Translate

sábado, 7 de novembro de 2020

O regime de Ronald Reagan

por estatuadesal

(Pedro Magalhães, in Expresso, 07/11/2020)

No momento em que escrevo, o vencedor das eleições presidenciais americanas e a composição das duas câmaras do Congresso ainda não são conhecidos. Mas esses resultados já não eram muito relevantes para os três artigos anteriores desta série. Ganhe quem ganhar as eleições americanas de 2020, isso não muda a polarização e tribalização do eleitorado americano, o arcaísmo e a disfuncionalidade das instituições eleitorais do país ou as debilidades organizativas do Partido Democrata. E acho que também não vai alterar aquilo que se segue.

Nos últimos 40 anos, os Estados Unidos tiveram seis presidentes diferentes, 24 anos de governação republicana, 16 democrata e quase todas as combinações possíveis de controlo das duas câmaras do Congresso. De um certo ponto de vista, no entanto, tiveram um único regime. Chamemos-lhe, para simplificar, o regime de Ronald Reagan. O historiador e cientista político Stephen Skowronek explica que, tal como Lincoln e Roosevelt, Reagan foi um Presidente “reconstrutivo”, que foi capaz de inaugurar uma nova agenda política, baseada em novas ideias e numa nova coligação de interesses. O regime assim criado a partir dos destroços do New Deal foi o da diminuição da regulação estatal da economia, da erradicação dos sindicatos como forma de organização da esmagadora maioria dos trabalhadores, do aumento do poder dos grandes acionistas e das administrações das empresas, da manutenção do salário mínimo a níveis baixos, do crescimento exponencial do sector financeiro, da redução da progressividade dos impostos e da contenção dos gastos sociais.

Os Presidentes seguintes ou não quiseram (Bush pai e especialmente filho), ou não puderam (Clinton e Obama) mudar este regime. Clinton desistiu: “The era of big government is over”, declarou em 1996, depois de ter falhado a reforma do sistema de saúde, dado prioridade à redução do défice e aprovado uma reforma conservadora da segurança social. Obama, que chegou ao poder no meio da maior crise económica desde a Grande Depressão e com duas guerras em curso no Médio Oriente, baseou a sua reforma do sistema de saúde no plano de um governador republicano (Romney) e enfrentou um Congresso crescentemente hostil, com o qual procurou, durante muito tempo, “negociar”. Por seu lado, Trump disse muitas coisas — umas a favor e outras contra esta ortodoxia —, mas era certamente o candidato de quem menos se podia esperar que mudasse algo de fundamental na ordem económica prevalecente.

O trumpismo não acabará com a saída de Trump — e muito menos acabará o regime que o tornou possível

O regime de Reagan deu aos Estados Unidos a vitória na Guerra Fria, enquanto mantinha enormes níveis de prosperidade. Entre todos os países da OCDE, o rendimento disponível de uma família média americana, ajustado para o poder de compra e depois de impostos, é o mais alto. Contudo, o reaganismo trouxe também outras coisas. Nos últimos 40 anos, o rendimento dos 5% mais ricos aumentou continuamente, no que representa o maior crescimento de qualquer país desenvolvido, ao mesmo tempo que o rendimento dos restantes 95% da população (que antes acompanhava o crescimento do PIB per capita e da produtividade) estagnou. Este aumento da desigualdade não foi compensado por mobilidade social significativa. Pelo contrário: em comparação com a geração dos seus pais, foram menos os americanos nascidos nos anos 70 e 80 do século passado que conseguiram ascender socialmente, e foram mais os que tiveram percursos descendentes. A esperança de vida à nascença de um americano é hoje a mais baixa, e a mortalidade infantil a mais alta, entre as democracias ricas da OCDE; e a disparidade entre americanos ricos e pobres em relação a estes indicadores não pára de aumentar. É certo que algumas destas tendências já vinham de trás, fruto de mudanças na estrutura económica tanto nacional como mundial. Mas, quando se comparam os Estados Unidos com os restantes países ricos do Ocidente, é fácil ver que o reaganismo facilitou e reforçou tudo aquilo que não criou ele próprio.

