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segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Vacinas para pessoas importantes

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 14/11/2020)

No dia 5 de setembro de 2020, o Governo anunciava aos quatro ventos que tinha decidido e executado a maior compra de sempre de vacinas da gripe — 2 milhões de vacinas — e que as primeiras iriam chegar mais cedo às unidades de saúde para garantir a vacinação dos grupos de risco. Numa divisão em idades puramente arbitrária, os com mais de 65 anos ficaram abrangidos pelo Plano Nacional de Vacinação. Considerados grupo de risco. Quem tiver, digamos, 64 anos e 11 meses estará salvo, porque os vírus da gripe e da covid encaram estas coisas da idade com uma atenção extraordinária e poupam o ‘utente’ com mais de 60 anos. Há prioridades, vamos aos que têm mais de 65 primeiro, cogita o vírus.

Portugal tem 10 milhões de habitantes, 2 milhões com mais de 65 anos, logo, mais de 2 milhões com mais de 60 anos. Pensei que 2 milhões não parecia uma quantidade útil ou apreciável. E teríamos sempre de excluir o azarado com 59 anos e 11 meses, independentemente do seu estado de saúde.

Ao mesmo tempo, o Governo avisava que toda a gente deveria vacinar-se contra a gripe este inverno, porque a confluência do corona com a gripe sazonal poderia complicar e tornar-se perigosa ou fatal. O povo, obediente, ouviu. No dia 5 de setembro, o país tinha 15 mil infeções ativas e 400 novos casos de infeção. Ficámos descansados.

No dia 28 de setembro, o XXII Governo anunciava no site da República Portuguesa o início da campanha de vacinação contra a gripe, intitulada “Vacine-se por si, vacine-se por todos”, e ao mesmo tempo a ministra da Saúde, Marta Temido, visitava a Estrutura Residencial para Idosos (ERI) da Casa do Artista, em Lisboa, onde estavam a ser ministradas vacinas a 69 residentes e 42 profissionais. Em declarações à comunicação social, única razão pela qual a ministra se interessou subitamente pelos idosos da Casa do Artista, Marta Temido afirmou que “este é um momento muito especial, porque estamos num ano absolutamente extraordinário e que tem exigido o melhor de nós todos”. Justificou a escolha da Casa do Artista para a sua propaganda e para esta indigência (que os cidadãos ouvem até à náusea) porque a Casa do Artista não tinha tido até aí casos de covid entre utentes e profissionais, um “resultado que nos encoraja a todos”. Destacou ainda o “envelhecimento ativo” que se pratica nesta instituição, onde habitam “várias pessoas que já ultrapassaram os 100 anos e que, até este momento, tinham vidas bastante ativas artística e socialmente”.

Logo, o problema do lar de Reguengos de Monsaraz, e o de todos os outros, os dos velhos empilhados, é não ter “envelhecimento ativo”. E não serem “artistas”, uma espécie ameaçada em tudo menos na idade, caso cheguem aos 90 ou aos 100 anos. Temido rematou, noutra pérola discursiva: “Têm de estar aqui sujeitos a uma enorme pressão, e isso também é um exemplo para toda a sociedade.” A ministra ficou bem na fotografia. Nunca mais ouvimos falar na Casa do Artista. Segue para bingo.

Três dias antes, a 25 de setembro, no site da DGS, Maria da Graça Gregório de Freitas publicou a norma 0162020, instituindo a divisão entre os vacinados do plano e os não vacinados, sem deixar de explicar as razões pelas quais era importante a vacinação contra a gripe. A primeira fase estava iniciada, a segunda fase iniciar-se-ia a 19 de outubro, com o plano de dar a vacina a pessoas com idade igual ou superior a 65 anos, doentes crónicos ou imunodeprimidos com 6 ou mais meses de idade, trabalhadores da saúde ou prestadores de cuidados e pessoas incluídas nos contextos definidos no Quadro III — Anexo. Recomendava-se também a vacinação de pessoas com idades entre os 60 e os 64 anos. A vacina devia ser administrada durante o outono e o inverno, de preferência até ao fim do ano civil.

Esta última recomendação e as palavras “de preferência” são úteis não apenas para sossegar o utente de 64 anos e 11 meses mas para insinuar que uma vacina deve ser tomada o mais cedo possível para fazer efeito. Claro que se o utente levar a vacina no dia 30 de dezembro e apanhar a gripe a 5 de janeiro, altura de infeções do Natal e Ano Novo, o vírus da gripe terá certamente em linha de conta que, não tendo conseguido a vacina mais cedo, o utente não deverá ser infetado. O vírus espera, e o mesmo fará a covid por simpatia. Há prioridades.

