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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Esta terça-feira não tem só 24 horas

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 03/11/2020)


Será pela madrugada dentro que saberemos quem será o novo Presidente dos Estados Unidos. Com as particularidades do sistema eleitoral norte-americano, Biden poderia ganhar por mais de dez milhões de votos e ainda assim ser Trump a tomar posse; e o possível atraso na contagem dos votos postais agrava a incerteza, dado que esta só termina no dia 20 de novembro na Califórnia (mas não muda o resultado desse estado, aí Biden ganha com trinta pontos percentuais de vantagem), enquanto nos Estados oscilantes só se conclui no dia 9 no Iowa, 10 no Nevada e Minnesota, 12 na Carolina do Norte, 13 no Ohio. Se as diferenças no voto de urna forem marginais, é nessa contagem tardia que se decide o resultado.

Entretanto, pode ser que milícias bloqueiem pontes, como ontem aconteceu, ou que haja intimidação em mesas de voto (alguns tribunais discutiam se as armas levadas pelos votantes têm que ir escondidas). Pode ser que Trump se barrique na Casa Branca, e é mais do que provável que desencadeie uma saraivada de processos judiciais confiando num Supremo Tribunal alinhado partidariamente. Ou pode ser que os votos da Florida e do Arizona, dos primeiros a serem anunciados, antecipem o resultado final e dificultem uma contestação substancial. Mas se há uma certeza neste emaranhado, é que Trump resistirá a ferro e fogo.

Há uma interpretação para estas ameaças que sugere que é a montanha de dívidas que fala pelo presidente em risco. Será verdade. Mas há muito mais: as bravatas que crescem nesta longa terça-feira revelam somente que Trump não tem uma concepção democrática da política. Com ele, não se trata somente do estilo de rufia, o que se afirma é um projeto de ocupação do poder por uma extrema-direita que só pode fazer valer a sua força se amedrontar os adversários, se polarizar desesperadamente os seus apoiantes e se manobrar uma aliança que abranja os setores mais agressivos do capital, como são nos EUA os irmãos Koch, por exemplo.

Argumentei aqui que, como um bufão, Trump exibe como credencial a sua própria incapacidade ou até imaturidade para o cargo, que demonstrou exuberantemente pela forma como tratou a pandemia. No entanto, um sucesso desta forma de política não é inédito, os EUA tiveram Nixon que, mesmo sendo um operador das sombras mais dotado do que o atual presidente, arrastou o país e o partido republicano para uma viragem histórica (e acabou por perder).

A força de Trump, agora potenciada em escala superior pela diferença fundamental que é o controlo de redes sociais, enraiza-se na necropolítica, essa violência estrutural dos discursos, da cultura e da organização do ódio como linguagem do supremacismo branco, que tem antepassados na guerra civil, nas leis e na cultura discriminatória. Ora, há uma base de massas para a necropolítica, o suficiente para acreditar que pode submeter o país.

Por isso, ao contrário de vários comentadores, não creio que, no cenário de derrota de Trump, a força que ele representa venha a ser domesticada. O mundo mudou mesmo e o génio não volta a entrar na lâmpada. Sob uma face ou outra, o que se descobriu foi uma tecnologia destrutiva de grande potência. Será utilizada por qualquer outro candidato que mobilize os mesmo interesses sociais.

As “salas de guerra” que o Facebook anunciou que terá a funcionar hoje, para bloquear declarações antecipadas de vitória que não sejam confirmadas pela Reuters ou pela Associated Press, e a suspensão de anúncios políticos nos próximos dias, ou o anunciado controlo pelo Twitter da velocidade da retuitização de boatos, nada disso obstará à conclusão mais pesada destes últimos anos: na era da hipercomunicação, a racionalidade e a argumentação tendem a ser expulsas do discurso político. Entramos na era da selvajaria, o que é o mesmo que dizer da força bruta. Mesmo que perca, Trump deixa a sua marca e os seus herdeiros. E podemos ter a certeza de que esses nos vão atormentar pelos tempos fora.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Os Mercadores de Atenção

Posted: 02 Nov 2020 03:52 AM PST

«A atenção dos cidadãos é, talvez, o produto mais valioso do mundo, como refere Tim Wu num livro cuja tradução em português corresponderia ao título deste artigo. Em meados do século XIX, percebe-se que seria possível atrair e vender a atenção dos consumidores, cobrando-a aos fabricantes que quisessem publicitar produtos junto destes. Assim nasceu o marketing, que se foi progressivamente adaptando aos novos media, primeiro os jornais e o correio, depois a rádio e a televisão e, agora, a Internet. Ao princípio, o marketing foi usado principalmente para vender (falsos) remédios e mezinhas, mas rapidamente se expandiu e passou a representar uma parte significativa da actividade económica e política.