Nos inquéritos à população dos EUA, os níveis de satisfação com “a maneira como as coisas vão hoje no país” ou a perceção de que o país vai “na direção certa” encontram-se estagnados há quase 20 anos a níveis baixos. Os norte-americanos estão menos satisfeitos com a vida e sentem-se menos felizes do que antes — menos do que em grande parte das democracias desenvolvidas, e muito menos do que o nível de prosperidade do país faria esperar. Quase dois em cada três dizem que há demasiada desigualdade e que são necessárias grandes mudanças no sistema económico. Quem olhe para isto verá um grande potencial transformador, o ímpeto para “restaurar a saúde cultural e moral da nação” de que fala Robert Putnam no seu livro mais recente, “The Upswing”.

Contudo, mudar de regime é muito difícil. Mesmo que os Democratas ganhem a presidência e o controlo do Congresso, não é claro que haja muito que os una além do repúdio a Trump. Um novo compromisso entre classes, semelhante ao que deu origem ao New Deal, depara-se hoje com a ausência de um dos interlocutores principais, os sindicatos. As instituições políticas americanas foram concebidas para preservar o statu quo; com partidos e bases polarizadas e tribalizadas, este conservadorismo institucional transforma-se em paralisia. E depois temos Trump. Nos últimos anos, o Presidente americano chegou a ser entendido como aquele que viria conduzir um regime obsoleto à sua cova.

Porém, se há coisa que estas eleições mostram, independentemente do seu desfecho imediato, é que a aliança entre privação económica, nativismo, ressentimento racial e extremismo retórico não constitui um handicap eleitoral. Pelo contrário, pode ser o tónico de que este mesmo regime carecia para permanecer vivo. O trumpismo não acabará com a saída de Trump — e muito menos acabará o regime que o tornou possível.

Este é o último artigo de uma série sobre as eleições e as instituições políticas dos Estados Unidos. Agradeço a Clara Vilar, Ivan Nunes e Nuno Garoupa os comentários que fizeram a versões iniciais destes artigos.

Como acordou a América?

Posted: 04 Nov 2020 04:24 AM PST

«Há quatro anos ouvi aquilo que pensei nunca ouvir: uma Nova Iorque completamente silenciosa. Era quarta-feira de manhã, dia de trabalho; mas o ruído constante que atravessa e acalenta a cidade tinha desaparecido. Como se alguém tivesse desligado o som da televisão e os nossos passos não fizessem barulho, saímos para o mundo tarde e caminhámos pela cidade em ressaca até nos juntarmos a uma dúzia de pessoas para o seminário que já estava marcado antes. Naquele dia um palestrante apresentava o resultado das suas investigações sobre como a Alemanha nazi se inspirou na legislação do Sul segregacionista dos EUA. No fundo, como os regimes autoritários se copiam uns aos outros. Mas de repente o tema tinha deixado de ser uma curiosidade histórica e, naquela tarde escura e fria, adquirira uma relevância sinistra.

Tudo começara quando? Talvez uns dias antes, quando fomos ver um dos mais conhecidos especialistas em sondagens e estatísticas eleitorais dizer-nos, debaixo do esqueleto de um dinossauro no Museu de História Natural, que Clinton já tinha ganho as eleições “a não ser que algo de muito estranho aconteça”.

Mas algo de muito estranho tinha já acontecido — e várias vezes até. Teorias da conspiração, apagões da internet, desinformação e delírios coletivos. Mas nada tão grave quanto a sensação sobranceiramente confortável de que “isto não pode acontecer aqui”. A ideia de que o povo dos EUA nunca elegeria um ser tão mentiroso e egoísta, tão impreparado e incompetente, foi a pior aliada dos democratas naquelas eleições. Os americanos, afinal, eram como todos os povos do mundo. Também elegiam demagogos e fanfarrões. A falta de imaginação foi a principal culpada do resultado. A credulidade foi a sua principal vítima.