O Quadro III — Anexo refere quem tem direito a vacina gratuita. Todos os outros que quiserem ser vacinados, incluindo os não gratuitos do grupo entre os 60 e os 64 anos, que se recomenda vivamente que sejam vacinados, devem ter acesso à vacina nas farmácias comunitárias mediante prescrição médica, com comparticipação de 37%. A DGS afirmava que a vacina “já está disponível”.

Tendo ouvido durante o verão que a vacina da gripe era essencial para proteger as pessoas no inverno, o utente foi à farmácia do bairro e inscreveu-se para comprar e tomar a vacina. As primeiras inscrições foram feitas em junho e julho e continuaram nos meses seguintes. O Governo e os ‘peritos’ mandam. O povo obedece. Como a vacina é relativamente barata, mais inscrições se seguiram. Aqui chegados, depois de tanta propaganda, calculei que 2 milhões era uma quantidade ínfima. Eu calculei, o Governo não calculou. E continuou a recomendar a vacinação geral.

Com a primeira fase da vacinação começada, foram disponibilizadas 350 mil vacinas a 28 de setembro. Velhinhos social e artisticamente ativos foram vacinados. Muito bem. A 10 de novembro de 2020 não há uma única vacina disponível nas farmácias. Não há vacinas nos hospitais. Esgotaram. Não se sabe quando chegam. O Governo nada disse sobre o assunto.

Temos pessoas do Plano Nacional de Vacinação, incluindo os com mais de 65 anos, em lista de espera. Temos pessoas que querem comprar a vacina e que se inscreveram no verão em lista de espera, depois dos grupos de risco. Temos farmacêuticos que dizem que não sabem quando recebem vacinas, ou se as recebem, e que o Governo disponibilizou apenas 200 mil vacinas para as farmácias. Não haverá vacinas para todos.

Nas farmácias há ameaças, discussões, iras, violência verbal. Há quem conclua que não vai ser vacinado, incluindo o pobre utente com 64 anos e 11 meses. Há quem insulte, barafuste, espinoteie. Para a vacina administrada nas farmácias é medida a temperatura do utente, e os dados são introduzidos num sistema informático partilhado com o SNS. Quais dados? Não se sabe. Isto é constitucional? Não se sabe.

Diz-se por aí que na segunda quinzena de novembro chegarão mais vacinas. O rumor anterior dizia que chegariam no princípio de novembro. As farmácias avisam que não serão suficientes para as listas de espera e as marcações dos vacinados gratuitos. Muito menos para os da lista não gratuita. A inquietação cresce. A ira também.

Estamos em Portugal. Em paralelo, há um mercado negro das vacinas. Não tanto movido a dinheiro, movido a influência. O dinheiro ajuda. Quem conhece uma pessoa que conhece uma pessoa que conhece um político importante, tipo ministro ou família ou amigo, ou um médico importante, ou mesmo um ‘perito’, arranja a vacina. Ainda bem que o Presidente Marcelo conseguiu tomar a dele a tempo e horas.

Imagine-se tal incompetência e tráfico de influência aplicados à vacina da covid.

sábado, 14 de novembro de 2020

Injectar lixívia em política

por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 14/11/2020)

Pacheco Pereira

Um dos principais argumentos dos defensores do acordo com o Chega é a similitude entre a unidade da direita sob a direcção do PSD e os vários acordos do PS com o BE e o PCP. Se “eles” o podem fazer, por que é que “nós” não podemos? Sim, admitem, o Chega é pestífero, mas não o é mais o PCP ou o BE, com quem o PS se aliou para governar? O Chega é racista e xenófobo, e o PCP e o BE não são contra a Europa e a NATO, e amigos dos ditadores comunistas? Por aí adiante...

Esta comparação não tem qualquer fundamento nem factual, nem social nem histórico nem de ciência política, faz parte apenas de uma narrativa política autojustificatória para 2020. É o equivalente aos absurdos de Trump com a hidroxicloroquina ou o injectar lixívia nas veias para “limpar” o corpo do coronavírus.