Que o valor da nossa atenção é enorme é atestado pelo facto de as empresas que a comercializam serem, neste momento, as mais valiosas do mundo, com capitalizações bolsistas que, para as quatro primeiras (Apple, Microsoft, Amazon, Alphabet-Google) excedem em muito o bilião de dólares, seguidas pelo Facebook com um valor de aproximadamente 750 mil milhões de dólares. É por esta razão que as televisões, as rádios, os jornais, as redes sociais e os sites na Internet tudo fazem para prender a nossa atenção, apresentando conteúdos que maximizam o tempo que dedicamos a cada plataforma. Nos dias que correm, poucos media se podem dar ao luxo de apresentar visões equilibradas e profundas dos temas importantes. Para cativar a nossa atenção, é necessário apresentar aquilo que cada pessoa prefere ver, ler ou ouvir, o que conduz ao reforço das opiniões preexistentes, à criação de bolhas onde apenas se é exposto a um dos lados das questões e à radicalização das opiniões políticas, sociais e económicas.

A pandemia, com a sua mistura de novidade, mistério e perigo, tem os ingredientes para atrair, como poucas outras coisas, a nossa atenção. Temos assistido assim a um foco quase total dos media, e das redes sociais, nos assuntos relacionados com a pandemia, em detrimento de um tratamento de outras questões que são tão ou mais importantes no médio e longo prazo, como o aquecimento global, o crescimento das desigualdades ou os riscos para a saúde causados por diversos comportamentos comuns. As redes sociais e os media encheram-se de discussões acaloradas e mesmo violentas sobre a evolução da pandemia, que capturam e monopolizam a atenção de milhões de portugueses. Porém, uma análise objectiva do real impacto da pandemia na mortalidade não torna imediatamente claras as razões para este foco total e completo nesta única questão.

Foram atribuídas à covid, até ao dia 30 de Outubro, um total de 2507 mortes, um número necessariamente sujeito a dois tipos de erros: existem pessoas vitimadas por outras doenças que foram contabilizadas como covid simplesmente porque testaram positivo e podem existir vítimas de covid que não foram registadas como tal. Admitindo que estas duas fontes de erro se cancelam aproximadamente uma à outra, uma vez que nunca saberemos os verdadeiros números, concluímos que a covid causou cerca de 2,5% do total de mortes registadas este ano no país até à data, que foi de 98.784. É certo que esta percentagem irá, quase de certeza, aumentar com a segunda vaga. Apesar disso, o foco quase total dos media e das redes sociais numa questão que foi responsável apenas por uma pequena percentagem das mortes registadas pode parecer estranho. É certo que cada morte é uma tragédia, para o próprio e para os que lhe são próximos. E pode argumentar-se que estas mortes são anormais, por comparação com as outras, que são as previsíveis e expectáveis. Mas esta distinção não é de forma alguma clara e a real explicação é a necessidade permanente que os media têm de prender a nossa atenção com algum assunto, neste caso a pandemia.

Para além das mortes causadas directamente pela covid, existe algum excesso de mortalidade em Portugal, em 2020. Dada a tendência existente para o aumento de mortalidade em Portugal a cada ano que passa, devido principalmente ao envelhecimento da população, é necessário tomar em consideração que, no último quinquénio, o número de mortes tem crescido a um ritmo de aproximadamente 1% ao ano. Tendo em atenção esta tendência e corrigindo também os números pelo facto de 2020 (e 2016) ser bissexto, conclui-se que este ano, até 30 de Outubro, faleceram em Portugal cerca de 4500 pessoas além do que seria previsível. Um estudo, publicado pela OCDE em 16 de Outubro, mostra que Portugal é o país com o maior rácio entre o excesso total de mortes e o número de mortes por covid no período crítico de 10 semanas da primeira vaga, de entre todos os países analisados com um excesso superior a 10% nesse período. As mortes por covid explicam apenas cerca de metade do excesso de mortalidade observado, sendo o restante, para além de variações causadas por questões meteorológicas ou ambientais, devido a três causas principais.