A partir daí, os dias — e, na verdade, anos — seguintes foram de negociação com a incredulidade. As pessoas começaram a falar-se nos corredores e elevadores dos blocos de apartamento. Olhavam-se de soslaio, depois encolhiam os ombros, e depois diziam “dá para acreditar nisto? Como é que isto foi acontecer?”. Nos transportes públicos, gente com aquele ar de sinceridade diligente tão típico da América do Norte sobraçavam dossiês que lhes tinham oferecido lá no trabalho sobre “como lidar com o trauma pós-eleitoral”. O reitor da universidade escrevia-nos todos os dias, querendo saber como estávamos, oferecendo-nos os números das linhas de apoio psicológico, insinuando-nos que lhes devíamos fazer uma chamada, explicando-nos atenciosamente os passos que haviam sido tomados para pôr cobro à vandalização do ponto de encontro dos estudantes muçulmanos num dos edifícios do campus. As pessoas de minorias cerraram os dentes, prepararam-se para serem erigidas em bodes expiatórios por analistas de vários campos políticos, e tiraram os seus instintos de sobrevivência do armário onde nunca os tinham verdadeiramente esquecido. E um pouco por todo o lado percebia-se a gargalhada incontida daqueles que tinham querido ver acima de tudo aquele resultado: a incompreensão e o pânico entre os bem-pensantes e os bem-comportados. Um país lançado à instabilidade para chatear os progressistas.

Dez dias depois, a um sábado, há violência inesperada e repentina à porta dos bares e restaurantes. Gente assustada procura refúgio (e sentido para o que está a acontecer) nos prédios vizinhos ou nas redes sociais. Um grupo até então quase desconhecido de homens que glorificam a agressividade gratuita como uma forma de combater os seus fantasmas — o feminismo, o politicamente correto e a decadência do ocidente — concertou-se para atacar gente ao calhas nos bairros boémios da cidade. Não houve qualquer provocação para aqueles atos, apenas a necessidade de ir esmurrar uns quantos dos tais progressistas ainda baralhados com a vitória de Trump e mostrar-lhes quem mandava agora. A tensão nesses dias, e depois deles, não era uma coisa dos livros; era das ruas e era palpável. Esse grupo violento que apareceu então bruscamente ainda existe; foi a eles que Trump se dirigiu num dos recentes debates presidenciais, pedindo-lhes que “estivessem prontos, e a postos” para logo a seguir às eleições. A partir de hoje.

Se Trump perder as eleições de forma inequívoca que garanta a sua saída do poder sem causar muito mais dano, logo virão as análises que nos dirão que a democracia americana é afinal forte e que as suas instituições sobreviveram. Nada disso é verdade. A democracia americana não é nem forte, nem sequer muito democrática — e um dos seus dois principais partidos continua apostado em fazer com que assim seja. As instituições foram usadas a seu bel-prazer por Trump, com quase nenhuma resistência, e com o apoio servil do seu partido. E foi preciso a total incompetência na gestão de uma pandemia que já matou mais de 200 mil cidadãos dos EUA para que Trump chegasse a estas eleições no estado em que chegou. Um tirano um pouco mais metódico — um Putin, em vez de um Trump — teria devorado o governo dos EUA por tempo indeterminado.

E em rigor, à hora a que escrevo esta crónica, isso não é ainda impossível. Por isso, digam-me, vocês que sabem mais do que eu: como acordou a América hoje?»

Rui Tavares

Republicanos: depois da cobardia, o vazio

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 05/11/2020)

Daniel Oliveira

Depois de Donald Trump ter posto em causa umas eleições presidenciais dos Estados Unidos, falando de fraude e de roubo sem qualquer indício para tal, discursou o seu vice-Presidente. Mike Pence não o secundou. Nem o afrontou. Limitou-se a pedir vigilância perante a contagem dos votos que o seu Presidente não quer contados e a mostrar-se otimista. Houve quem reparasse na diferença de estilo e o tenha elogiado. Em mim, teve o efeito oposto. Ele tem consciência do absurdo que estava a ser dito, da irresponsabilidade de partir um país a meio em torno da credibilidade do processo eleitoral e do perigo que aquele homem representa para a democracia norte-americana. Pior do que um fanático é o oportunista que o apoia.

Quando cheguei a Cleveland, em 2016, e comecei a conversar com delegados à convenção republicana, percebi que depois da sua nomeação Trump não iria encontrar qualquer resistência interna. Que aquelas duas máquinas de poder, democratas e republicanas, só não estão preparadas para alguém que ponha em causa o poder do dinheiro – e é por isso que Bernie Sanders nunca teve as abébias que foram dadas a Trump. Ouvi, na altura, de uma apoiante de Ted Cruz: “As pessoas precisam que lhes digam a verdade. Concordo com muito do que [Trump] defende, o problema é não bater certo com o que fez.” Ted Cruz e muitos do que ainda resistiam a baixar a cabeça perante o novo rei não eram mais moderados do que Trump. Seriam apenas mais polidos e coerentes. Mas não havia nenhum cisma programático no Partido Republicano. O problema para o establishment republicano não era o que Trump defendia, é ser ele a defendê-lo. Até ele passar a ser a cúpula do establishment republicano.