Para nos colocarmos em 2020 e não em 1917, ou em 1933, ou em 1975, façamos uma distinção entre a tradição e o programa genético dos partidos e aquilo que é hoje o seu “programa activo”. O “programa activo” é o que um partido faz de facto, como actua, como recruta, como cresce ou diminui, o que é que o torna um sucesso ou um falhanço, que imagem tem na sociedade e junto dos seus militantes, “o que é que o faz/os faz mexer”, ou seja, a identidade prática do partido. A tradição, a história, o conteúdo programático original são muito relevantes e estão sempre presentes, mas, para analisar o que é a actuação, o carácter, a “natureza” de um partido, sem ser de forma a-histórica, ou seja, no presente, o “programa activo” é mais relevante porque toma em linha de conta a factualidade da sua actuação. Esta diferenciação não é nova e já foi usada para a história do PSD, distinguindo entre o conteúdo programático e a “história não-escrita”, ou seja, a história do partido como fonte de identidade.

Voltemos à equivalência Chega/BE ou PCP. São o BE e o PCP partidos “revolucionários” cujo objectivo é derrubar a democracia, substituindo-a por uma ditadura do proletariado ou um eufemismo como a “democracia avançada”? Se tivermos em conta a tradição dos vários grupos esquerdistas que formaram o BE e a génese e a história do PCP, a resposta é sim. Ambos têm origem na tradição comunista de raiz marxista-leninista. Mas de há muito que quer um, quer outro têm “programas activos” bem longe dessa tradição. Não vemos nem o PCP nem o BE preparar-se para a revolução, inevitavelmente armada e violenta, nem a organizar um sector militar clandestino nem a cumprir nenhuma das explícitas obrigações de um partido comunista traduzidas nas célebres 21 condições da Internacional Comunista. E sempre foi claro desde Lenine que estas condições são para cumprir, sob pena de estarmos a falar de partidos que se “social-democratizaram” ou se “aburguesaram”.

Nem o PCP nem o BE, cuja composição agrupa várias tradições esquerdistas, do maoísmo ao trotskismo, e que têm génese no leninismo organizacional, o fazem. E toda a panóplia de elementos complementares, seja a abolição da propriedade, a luta de classes, o anticapitalismo, é isso mesmo, de elementos complementares, que não são exclusivos do comunismo, mas partilhados pelo anarquismo, pelo fascismo, pelo nacional-socialismo, pelo socialismo radical. E só a deslocação excessiva das classificações políticas para a direita considera que sindicatos, greves, manifestações, combate aos despedimentos ou mesmo propostas anticapitalistas (que o PAN e a Iniciativa Liberal também fazem) são “revolucionárias”.

No caso do Chega, a solução para o problema é simples: “pedófilos castrados já”, o que podemos traduzir sem perda de sentido, acabe-se, castre-se o “sistema político”, ou seja, a democracia que produz pedófilos e criminosos.

Pode-se perguntar se isto acontece por oportunismo, para disfarçar a sua natureza aceitando as regras democráticas... Se é assim, já dura há muito tempo para que seja um disfarce. O tempo conta para o “programa activo” porque ele condiciona hábitos, práticas organizacionais, recrutamentos, processos, culturas. E isso muda quase tudo.

Vamos ao Chega. Como é um partido novo, o programa e as propostas estão ainda próximas do “programa activo”, mas existe uma diferença de conveniência entre o discurso oficial e o discurso real, aquele que recruta, move os militantes, dá identidade ao partido. E esse é claramente racista, xenófobo, violador dos direitos humanos e antidemocrático. Podem-se apontar muitos exemplos, mas, por economia de espaço, fico-me pela pedofilia, uma das bandeiras do Chega, que levou mesmo a manifestações de rua.

Corrupção e pedofilia são um par no discurso do Chega, mas as faces que são apresentadas nos cartazes são apenas de políticos, excluindo qualquer referência, quer a empresários ou a banqueiros, no caso da corrupção (“Portugal é um mar de corrupção: Duarte Lima, Vara e Sócrates”, diz um cartaz), quer a padres, no caso da pedofilia. O Chega entende que há uma ligação entre pedofilia e corrupção e essa ligação é o “sistema político”: “Pedofilia é igual a podridão do sistema político”, diz um cartaz.

Esta obsessão com a pedofilia e com a castração é reveladora, porque no discurso do crime e da ordem, que é vital no Chega, não são todos os crimes que contam. Por exemplo, a violência doméstica, que mata muitas mulheres por ano, não é crime para o Chega. Na verdade, nem é o crime nem a injustiça nem a pedofilia nem a corrupção que contam, mas a sua correlação com a política democrática. A solução para o problema é simples: “Pedófilos, castrados já”, o que podemos traduzir, sem perda de sentido, por acabe-se, castre-se o “sistema político”, ou seja, a democracia, que produz pedófilos e criminosos.