Uma primeira causa é a eventual saturação dos serviços de saúde em algumas alturas do ano, que poderá ter impedido que fossem devidamente tratados ou acompanhados pacientes com outras condições. Uma segunda causa é o foco do Serviço Nacional de Saúde na covid-19 que terá conduzido, preventivamente, à desmarcação ou adiamento de consultas e tratamentos, reservando capacidade para o apoio ao expectável aumento de pacientes covid. Uma terceira causa são as decisões que muitas pessoas poderão ter tomado de não se deslocar a hospitais ou serviços de saúde, com medo do contágio.

Para além de criar as condições para que o tratamento aos doentes com covid seja tão eficaz quanto possível, é necessário também evitar mortes desnecessárias por outras causas. O Ministério da Saúde e os hospitais deverão tomar as medidas possíveis para aumentar a capacidade do sistema por forma a que a não se venha a atingir a saturação, sendo fundamental que exista coordenação entre as diversas unidades. É também importante que o eventual adiamento ou desmarcação de consultas não-covid tenha o menor impacto possível na saúde dos pacientes, o que exige dos serviços médicos um planeamento o mais eficaz possível. Finalmente, é necessário que ninguém deixe, por medo da covid, de procurar tratamento ou acompanhamento para condições relevantes.

É aqui que o excessivo foco dos media no covid pode vir a revelar-se um factor de risco, que poderá ser comparável ao risco já relevante do covid. A barragem de cobertura mediática a tudo que é relacionado com o covid, que tem como principal objectivo prender a nossa atenção, não cria as condições para que se possam tomar serenamente as melhores decisões. Uma vez que a pandemia continuará entre nós por um período prolongado, é importante conciliar a retoma de alguma normalidade na forma como esta questão é tratada nos media com a sensibilização da população para a adopção de medidas que permitam reduzir o mais possível o crescimento do número de casos, tais como o uso de máscaras, o teletrabalho, a proibição de ajuntamentos, e as restrições à mobilidade.

É injustificável que se continue a tentar prender a nossa atenção com as conferências de imprensa usadas para reportar diariamente o número de mortos por covid e de novos casos detectados, para além de outros números irrelevantes e sem real significado, como o número registado de recuperados ou o número estimado de casos activos. Este foco único numa questão que não é o único desafio sério que o país enfrenta contribui muito para a manutenção de um clima de pânico generalizado e pouco para que a população adopte as necessárias medidas de contenção.»

Arlindo Oliveira

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O leitor que desmascarou Bolsonaro

Segunda-feira, 2 de novembro de 2020
O leitor que desmascarou Bolsonaro

No sábado, dia 24, enviei aqui na newsletter um texto a partir da investigação e da denúncia de um leitor, o Hélio Rodak. Por iniciativa própria, ao longo de quatro meses ele pediu informações ao Governo Federal e descobriu que Bolsonaro não tem qualquer plano de ação para lidar com a pandemia do novo coronavírus.
Hélio fez valer seu direito como cidadão, obteve a comprovação de que o governo não está nem um pouco preocupado com uma estratégia para tirar o Brasil da maior crise sanitária e econômica do século e, por meio do TIB, tornou sua revelação pública. (O texto que publicamos no site baseado na sua investigação foi um dos mais lidos da última semana ).
Estou recontando essa história para ilustrar como nossa relação com o público vai muito além do emissor-receptor, do jornalista-leitor. Hoje temos milhões de membros da nossa comunidade que se veem representados pelo TIB. A maioria deles nem é jornalista ou trabalha com comunicação: são trabalhadores de diversas áreas que apostam no Intercept como um instrumento de defesa dos direitos humanos, da educação pública e de qualidade, do SUS, da liberdade de expressão, do meio ambiente. E é isso que nós queremos ser!
O jornalismo que o Brasil precisa não comporta mitos como a imparcialidade, não funciona se for distante do público e se não botar o dedo na ferida. Nós queremos falar com cada vez mais pessoas, espalhar essa mensagem e mostrar como funcionam as entranhas do poder. É por essa razão que somos a maior comunidade de jornalismo do país e juntos fazemos algo grandioso: botamos medo nos poderosos.
O Hélio foi fantástico ao nos trazer essa pauta e quero deixar aqui um pedido: escrevam para o TIB, façam sugestões, cheguem cada vez mais junto. Nós tentamos responder a todas as mensagens que recebemos. Se você tem uma ideia de pauta ou descobriu algo, manda um e-mail para pautas@theintercept.com. Precisa conversar com a gente mantendo sigilo? Neste link explicamos como.
E se além de ideias você quiser trazer mais capacidade de gerar impacto para o Intercept, se você quiser nos ver incomodando ainda mais a extrema direita, sugiro que clique no link aqui embaixo. O que nos permite fazer o jornalismo que você admira e sabe que é importante é o apoio de milhares de pessoas. Vem para o nosso movimento também, você não vai se arrepender.