Mas nem a facilidade com que transformou aquela convenção num evento pessoal me chegou para perceber até onde podia ir a capitulação republicana. Tirando alguns corajosos resistentes, toda a estrutura republicana, de governadores a senadores, de congressistas ao vice-Presidente, se vergou aos caprichos deste homem. A coisa foi tão longe, o ultraje à tradição republicana foi de tal forma aviltante, que não sei o que sobrará depois disto. Quando um Presidente do seu campo político põe em causa a legitimidade do processo eleitoral, que ligação sobra entre os republicanos de hoje e a sua história? Que raízes não foram arrancadas pela megalomania de um Presidente eleito mas com perfil de autocrata?

Claro que a radicalização que levou a Trump não começou agora. Começou com a candidatura de Barry Goldwater, que em 1964 iniciou a caminhada que levou a Reagan, quase vinte anos depois. Continuou com a chegada do inepto filho de Bush à Casa Branca. E iniciou a sua fase decadente quando o honrado McCain foi obrigado a aceitar a inenarrável Sarah Palin como sua vice, mostrando como os republicanos já eram reféns da sua própria derrota intelectual. Todos eles parecem normais quando olhamos para Trump. Mas nenhum conseguiu transformar, como Trump, o Partido Republicano numa alforreca.

Claro que os republicanos, movidos como os democratas pela luta pela sobrevivência, se irão adaptar ao pós-Trump, quando esse momento chegar. A dúvida é como o conseguirão fazer depois de um silêncio coletivo tão confrangedor, depois de tantos senadores e congressistas terem transigido em todos os valores democráticos. Quanto maior é a cedência na vitória maior será o vazio depois da derrota. A questão não é o que sobra da agenda política dos republicanos. É o que sobra da sua dignidade.

Quando vemos que entre as novas congressistas eleitas está uma adepta do QAnon, uma seita de lunáticos de extrema-direita que acredita que Donald Trump foi escolhido para combater uma organização secreta de pedófilos que reúne altos funcionários do Estado, estrelas de Hollywood, os Clinton, Obama e Soros, percebemos que o manicómio é o limite.

Saia Trump da Casa Branca em janeiro ou daqui a quatro anos, a cobardia dos seus cúmplices deixa um vazio moral, político e intelectual que será ocupado por malucos cada vez mais extremistas. Como Trump faz Bush parecer um estadista e Bush fez Reagan parecer um intelectual, o atual Presidente ainda nos parecerá normal. Até a direita norte-americana se autodestruir com a sua própria radicalização e loucura.

Tudo isto é extensível à direita europeia que se está a trumpizar e àquela que com ela se alia. Onde a direita moderada e democrática achou que venceria esta loucura integrando-a no sistema foi derrotada. Porque essa absorção só serviu para legitimar aos olhos de muitos o que deveria ser aberrante. Angela Merkel foi das poucas a perceber que esse não era o caminho e é das poucas que não está refém desta loucura. A noite eleitoral de terça-feira, o inédito ataque de Trump ao sistema democrático eleitoral do país e a cumplicidade de todo um partido mostram que a integração da extrema-direita no poder não matará este fenómeno. Apenas lhe dará força para ser cada vez mais arrojada. Matando por dentro os que aceitem ser seus hóspedes.

A quanto está o PSD?

A quanto está o PSD?

Posted: 03 Nov 2020 04:03 AM PST

«Não há debate sobre a legitimidade do PSD governar a Região Autónoma dos Açores se conseguir uma maioria que suporte essa solução. Assim como não havia debate sobre a legitimidade da solução da “geringonça”. O facto de a direita estar a tentar construir essa maioria, mesmo sabendo que o PS ficou em primeiro, é a confissão da má-fé da sua posição de há cinco anos. Se acreditassem no que diziam não fariam o que consideraram errado só pelo facto de a esquerda também o ter feito. Reconhecem que a legitimidade do governo nacional, como a do governo central, resulta das eleições parlamentares e que é o Parlamento, e apenas ele, que tem autoridade para decidir quem governa.

Sendo legitima, esta negociação é perigosa. E, se chegar a nascer, a “geringonça” de direita é mais complicada do que a de esquerda. São precisos cinco partidos, dois deles estreantes e com provas a dar. E um deles é o Chega.