Nos seus “programas activos”, o BE e o PCP caminharam para a democracia, o Chega caminha para fora dela e a força da sua inegável vitalidade vem daí. Os eleitores do Chega não são inocentes, sabem muito bem em que votam e o que votam.

O factor humano

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 14/11/2020)

Miguel Sousa Tavares

1Em devido tempo, quando Gonçalo Ribeiro Teles foi homenageado nos seus 80 anos, tive ocasião de escrever sobre ele aquilo que pensava: que Portugal tinha para com ele uma imensa dívida de gratidão — a qual, nunca tendo sido reconhecida, ouvindo o que ele dissera durante décadas, se transformara numa obrigação pública de pedir-lhe perdão. Porque Gonçalo Ribeiro Teles arrastou a sua silenciada razão durante 40 anos em que teve razão antes de tempo, a tempo de ser escutado ou ainda a tempo de atalharmos os disparates trágicos que fizemos por o não ter escutado. Tivéssemo-lo feito, algures durante esses 40 anos, e Portugal seria hoje um país incrivelmente mais equilibrado, mais sustentável, mais viável. Mas, no fundo, creio que ele próprio, após os anos iniciais de liberdade em que tudo parecia novo e possível, nunca mais terá alimentado grandes ilusões. Após a sua passagem pela política, nesses anos iniciais, da qual nos deixou as duas leis estruturantes do ordenamento do território — a da Reserva Agrícola Nacional (RAN) e a da Reserva Ecológica Nacional (REN), desde então meticulosa e paulatinamente retalhadas pelos sucessivos governos —, ele terá compreendido, com amargura, que estava a pregar no deserto. É verdade — e isso fazia parte da sua extraordinária personalidade — que o seu optimismo e entusiasmo, quase infantis, nunca esmoreciam, mas, no seu íntimo, creio que não alimentava grandes ilusões sobre o caminho que Portugal iria escolher. A relação fundamental entre ambiente e agricultura, que ele tão exuberantemente defendia e explicava, seria desdenhada, como coisa utópica e sacrificada aos interesses de poderosos lóbis; a terra, como superfície sensível, insubstituível e dona das suas regras, adequadas aos recursos naturais existentes e à sabedoria dos que sabiam amá-la e cultivá-la, seria vandalizada pela agricultura intensiva e predadora de recursos, nas mãos de gente que não conhece e não ama a terra, mas apenas cultiva as regras dos subsídios europeus e a ambição do lucro rápido; e o ambiente seria sacrificado a cada passo pelas sempre inadiáveis e inquestionáveis exigências da indústria turística e os seus infalíveis projectos PIN — que hoje, face à pandemia e à queda a pique do turismo, nos revelaram a que ponto a aposta suicida numa economia monotemática, de nenhum valor acrescentado e de preços crescentemente desvalorizados, nos deixou mais expostos à crise que nenhum outro país.

Mas tudo isso, tudo o que o Gonçalo Ribeiro Teles foi tentando dizer e ensinar, exigia três coisas a que os portugueses são sabidamente avessos: informação, reflexão e paciência. E com nenhuma dessas três coisas se satisfaz o povo, com nenhuma delas se ganham eleições. Portanto, trataram de ir condecorando o Gonçalo e fazer tudo ao contrário do que ele dizia. Sabiam que ele tinha razão, mas punham-lhe uma medalha ao peito, aliviavam assim a consciência e seguiam para eleições. Desgraçadamente, é assim que se governa hoje em dia, e a culpa é recíproca: de governantes e de governados.

Mas o Gonçalo era um senhor, continuava sempre a sorrir e a tentar explicar-lhes coisas evidentes por si, mesmo sabendo que ninguém o iria escutar. Estou a ouvi-lo: “Estás a ver, Miguel, esta moda dos girassóis é um disparate. Plantam-nos porque há um subsídio, mas depois nem sequer os colhem porque o subsídio é só para o plantio. Desde quando é que se semeia o que não se vai colher?” Aposto que morreu a sorrir, como sempre o encontrei. Um sorrido de gratidão pela infinita beleza que viu na natureza durante 98 anos de vida, e a que prestou homenagem desenhando jardins que nos encantam e ensinando-nos coisas que todos devíamos aprender. E um sorriso de tristeza pela nossa infinita estupidez e ingratidão.

