferente. Significa que os trabalhadores descontam menos mas, no cálculo que é feito no fim, a devolução será menor. Pagam exatamente o mesmo.

Podemos concordar com a medida. O trabalhador não tem de adiantar ao Estado um imposto que não lhe é devido. Não podemos é acompanhar António Costa no ilusionismo, que faz disto um aumento de salário. E muito menos podemos aceitar que esta alteração sem qualquer impacto no rendimento final dos trabalhadores seja apresentada pelo primeiro-ministro como o argumento derradeiro para BE e PCP aprovarem o seu Orçamento do Estado. Se é esta habilidade à vista de todos, nem quero imaginar o que acontece na mesa de negociações.

Mas há uma razão para esta medida, que tem pouco a ver com o Orçamento de Estado e nada a ver com o rendimento dos trabalhadores. Lembram-se quando, próximo de eleições, Paulo Núncio, secretário de Estado de Maria Luís Albuquerque e Passos Coelho, criou um simulador personalizado que atualizava mensalmente a estimativa de crédito fiscal da sobretaxa de IRS? Uma estimativa que se revelou falsa, aliás. A coisa é parecida, mas com dinheiro real. Os trabalhadores recebem no salário o que não receberão na devolução. E enquanto o pau vai e volta vêm as eleições autárquicas. E estamos a falar dos impostos de 2021, cuja devolução só acontecerá em 2022.

António Costa não faz diferente de outros. Não me recordo é de uma tão descarada ação de campanha ser usada como moeda de troca numa negociação de um Orçamento do Estado. O único beneficiário da medida é o próprio primeiro-ministro, que enganará os incautos que julgam ganhar mais até chegar a devolução do IRS. A medida pode ser justa, por não pôr tanta gente a emprestar dinheiro ao Estado. Não aumenta é o salário de ninguém, porque o que vem agora não virá depois. O que eu compro fiado não me sai à borla, o que recebo antes não recebo a mais.

Será suficiente para termos Natal?

Posted: 12 Oct 2020 03:53 AM PDT

«Esta semana poderão ser anunciadas mais medidas de combate à expansão da covid-19. Tendo em conta que nos últimos dias 67% dos novos casos tiveram origem, segundo a Direção-Geral da Saúde, em convívios familiares e em festas de jovens universitários, um dado é certo: é impossível legislar sobre o que se passa dentro da casa de cada um de nós.

Assim, numa altura em que os números de novas infeções fazem soar todos os alarmes no setor económico e no Serviços Nacional de Saúde, e afastada que está a hipótese de um novo confinamento, percebem-se os apelos insistentes do Governo e da Presidência da República à responsabilidade pessoal. Será suficiente para termos Natal? A ideia que fica é que não. O regresso às aulas e o cansaço que a pandemia impôs às pessoas não explica tudo e é evidente que, um pouco por todo o lado, se percebe que o relaxamento quanto à prevenção aumentou. Festas em discotecas interrompidas, espaços de restauração sem o distanciamento obrigatório entre mesas ou confraternizações na via pública estão à vista de todos.

Não causará qualquer surpresa, portanto, que o uso da máscara social passe de uma recomendação a uma obrigatoriedade em todos os espaços abertos, com as devidas exceções, ou que os horários e a lotação de restaurantes, cafés e outros espaços comerciais sejam de novo revistos. Porém, antes de serem divulgadas mais restrições, há muito para afinar. Não apenas nos processos técnicos, como melhorar a rapidez dos resultados dos testes e a identificação dos contactos com casos positivos, de forma a controlar as cadeias de transmissão, mas também na pedagogia e na uniformidade das medidas. Até para que os portugueses não fiquem ainda mais confusos, sob pena de o desleixo nos cuidados sanitários essenciais para prevenir a doença aumentar.»

Manuel Molinos

Corona c'est moi

Posted: 11 Oct 2020 03:34 AM PDT

«E não perca as aventuras desta semana! O nosso herói venceu o vírus e saiu do hospital ileso, sem máscara, pronto a enfrentar o real varandim da Casa Branca e a mostrar aos fiéis, à América e ao mundo que a única coisa que correu mal foi a maquilhagem, excessos do pessoal das cosméticas, alguém usou e abusou da base laranja que prometia dar ao curado um halo bronzeado e incrivelmente saudável, como se ele tivesse acabado uma partida de golfe ao sol de Palm Beach. Degenerou em vermelhão, mas o nosso herói continua heroico e, mais ainda, imune ao vírus. O próprio corona ter-se-á sentido mal depois de infetar o Presidente e circulou para pastagens mais simples de contaminar, infetando não apenas a Casa Branca como o Pentágono. O líder do mundo livre é agora o maior superspreader de Washington, contribuindo para aumentar as cifras de infeção. Tudo o que sobe é bom.