É confortável a simetria entre Chega e BE/PCP. E é falsa, porque estes partidos ocupam à esquerda o espaço que o CDS sempre ocupou à direita. Ainda assim, vários comentadores, mortinhos por normalizar Ventura, vieram desdramatizar um possível acordo entre o PSD e o Chega, usando a “geringonça” como exemplo. Julgam que a História é um contínuo onde se confrontam moderados e extremistas. Só que os riscos para a democracia vêm de lugares diferentes em momentos diferentes. Nem sempre dos extremos, nem sempre dos dois em simultâneo. Qualquer pessoa que tenha a mínima noção do tempo histórico que vivemos percebe, mesmo que seja de direita, que é da extrema-direta que hoje vem o perigo para as democracias liberais. Que é ela que tem, neste momento, a capacidade e os instrumentos políticos para subverter o sistema democrático.

Não vou perder tempo a discutir as posições políticas e ideológicas do BE e do PCP, os regimes que cada um apoia (não são os mesmos) e o amor que têm ou não têm pela democracia. O debate no espaço público, onde uma pessoa como eu é colada a Maduro ou à ditadura castrista, está tão degradado que nem acredito na possibilidade desta conversa ser produtiva. Fico-me por isto: os perigos que cada partido representa não resultam das suas posições explícitas ou imaginadas mas do que querem e podem fazer no exercício prático da sua atividade política real. Para isso, não precisamos de suposições. Bloco de Esquerda e PCP não põem, no exercício das suas atividades políticas, o Estado de Direito democrático em risco. Não o contestam em nenhuma proposta que tenham feito, nas últimas décadas, no Parlamento. São dois partidos do arco constitucional. Tanto como o CDS, pelo menos.

Mas nem preciso de fazer este exercício de memória recente. Basta-me comparar o que se está a tentar comparar: a “geringonça" e o que se sabe das conversações para um acordo nos Açores. Na “geringonça”, BE e PCP apresentaram a sua agenda social, defenderam mudanças na lei laboral (no que saíram derrotados em quase tudo) e exigiram o recuo em medidas impostas pela troika. Nem uma única das suas propostas estava relacionada com a natureza do nosso regime constitucional. Na negociação para a formação de um governo regional, e não de uma maioria parlamentar nacional, o Chega exigiu imediatamente o envolvimento do PSD numa revisão constitucional. E isto basta para perceber todas as diferenças.

Ao contrário do Bloco e, sobretudo, do PCP, o Chega não tem uma densidade ideológica que lhe permita propor a superação do sistema económico vigente. Pelo contrário, defende o aprofundamento agressivo do que já existe, reforçando desigualdades sociais e económicas. Mas, mesmo que o PCP tenha uma agenda revolucionária, não se encontra no seu programa eleitoral, nas suas propostas legislativas e na sua prática autárquica nada que seja incompatível com a nossa tradição democrática. Pelo contrário, mesmo não sendo revolucionário, o Chega tem propostas legislativas que subvertem a continuidade constitucional. Traduzida num slogan em defesa de uma “IV República” e na vontade de fazer uma profunda revisão constitucional, elas incluem medidas atentatórias da nossa tradição humanista. E estas propostas precisam de romper o cerco sanitário que as deslegitima aos olhos de muitos. Não interessa ao Chega se as suas propostas contarão com o apoio do PSD, desde que conte com o seu beneplácito para iniciar esse processo tendo apenas um deputado. Só quer meter o pé na porta.

Como outros líderes populistas de extrema-direita, o que interessa ao Chega não é a aplicação do seu programa. É a normalização do seu discurso, abrindo caminho ao abandono de consensos civilizacionais. Pretende criar um corte político que lhe dê espaço para crescer. E esse corte é o caos, como se tem visto pela forma como os seus ativistas têm multiplicado movimentos para pôr em causa o combate à pandemia, imitando outros partidos congéneres. Felizmente, com pouco sucesso. Deste caos, não crescerá a proposta autoritária sonhada por saudosistas como Jaime Nogueira Pinto. Partidos como Chega são apenas oportunistas. Mas o Chega não deixará de aproveitar a atual fragilidade do PSD e do CDS e o momento trágico que vivemos para tentar criar o clima que permita fazer implodir o sistema partidário, crescendo sobre as suas cinzas, como outros fizeram.