2 Apesar de tudo, tivemos um Ribeiro Telles. E um Mário Soares e um Ramalho Eanes e muitos outros e outras cuja enumeração agora seria extensa, mas que, em vários momentos da nossa vida em liberdade, me deixaram confortado por ser português. Apesar da facilidade com que botamos abaixo qualquer um que nos queira governar, apesar da sempre pronta acusação de corrupção que reservamos para os que estão em cima — em contraste com a benevolência que reservamos para quem está numa autarquia perto de nós —, tivemos sempre gente de que nos podíamos orgulhar enquanto governados e nunca descemos ao ponto de conviver sem nojo com personagens abaixo do mínimo de decência aceitável. E nunca como hoje, quando, olhando à nossa roda e vendo a categoria de gente com que outros povos são servidos, isso é tão evidente.

Quando penso que uma democracia de 328 milhões de cidadãos, cuja Constituição começa com as solenes palavras “We, the people...”, está agora suspensa de um psicodrama indecoroso e humilhante causado por um Presidente que não aceita o resultado das eleições e que luta para que o Supremo Tribunal — de que um número suficiente de juízes escolheu pessoalmente e para este efeito — mande rasgar os votos necessários para transformar uma derrota numa vitória, percebo como pode ser afinal ténue a linha que separa a liberdade da tirania, a decência da falta de vergonha. O que se está a passar nos Estados Unidos, embora não fosse de todo imprevisível, ultrapassa, porém, tudo aquilo que seríamos capazes de adivinhar que gente decente conseguisse aceitar. O espanto não é que Donald Trump, os filhos e o genro, ou gente da lavra de um Giuliani ou de um Mitch McConnell, líder do Senado e homem de inabaláveis princípios voláteis, se prestem a dar ao mundo a imagem dos Estados Unidos como um país de Terceiro Mundo, com um Presidente-ditador de opereta, que só aceita os resultados de eleições se as ganhar e só abandona o palácio à força. O que espanta é que o Partido Republicano aceite ser aterrorizado, chantageado e tornado escravo de um touro enraivecido que há muito já deu sinais evidentes de não se preocupar com os interesses do povo que governa, mas apenas com os seus interesses próprios, exacerbados por um egocentrismo e um narcisismo doentios.

Benevolentemente, poderíamos dizer que Donald Trump é um caso clínico, de tal forma o seu comportamento social é doentio. Mas isso seria benevolência a mais: o que ele é verdadeiramente é um caso humano, na sua absoluta desumanidade e crueldade — um homem capaz de ordenar a separação das mães e dos filhos, bebés e crianças, capturados e internados em campos de concentração por terem atravessado a fronteira sul clandestinamente, ou capaz de friamente preferir deixar morrer 240 mil americanos (20% das vítimas mundiais de covid, num país que apenas tem 4% da população mundial), para não prejudicar a economia, o seu maior trunfo eleitoral. Mas, de novo, o que é verdadeiramente aterrorizador é pensar que nada disto era desconhecido. Mesmo que o tivesse querido, Donald Trump nunca teria conseguido disfarçar aquilo que é a sua bestial natureza. E foi sabendo-o que mais de 71 milhões de americanos votaram nele: porque gostam de ser governados por alguém assim. E é por isso que o papel do Partido Republicano é nesta hora absolutamente decisivo para o futuro da democracia americana. Entalados entre um Presidente disposto a tudo, incluindo um golpe de Estado constitucional para se manter no poder, e uma multidão de apoiantes fanatizados, incitados pelas redes sociais a não acreditarem em nada que não nas “verdades alternativas” que Trump lhes serve, os congressistas republicanos têm pela frente uma escolha clara: porem-se ao lado dos seus interesses eleitorais a curto e médio prazo ou porem-se ao lado da Constituição. Deixarem-se levar pela turba ou cumprirem o papel que lhes cabe numa democracia representativa, a tão desprezada função de serem uma elite. As elites em que sempre assentaram as democracias e as nações civilizadas.

Nero contra Roma. Eis o ténue fio da navalha em que está suspensa, nos dias que correm, a democracia nos Estados Unidos da América. Era previsível, mas, apesar de tudo, não deixa de ser impressionante. Tudo isto é, afinal, tão frágil e tão dependente de uma coisa tão simples: o factor humano! E ainda há quem defenda que não são os líderes que escrevem a História!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

PSD fez bem em formar governo nos açores com o apoio do Chega?