Algures em Pequim, a nomenclatura chinesa teve um ataque de riso que ainda dura, riso até às lágrimas. Mal sabem o que os espera. E algures em Moscovo, o grande Putin, na sua bolha de plástico, onde recebe convidados borrifados com lixívia, afirmou aos íntimos que o Trumpovski era mais fácil de envenenar do que o Navalny, mas não era preciso, o herói é um aliado da grande Rússia. Nunca a América foi tão grande em mortos e infetados.

O eminente Dr. Fauci chorou no recato do lar, quando soube da cura. E quanto à maquilhadora que se enganou na cor, já está infetada. O cabeleireiro também, mas como o Presidente não confia num desses gays liberais que pululam no sector decidiu que o homem das lacas e dos pentes continuava ao serviço, infetado ou não. A estopa tem de se manter firme, como o nosso herói. E o resto? Corona c’est moi. Nem Luís XIV teve um tal poder sobre os elementos e a natureza. O imortal Luís XVI, o homem que inspirou os decoradores da Trump Tower e de Mar-a-Lago quando encomendaram os doirados, os rococós e os brocados. O nosso herói só teve dúvidas sobre a meia de seda e o sapato de fivela da época, demasiado maricón.

Nos episódios desta semana confirma-se o que se suspeitava, que um Presidente com esteroides é o que a América precisa para ser great again! Já tínhamos o capitalismo com esteroides, uma sábia definição, passamos agora para o estádio superior, um Presidente insuflado com química que se sente melhor do que há 20 anos e que afirma aos íntimos, todos infetados, que está a ganhar músculo em lugares inesperados. Os olhos cintilam com a vitória eleitoral que se adivinha, apesar das sondagens. Também Hillary tinha as sondagens a favor e viajou na maionese na noite de novembro em que foi derrotada pelo nosso herói. O homem faz chorar os inimigos, e Biden terá a sua dose de pranto quando as manobras das bases e das milícias armadas nos locais de voto consagrarem o nosso herói como o líder da nação temente a Deus. Já foram encomendados esteroides que mantenham o feelgood factor até ao dia 3 de novembro. Vários republicanos estão também a encomendar a dose, para os energizar para a campanha sem máscara e sem cautelas. O velho Mitch McConnell, a cair da tripeça, quer a receita e tem esperança que lhe afine a voz de sapo. O venal Lindsay Graham, aflito com a sinecura, quer a dose para poder continuar a mentir e a sentir-se como um milhão de dólares. Um assento no Senado não tem preço. Euforia precisa-se.

Quanto ao nosso herói, derrotou todos os snowflakes liberais com a recuperação milagrosa, incluindo os idiotas que lhe desejaram as melhoras. Os flocos de neve não aprendem, não basta vencer o inimigo, há que aniquilá-lo. O nosso herói dispensa a piedade dos fracos. Os snowflakes ainda não perceberam que o nosso herói não é humano. É mitológico. Nasceu de Zeus, o deus dos deuses, o Trump do Olimpo, e de uma perna de vaca com a qual Zeus procriou julgando-a uma deusa disfarçada que a sua luxúria cobiçava. Deste ato nasceu Donald, tal como Hércules nasceu de uma mulher, Alcmena, filha de Electrião, e do deus de todos deuses, noutro inspirado momento de erotismo grego. Hércules, meio irmão de Perseu, sendo também bisavô de Hércules. Os gregos são confusos.

Donald é o Hércules da televisão, o Hércules do Twitter, o Hércules da construção civil. Pelo menos, foi a história que o protofascista Stephen Miller contou, antes de cair infetado. O Perseu é quem? Não me chateies com pormenores, não te armes em doutor, quero lá saber do Perseu, ninguém conhece o Perseu, o herói é o Hércules. E isso da perna de vaca, substitui por uma loiraça tipo páginas centrais da “Playboy”, uma mulher nota 10. Não vou ter como mãe a perna da vaca, já basta aquele livro da minha sobrinha a inventar coisas sobre a minha mãe ser uma bruxa má. Põe lá um mulherão na minha árvore genealógica, se tem de ser. A Melania não vai gostar.