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Um abraço,

Tatiana Dias

Editora Sênior

Sobre gelo fino

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 31/10/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 O que torna os tempos actuais verdadeiramente terríveis para tomar decisões — sejam decisões políticas, económicas, empresariais ou até pessoais — é que ninguém conhece ao certo um factor determinante em qualquer tomada de decisão: o timing adequado para cada medida, quando deverá ser tomada e por quanto tempo. Em relação à tão esperada vacina, por exemplo, dizem os optimistas que antes da próxima Primavera não haverá uma vacina eficaz e segura, pronta a ser distribuída à escala global; dizem os realistas que isso não acontecerá antes do final do ano; e dizem os pessimistas que nem mesmo a existência de uma vacina significará o fim do problema. E sem saber quando e como é que o problema terá fim, não é possível escolher medidas para o combater, desconhecendo-se a necessidade da sua duração e as suas consequências. É por isso que todos os governos parecem paralisados ou, na melhor das hipóteses, navegando à vista, sem bússola nem rumo fixado.

O dilema mais óbvio é o da escolha entre a economia e a saúde das pessoas. Diz-se que uma vida humana não tem preço, mas também se diz que matar a economia é uma outra forma de matar pessoas — e ambas as coisas são afirmações incontestáveis. Só que isso não facilita qualquer opção. O economista francês Patrick Artus resolveu fazer um exercício politicamente incorrecto, que foi o de calcular o custo de cada vida humana salva pela decisão de confinamento geral tomada pelo Governo de Emmanuel Macron na Primavera passada (e num momento em que a França, se não acontecer um milagre até lá, se prepara para regressar ao confinamento na próxima quarta-feira). Partindo dos dados dos epidemiologistas que calcularam que cada um dos dois meses de confinamento em França evitou 20.000 mortes, e calculando, por seu lado, que um mês com a economia parada custou à França 5% do PIB e 2,5% de aumento da taxa de desemprego a longo prazo, ele chegou a um número representativo do custo de uma vida humana salva pelo confinamento. Um número arrasador: seis milhões de euros! Não sei se as suas contas estão certas ou erradas, mas são contas semelhantes a estas que os governantes de toda a Europa têm em cima da mesa, na hora de decidir o que fazer.

Porém, ouvindo e lendo as opiniões sobre o assunto (e os comentários online a essas opiniões), parece que os portugueses, em geral, estão carregados de certezas absolutas, mesmo que de sinal oposto.

Todos acreditam saber mais do que os outros sobre a covid, as medidas que já deveriam ter sido tomadas e não foram, ou aquelas que foram tomadas e não deveriam ter sido, porque tudo isto, afinal, não passa de um embuste, as máscaras não servem para nada e o que o Governo quer é “roubar-nos o Natal” (não por acaso, Trump diz o mesmo de Biden), como se algum Governo ganhasse popularidade estragando o Natal aos governados.

Uns indignam-se com a Fórmula 1 na Mexilhoeira Grande, outros acham-na essencial para relançar o turismo no Algarve. Mas em duas coisas, pelo menos, todos parecem concordar: estão todos fartos da covid — o que é uma boa pista para encontrar uma solução; e todos já teriam despedido a ministra Marta Temido, incluindo um colunista que, alicerçado nos seus invocados 120.000 seguidores no Facebook, o faz em linguagem de carroceiro, que explica, afinal, porque é importante a frequência da tal disciplina liceal de Cidadania. E, no fim, não tendo mais desabafos nem verdades evidentes para descarregar nas redes sociais, vão às dezenas de milhares fazer fila para votar nas eleições do Benfica ou ver as ondas gigantes do canhão da Nazaré. Horas a fio, em dias de semana e em horário de trabalho: a vida como sempre, o antigo normal.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