Posted: 13 Nov 2020 11:57 AM PST

É certamente a primeira vez que divulgo um texto de MANUELA FERREIRA LEITE. Sim, lembro-me que sugeriu a suspensão da democracia por seis meses, mas o contexto e os tempos eram outros. Alguém que se diz incondicionalmente social-democrata junta-se sem reservas a todos os que já «normalizaram» o Chega como «compagnon de route» – para já nos Açores, quando puder ser em todo o Portugal.
Como alguém escreveu por aí, agora «há nós e eles». Ou, como diz o velho ditado, «diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és»

«Ao fim de 24 anos de governos socialistas, os Açores apresentam os piores índices de pobreza, indicadores negativos na Educação e na Saúde, estagnação do desenvolvimento económico e social com índices mais baixos do que a média da União Europeia, menores do que o continente e incomparáveis com os da Madeira. Esta herança só poderá ser invertida com a alteração da política seguida que se tem caracterizado por uma excessiva presença do Estado na sociedade e por uma paralisante subsidiodependência dos cidadãos — 8,5% da população activa viva de subsídios. Daqui resulta uma indisfarçável e inevitável submissão dos cidadãos às forças políticas dominantes.

O resultado destas eleições mostra que a população açoriana não quis mais o Partido Socialista a governar sozinho. Quis mudar. Para isso, varreu o Partido Comunista da Assembleia Regional e acrescentou-lhe a novidade de dois partidos recentes.

Perante este quadro, o PSD-Açores formará governo com o CDS-PP e o PPM, recuperando a Aliança Democrática, e assegurando o apoio parlamentar do Iniciativa Liberal e do Chega.

A necessidade imperiosa de abafar este revês eleitoral levou à demonização do acordo parlamentar entre o PSD e o Chega invocando as características ideológicas deste partido.

O que aprendi com a democracia leva-me a rejeitar esta reação. A democracia consagra um princípio fundamental e “sagrado”. O poder decide-se pelo voto e não pela força. Cada pessoa é um voto. Um voto livre porque é anónimo. Assim, não existem os votos dos iluminados e os votos dos ignorantes.

Há os votos dos eleitores que traduzem a sua escolha. É esta a grandeza da democracia. Os deputados eleitos têm igual legitimidade. Não há nós e eles. Divergimos nas ideias, não no estatuto.

Nem sempre dá jeito, mas é assim. O acordo parlamentar do PSD Açores com o Chega está escrito, não é secreto, é transparente. Os pontos acordados não beliscam os princípios e os valores do PSD.

O combate político faz-se pelo debate ideológico e pela prática virtuosa da governação. Não é desprezando os adversários e deixando os eleitores sozinhos à mercê de discursos que, por serem uma lista de ilusões, captam os desiludidos. A alma do PSD está intacta e não vira as costas, apesar das críticas, ao serviço patriótico que pode prestar ao notável povo açoriano, contribuindo para o progresso a que legitimamente anseiam.»

Manuela Ferreira Leite

A quem se encostam as «direitas democráticas»

Posted: 12 Nov 2020 06:13 AM PST

«Diz hoje Morais Sarmento, vice-presidente do PSD, para justificar a aproximação entre o seu partido e o Chega, que o PS tem telhados de vidro porque "o BE saúda a Venezuela e a Coreia do Norte". É curioso este argumento: negociamos com vigaristas porque vocês também fazem aliança com gente criticável.

Vamos aos factos (e nem comento a alegação sobre a Coreia do Norte, Sarmento não precisava de mostrar a sua imensa ignorância).

A relação com os presidentes da Venezuela foi desenvolvida pelos governos Sócrates e Passos Coelho, ou pelo presidente Cavaco Silva (na foto). Não foi por outros. Foi por estes.

O PSD e o CDS foram dos melhores aliados do Partido Comunista Chinês, a cujas empresas entregaram a EDP e a REN. Suponho que uns e outros estão muito gratos. E Morais Sarmento, num episódio que gosta de esconder, foi o orador convidado de um congresso do partido de José Eduardo dos Santos, com o qual tinha relações privilegiadas (na foto, o seu ministro dos estrangeiros com JE dos Santos).

Percebe agora porque é que o PSD gosta de tiranos? Ataca um partido, o PCP, que, tendo relações internacionais criticáveis, combateu a ditadura que efetivamente existiu em Portugal, e tenta confundir esse partido com o Bloco. Um truque para disfarçar o entusiasmo do PSD pela aproximação ao Chega. Mas é Morais Sarmento a falar, não se podia esperar mais.»

Francisco Louçã no Facebook