Se não perceberam de que massa é feita esta nova direita, vejam como Trump se prepara para reagir à possibilidade de uma derrota nas urnas, tentando impedir que votos sejam contados, semeando o caos institucional e recusando a vontade popular. Não se trata de saber que partidos acreditam ou não acreditam na democracia. É daqui que vem o perigo - e quem o tente normalizar é cúmplice.

Se Rui Rio abrir a porta ao Chega, abrirá a porta à destruição do seu próprio partido, como Costa nunca abriu quando conversou com o BE e o PCP. Como o PP o fez quando deu ao VOX as armas para desfazer a direita espanhola. Pablo Casado percebeu-o agora, tarde de mais. Se forem verdadeiras as notícias que têm saído e ainda não foram desmentidas, é assustador ver como basta a simples liderança de um governo regional para o PSD abrir um processo negocial com o Chega que ultrapassa os limites regionais e, ainda por cima, passa por temas constitucionais. É caso para dizer que o PSD está em saldos.»

Daniel Oliveira

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Estado de emergência: declaração de voto

por estatuadesal

(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 05/11/2020)

A pandemia que estamos a atravessar desafiou-nos juridicamente, na medida em que as leis em vigor não foram pensadas para um fenómeno desta natureza. É por isso compreensível que o Governo tenha sentido dificuldades e tenha enfrentado críticas pelo recurso a diplomas como a Lei de Bases da Proteção Civil para restringir direitos, liberdades e garantias através de Resoluções do Conselho de Ministros.

Uma calamidade é, certamente, um fenómeno limitadíssimo no tempo, daí que a referida lei autorize o Governo a atuar em termos que nunca tive por admissíveis em situação pandémica, situação essa que é global e de duração ilimitada.

Tenho sustentado que a Assembleia da República não podia ser afastada, como foi, em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias. Se compreendo a dificuldade do momento presente a urgência de um conforto jurídico para correta atuação do Governo, por isso mesmo, creio que teria andado bem o Executivo, e andará bem se o fizer rapidamente, se tivesse apresentado uma proposta de lei à Assembleia da República que servisse de autorização legislativa à sua atuação em tempos pandémicos. Não seríamos inovadores, já que foi o que se fez em França, com a “lei da urgência sanitária”, no Reino Unido, com a “Coronavirus Act 2020” ou em Itália, países onde o Parlamento não perdeu a centralidade na matéria, o que aqui seria, também, de enorme importância, por respeito pelo artigo 165/b da Constituição e porque o Governo responde perante a Assembleia da República.

Lendo o Decreto do Senhor Presidente da República, rapidamente nos apercebemos da desadequação da figura da Declaração de Estado de Emergência aos tempos que vivemos. Não há qualquer razão para se lançar mão de um estado de exceção constitucional que existe para suspender alguns direitos, liberdades e garantias. Tanto assim é, que não há direitos suspensos.

O Decreto presidencial limita-se a autorizar o Governo e as autoridades competentes a “limitar, restringir ou condicionar parcialmente o exercício” vários direitos (liberdade pessoal, liberdade de circulação, liberdade económica, direitos dos trabalhadores, direito ao desenvolvimento da personalidade). Diz-se que tem carácter preventivo, o que não tem qualquer cabimento constitucional.

Entendo que estamos perante um desvio de poder constitucional. O Senhor Presidente da República lança mão de um instituto constitucional que tem uma função delimitada para lhe atribuir uma outra, precisamente a que caberia ao Parlamento, essa de restringir ou autorizar a restrição de direitos, liberdades e garantias.

Tudo isto é apenas tolerável pela imaterialidade do presente Estado de emergência, na condição, no que me toca, de ser aprovado, rapidamente, no Parlamento, um quadro jurídico que habilite o Governo a atuar em tempos pandémicos, ou cairemos no absurdo de renovarmos com banalidade, de quinze em quinze dias, um instituto decretado e executado por democratas, mas que amanhã será o precedente apetecido sabe-se lá por quem.

Em suma, nada justifica que não seja o Parlamento o protagonista da medida em que podem e devem alguns direitos, liberdades e garantias ser restringidos, a responsabilidade pela ação política é, depois, claro, do Governo, e só do Governo, que responde perante o Parlamento, ao contrário do Presidente da República.