2 De facto, já era madrugada aqui e regressava eu do meu fuso horário das eleições americanas, como sempre carregado de espanto, angústia e pavor, quando faço um zapping final pelas nossas televisões. Nada menos do que seis canais — seis! — estavam em directo do Estádio da Luz, transmitindo o desfecho das eleições do Sport Lisboa e Benfica. No nosso late night news era o único, rigorosamente o único assunto que ocupava as televisões: nem covid, nem Orçamento do Estado, nem eleições americanas, nem a tensão Turquia-França, nada mais — só as eleições no Sport Lisboa e Benfica. Subiu ao palco dos seis canais o candidato derrotado com 36% dos votos, que falou como um vencedor e como falaria um futuro primeiro-ministro da nação: agradeceu ao pai, à mulher e aos filhos, e, como político sabido, respondeu à pergunta sobre se voltaria a recandidatar-se dizendo que prometera que não à família mas que nunca diria que não aos benfiquistas. Depois, as televisões foram em directo até à ‘sede de campanha’ do terceiro candidato: um fulano que viveu nos últimos anos a vomitar ódio aos rivais nos programas de futebol gritado das televisões, julgando com isso angariar popularidade entre os benfiquistas, mas recolhendo, afinal, uns humilhantes 1,6% dos votos. Compreensivelmente, o candidato bem-falante não estava à vista e regressaram ao Estádio da Luz, onde o candidato vencedor se preparava para tomar posse para o que, avisadamente, prometeu ser o seu último mandato, no final do qual terá cumprido 22 à frente do S.L.B. — ainda longe dos 42 de Pinto da Costa à frente do F.C.P. E cada um deles recandidatando-se ao arrepio das melhores teorias políticas, não por causa dos seus êxitos, mas justamente por causa dos seus fracassos: o primeiro, para conseguir que o clube deixe de ser uma anedota desportiva, em termos europeus; o segundo para tirar o clube da falência a que a sua gestão o levou. Mas, nessa altura da noite, já tinha visto o suficiente e também não fiquei para ouvir o discurso de vitória do candidato apoiado pelo primeiro-ministro, pelo presidente da Câmara de Lisboa e pelo líder parlamentar do CDS.

3 Depois do atentado terrorista que causou vários mortos na redacção do jornal francês “Charlie Hebdo”, foi moda de bom tom todos se declararem “Je suis Charlie”. Fizeram-se T-shirts, toalhas de praia e cartazes, organizaram-se manifestações, proclamações e abaixo-assinados. Nunca me apeteceu aderir: je ne suis pas Charlie. Não que tenha a menor complacência com o terrorismo, seja qual for a sua motivação, a sua justificação ou a sua desculpa. Uma coisa é a guerrilha, a luta armada, a resistência, certa ou errada, contra um inimigo armado, outra coisa é o terrorismo cobarde contra inocentes desarmados. Mas o que o “Charlie Hebdo” faz hoje não é jornalismo nem é um exercício de liberdade de imprensa: é pura provocação gratuita e ofensa às crenças religiosas alheias: é terrorismo jornalístico. Ainda a semana passada trazia uma caricatura do primeiro-ministro turco, Erdogan, sentado numa retrete a defecar. Ora, Erdogan, é um dos tiranos europeus da actualidade, um homem decerto sinistro, que se toma pelo novo sultão otomano e que tem planos perigosos para toda a região do Oriente próximo. Fruto — mais um — da ausência de uma visão de política externa de Donald Trump, ele vem conquistando espaço e influência na região, passo a passo e com intenções que são uma ameaça à segurança da Europa e dos seus vizinhos, e a que só a França tem tido a coragem de se opor. Certamente que ele merece ser atacado e confrontado, mas não como o “Charlie Hebdo” o fez. E, pior ainda: acrescentando à caricatura uma referência ordinária ao Profeta — o que é uma obsessão do jornal.

Ora, atacar o Islão desta forma é ofender gratuitamente centenas de milhões de fiéis seguidores do islamismo, cuja fé a França laica respeita, por imperativo constitucional. Mas não apenas isso: o Islão representa também uma civilização e uma cultura que fazem parte da nossa história de povos do sul e que foi absolutamente extraordinária. Os meninos do “Charlie Hebdo”, que brincam aos jornalistas, não sabem o que fazem nem do que falam: deviam ir visitar o Alhambra, em Granada, para começarem a perceber a imbecilidade das suas caricaturas.