Stephen prometeu podar a dita árvore enquanto media a febre. Até o Giuliani parece que está com o bicho, deu uma entrevista à Fox News em que se fartou de tossir enquanto esperava os resultados do teste. Fracotes. O nosso herói nunca tossiu, nunca teve febre, tirando as bilhas de oxigénio e as misturas de esteroides e antivirais não comercializados e que só são dados aos vip. Na verdade, o nosso herói nunca esteve doente. O resto, são danos colaterais, infeções acidentais. Os deuses e heróis gregos também matavam uma data de gente da própria família.

Algures em Pequim, o Presidente Xi Jinping continua a enxugar os olhos quando lhe contam as novidades. Fica exausto de tanta gargalhada e contente pelas boas notícias da América e de Hong Kong. A vida não podia correr melhor. Não eram precisas estratégias nem iniciativas para derrotar os americanos, derrotavam-se a eles mesmos. Os conselheiros e demais membros do Politburo acenaram com a cabeça, sufocando o riso.

Não sabem o que os espera. O Pompeo prepara um ataque a Wuhan. E os 200 e tal mil mortos? O nosso herói encolhe os ombros. Deixaram que o vírus dominasse as suas vidas. Deixaram que fosse o corona a mandar. Ora a positividade manda que uma pessoa permaneça positiva. Positiva enquanto positiva, no bom sentido. O nosso herói é positivo, duplamente positivo, resiste a tudo. Passem o corticoide. Está inflamado.»

Clara Ferreira Alves

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Memórias

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 10/10/2020)

Miguel Sousa Tavares

(Ó Miguel, com um violino desses, a tocar tantas músicas, é impossível ter "bom ouvido" para todas. Direi que algumas estão um pouco "desafinadas". Mas rendo-me ao "fado das catacumbas" com letra do Professor Cavaco...

Comentário da Estátua, 10/10/2020)


A grande discussão do momento — em que gastar os 56 mil milhões de euros que vamos receber da Europa nos próximos nove anos — destapou um lado positivo e um lado negativo das coisas. O positivo é que agora parece haver uma consciencialização e uma mobilização de muita gente e de vários sectores para não deixar que os mesmos de sempre, pelos processos de sempre e pelas influências de sempre, se apropriem do grosso do dinheiro em benefício próprio e não do país. O lado negativo é o contraponto desta preocupação: o país não confia na honestidade dos seus — de quem vai distribuir e de quem vai beneficiar do dinheiro. São penosas memórias de circunstâncias semelhantes, que dizem muito sobre nós e as razões do nosso invencível atraso. Se tal fosse possível, só veria uma maneira de calar as desconfianças e garantir que não vamos desperdiçar mais esta oportunidade: pedir à própria UE que mandasse para cá uma equipa com poderes para gerir e vigiar todo o processo. Seria uma afronta à nossa sagrada soberania (que só se manifesta de vez em quando, quando o dinheiro nos é dado, mas não quando precisamos de o esmolar). Mas, entre orgulho e preconceito, eu não hesitava.

2 Outra discussão conexa com esta é a de saber se o Estado deve gastar o que for preciso para fazer frente à crise, sem se preocupar com o défice e com a dívida pública, que vai acabar o ano no valor assustador de 130% do PIB. A tentação imediata é rendermo-nos, sem estados de alma, às velhas lições keynesianas: numa crise, o Estado gasta e investe; na abundância, poupa e recolhe. Mas, mais uma vez, assalta-me a memória o ano de 2008, quando José Sócrates veio de Berlim e de Bruxelas com luz verde para gastar sem pensar e depois foi o que se sabe: ou o enganaram ou ele se deixou enganar, mas pagámos dolorosamente a experiência. Preocupa-me duas coisas: que o Estado — isto é, conjunturalmente, o Governo da esquerda e extrema-esquerda — se tome pelo salvador da pátria, asfixiando todo o papel da iniciativa privada e alargando ainda mais o modelo pernicioso, e tão caro à esquerda, de uma economia assente essencialmente nos dinheiros públicos e na inevitável dependência e clientelismo que ela fatalmente traz consigo. E, escutando o soberbo desprezo do PCP e do BE por essas questões menores do défice e da dívida, preocupa-me igualmente o regresso a uma mentalidade tão cara neste tempo de egoísmos e que é a raiz profunda dos nossos males: gastar hoje e com os de hoje, deixando a conta para pagar amanhã e pelos de amanhã.