Isto posto, resta dizer que Emmanuel Macron tem toda a razão quando diz que a França está sob ataque aos seus valores republicanos fundamentais. Se alguns, infelizmente, usam o valor inalienável da liberdade de expressão para ofender a fé e a cultura de outros, a solução não é abolir a liberdade de expressão. E se os outros, sentindo-se ofendidos, não entendem esses valores e julgam que a resposta se dá degolando pessoas ou colocando bombas para matar inocentes, se são eles próprios que transformaram a ideia luminosa do Islão na ideia sinistra do regresso à barbárie e às trevas e se são eles que escolheram fazer do “Alcorão” um manual de assassínios, a França tem o direito e o dever de se defender por todos os meios — todos — desta gente que não merece viver nas nossas sociedades. E todos nós temos o dever de ser solidários com a França.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

PS: A soberba não é boa conselheira

Posted: 31 Oct 2020 04:33 AM PDT

«Nos tempos de emergência em que vivemos, há três coisas fundamentais que podem e devem ser exigidas ao Orçamento do Estado para 2021. Que contribua para proteger a saúde de todos, que limite a magnitude da recessão e que mitigue os impactos sociais da crise. O primeiro objetivo exige o reforço do Serviço Nacional de Saúde, o segundo exige uma atuação contracíclica robusta para limitar a dimensão da recessão e o terceiro exige o reforço dos mecanismos de proteção social e regulação laboral. Independentemente das diferenças de identidade e programa entre os partidos à esquerda, deveria ser possível uma convergência em torno destes objetivos que permitisse a viabilização do OE. No entanto, o processo está a enfrentar contrariedades inesperadas e está mais em risco do que se anteciparia, e isso deve-se principalmente à soberba do Partido Socialista.

Na generalidade, esta proposta de Orçamento contou para ser aprovado com a abstenção de PCP, PEV, PAN e duas deputadas não inscritas, tendo no entanto enfrentado o voto contra do Bloco de Esquerda. Tal como no passado, a reação do governo e do PS nos últimos dias passou por acentuar a diferença entre o pretenso bom comportamento do PCP e PEV e a pretensa traição inexplicável do Bloco, apresentada como uma colagem à direita. Enganam-se porém o governo e o PS quando interpretam a abstenção do PCP e PEV na generalidade como uma luz verde e o voto contra do Bloco como um cartão vermelho. Na realidade, ambos são cartões amarelos à disponibilidade negocial do governo, que apenas assumem formas diferentes devido aos diferentes tempos dos processos negociais entabulados com os diferentes parceiros negociais à esquerda.

No meio do bullying político feito pelo PS contra o Bloco nos últimos dias, que chegou ao absurdo de Ana Catarina Mendes ter ontem à tarde acusado o BE de rejeitar um compromisso para o horizonte desta legislatura (quando toda a gente sabe que foi o PS, na arrogância do reforço do seu resultado eleitoral, quem matou a geringonça em 2019), o que o governo e o PS ainda não explicaram foi o seguinte: são mesmo contra uma dotação mais substancial da dotação orçamental e do quadro de pessoal do Serviço Nacional de Saúde (e não apenas do programa da saúde em geral, que compreende as transferências para os prestadores privados)? Não admitem mesmo a reversão da legislação laboral lesiva dos trabalhadores que resta do tempo da troika, contra a qual o próprio PS votou há poucos anos e que de uma forma geral não tem implicações orçamentais? Opõem-se mesmo a que o apoio social de emergência que está a ser desenvolvido seja mais abrangente e duradouro, como defende o Bloco? Se são realmente contra todas estas coisas, porque é que o são? Em vez de apresentarem estas reivindicações de esquerda como sendo de direita, podem explicar aos portugueses porque é que consideram que não devem ser atendidas?

Quando o Bloco vota contra a proposta de OE na generalidade ao fim de três ou quatro meses de negociações, está a sinalizar que a intransigência reiterada do governo em relação a estas matérias não revela suficiente boa fé e disponibilidade para trabalhar em conjunto. Quando o PCP e o PEV se abstêm, estão a sinalizar a sua própria disponibilidade para prolongar na especialidade um processo negocial iniciado há menos tempo, mas que é para já insatisfatório nos resultados a que chegou. Se o governo e o PS continuarem a optar pela soberba, dando a negociação com o Bloco por encerrada, e considerando a abstenção viabilizadora do PCP e PEV como favas contadas, passará ao lado a oportunidade de construir um OE mais capaz de responder às preocupações de todos os parceiros às necessidades do país, e poderá mesmo acabar por não conseguir aprová-lo na votação final. O PS pode até ganhar a batalha do spin no curto prazo, mas perderão a esquerda, o governo e o país.»

Alexandre Abreu