3 A escolha do juiz conselheiro José Tavares para o Tribunal de Contas foi, no mínimo, infeliz no timing e na pessoa, sem prejuízo de todos esperarmos nada menos do que uma boa surpresa. Nada tenho contra o princípio dos mandatos únicos, mas desde que a regra seja anunciada antes e não depois. E nada tenho contra a pessoa, fora algumas amizades cultivadas que remetem para memórias de um passado que não se recomenda. Outro problema é quando o timing da sua escolha coincide com várias outras escolhas com um certo ar de “família”, como as do Conselho Geral Independente da RTP.

Ouvindo António Costa rastejar aos pés do PCP, mendigando o seu apoio no Orçamento, Mário Soares deve estar a torcer-se de furor lá no seu lugar além de todos nós

4 Ouvindo António Costa rastejar aos pés do PCP, mendigando o seu apoio no Orçamento, Mário Soares deve estar a torcer-se de furor lá no seu lugar além de todos nós. Ele sempre soube que o PCP não tem nada para dar ao PS nem ao país, a não ser um discurso repetitivo e museológico, sejam quais forem os tempos e as circunstâncias, e a chantagem de uma paz sindical que um Governo com coragem pode enfrentar e vencer. Já as três condições que, ao que consta, ainda separam o BE do PS para a aprovação do Orçamento são concretas e merecem reflexão. É justa a reivindicação de uma nova prestação de apoio social aos verdadeiramente pobres e é inteiramente justificada a recusa em aceitar mais dinheiro dos contribuintes para a Lone Star enquanto não se apurar, sem margem para dúvidas, em que o vêm gastando e porquê. Já li muitas posições defendendo que não há alternativa, pois o Estado tem de honrar os compromissos assumidos e não pode, além disso, sobressaltar o sistema bancário. Este último argumento deve ser o lado para que dormimos melhor, depois de tantos “sobressaltos”, e todos ruinosos, que o sistema bancário tem servido aos contribuintes portugueses. Sobre o Estado dever portar-se como uma pessoa de bem, concordo — desde que os outros se comportem também consigo como pessoas de bem. O que está por apurar no caso do Novo Banco.

Mas a terceira reivindicação do BE — a revisão da legislação laboral, nomea­damente proibindo despedimentos nas empresas com lucros — resulta apenas de um preconceito ideológico característico da extrema-esquerda, que é o da perseguição ao triunfo da iniciativa privada. Mesmo partindo da premissa de que a proposta deixaria de fora os despedimentos com justa causa, ela teria como consequência imediata o aumento exponencial das empresas que passariam a declarar prejuízos onde antes declaravam lucros, coisa fácil de conseguir com um mínimo de imaginação fiscal. Porém, ainda que ineficaz na prática, a medida serviria para transmitir uma mensagem fatídica aos empresários: os lucros são inadmissíveis e a vossa única função é manter postos de trabalho, mesmo que à custa da reconversão, do investimento e até da própria sobrevivência da empresa. Também já conhecemos a receita e todos recordamos o seu sucesso.

5 E, das catacumbas da memória, emergiu o escritor Aníbal Cavaco Silva com mais um livro a acrescentar à sua obra literária. O tema é o mesmo de sempre: o elogio de si próprio e da obra feita. Ciclicamente, e decerto desesperado por não ver quem o faça, o professor Cavaco Silva oferece-nos um novo capítulo da sua biografia, temendo que a gente o esqueça e à sua obra. Aquele que um dia jurou, em tom de desprezo, não ser um “político profissional”, como os outros, viu agora o apresentador do livro, Marques Mendes, descrevê-lo como “o mais profissional” dos políticos portugueses. E, de facto, nunca terá havido outro que, tanto desdenhando da actividade política, dela se tenha sabido aproveitar tão bem. É por isso que ele volta sempre à carga, escrevendo, ao que imaginará, para memória futura. O problema é que a sua memória não coincide com a de muitos de nós.

Forte da convicção (aliás, acertada) de que somos um país sem memória, Cavaco Silva diverte-se hoje a dizer que “os analistas” não sabiam se deviam classificá-lo como de esquerda ou de direita (mas que analistas eram esses?). E, a posteriori, define-se agora como um “social-democrata moderno”, o único e verdadeiro introdutor da social-democracia em Portugal e um continuador da obra do seu inspirador, Olof Palme. É pena que Olof Palme já não esteja vivo, para nos dar a sua opinião, à luz da obra do seu autoproclamado continuador. Mas eu, que visitei a social-democracia sueca no tempo de Palme, posso dar-lhe a minha opinião: não, senhor professor, talvez o adjectivo “moderna” faça a diferença, porque, em relação à social-democracia “antiga” — a de Palme —, ela não tinha nada que ver com o que o senhor andou por aqui a fazer, durante 10 anos de Governo. Assim como o senhor não tem nada a ver com Olof Palme. E assim como a obra feita, desde os hospitais ao CCB, que arrola e reivindica como mérito próprio e exclusivo, assenta num pequeno pormenor que o senhor se esqueceu de lembrar: que só quis o poder depois de um senhor chamado Ernâni Lopes ter posto as contas públicas em dia, ultrapassado a segunda intervenção do FMI, e depois de Bruxelas ter aberto a torneira a um dilúvio de dinheiro como o país nunca havia visto em toda a sua existência. E se já num anterior livro seu, “As Reformas da Década”, podemos encontrar enumeradas todas as reformas que diz ter feito e que, curiosamente, ainda hoje permanecem por fazer, a única pergunta com que, queira ou não, a História o confrontará é esta: que fez o senhor que, efectivamente, tenha mudado o país, durante esses 10 anos em que teve ao seu dispor oportunidades e circunstâncias de que mais ninguém dispôs?

6 No tribunal de Beja julga-se uma rede acusada de promover o trabalho escravo de trabalhadores moldavos para a agricultura intensiva do Alqueva. O cenário descrito pela acusação é aquele que todos sabem existir e fingem não saber: trabalho de 12 horas por dia, seis dias por semana e pago a 3,5 euros à hora; trabalhadores a viver em contentores sem o mínimo de condições humanas, passando fome, frio e calor insuportável; passaportes retidos, entidade patronal inidentificável, zero de protecção legal. Por onde andam os sindicatos em situações destas? Que pensa deste “sucesso” da nossa agricultura a ministra da respectiva pasta? E a do Trabalho? E o do Ambiente, que diz, por exemplo, que a nova moda do abacate no Algarve, em regime de agricultura intensiva e intensivamente sorvedoura de água, é um problema que se resolve quando acabar a água no Algarve? Portugal, garantem-nos, é um modelo no acolhimento de imigrantes e refugiados. E o Inferno está cheio de crentes distraídos.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

sábado, 10 de outubro de 2020

Conversa de mosca

Posted: 09 Oct 2020 03:26 AM PDT

«Nunca é um bom sinal quando uma mosca tem mais protagonismo que a mensagem daqueles que estão e podem vir a estar na vice-liderança de uma das maiores potências mundiais.

Foi o que aconteceu no debate entre Mike Pence e Kamala Harris, quando o republicano defendia a política de lei e ordem da administração Donald Trump face à brutalidade policial exercida sobre manifestantes zangados com o país e que exigem o fim do racismo em relação às minorias.

Mas o momento inusitado, que deleitou internautas e virou trending topic nas redes sociais, não é apenas uma metáfora. Representa mais uma cena de um espetáculo de puro entretenimento em que as eleições presidenciais norte-americanas se estão a tornar.

E só assim, com muito poder de encaixe, podemos sorrir quando Donald Trump diz que contrair covid-19 foi uma "bênção de Deus" porque o educou sobre potenciais medicamentos que podem curar a doença. Só que não. Num momento em que Portugal ultrapassa a fasquia dos mil infetados num único dia, em que a França se prepara para declarar o estado de emergência sanitária em algumas regiões até janeiro e em que os números se multiplicam assustadoramente por todo o mundo, a afirmação do presidente norte-americano não é nem uma piada, nem um ato de campanha. É um insulto. Um insulto às dezenas de pessoas que estiveram em contacto com ele e que agora testaram positivo, um insulto aos 212 mil americanos que já morreram da doença e aos mais de sete milhões de infetados, um insulto a todos nós que estamos expostos à pandemia.

Já não chegava minimizar a crise económica, os mortos da covid, as sondagens desfavoráveis, ignorar as questões dos direitos civis e alimentar os assassinatos racistas com discursos inflamados. Donald Trump perdeu definitivamente o respeito. Por si e pelos cidadãos. Do seu país e de todos os outros.»

Manuel Molinos