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domingo, 6 de dezembro de 2020

A vacina não cura a economia

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 03/12/2020)

Ao chegar ao fim do ano, as previsões antecipam uma queda do PIB mundial de 4%. Ultrapassará a da recessão de 2009 e será a maior desde o fim da Segunda Guerra. Os cenários ‘curtoprazistas’ são, portanto, imprudentes e, aliás, estão agora a dar lugar ao cinismo: não houve destruição criativa, queixa-se um analista, que pena não ter havido falências em catadupa para estimular o mercado. John Cochrane, um monetarista radical da Hoover Institution, propõe que “se deixe os bancos falir, de forma ordenada. As pessoas, computadores, edifícios são vendidos a novos donos, com novo capital, e o negócio continua como sempre”. Não vai tudo continuar como dantes, mesmo que haja o risco de se repetirem os mesmos erros em que os decisores são vezeiros.

PRIMEIRO ERRO: ORÇAMENTOS CURTOS

O ano próximo, quando quer que as vacinas comecem a alcançar a maioria da população, será de desemprego e falta de procura agregada. Na incerteza, só as políticas públicas podem corrigir a procura deficitária, razão para o FMI calcular um histórico multiplicador de 2,7 (um milhão de investimento público provoca um aumento de 2,7 milhões do PIB), e assim sustentar as redes sociais de proteção. Mas vão faltar recursos. A queda de receita de IVA e outros impostos pode alcançar os 10 a 20%, segundo as projeções da instituições internacionais, e em 2021 ficaremos longe do nível do produto de 2019.

Os fundos europeus poderiam cobrir uma parte dessa necessidade. O problema é que, embora ainda não se saiba como será resolvido o imbróglio com a Hungria e Polónia, mesmo no caso mais favorável esse contributo será atrasado (o empréstimo para despesas de lay-off deveria ter vindo em junho e chegou no último dia de novembro) e é reduzido. Portanto, vai ser preciso contrair dívida, beneficiando dos juros negativos. O que o orçamento não pode é ser curto. Eis uma boa razão para um orçamento suplementar, para corrigir o já aprovado, que é estruturalmente contracionista. Não haverá uma segunda oportunidade para responder a tempo aos problemas sociais imediatos.

SEGUNDO ERRO: ESPECULAR

Se sair do mundo real e ler as notícias das bolsas, notará a euforia. O índice S&P500 subiu 13% em novembro, um mês de rios de leite e mel, e as principais bolsas europeias incharam em 21%. Se alguém ainda tem dúvidas sobre esta anomalia, é melhor tomar atenção: a bolha concentra-se nas empresas que fizeram e farão grandes lucros, como as de comunicações, de publicidade (a Google e o Facebook), de gestão de dados e de informação. As bolsas estão intoxicadas com boas notícias e assim vão continuar. Como escrevia um economista do século XIX, se o lucro de uma operação for 10% haverá alegria, se for 20% será a loucura.

Ora, a euforia é ignorante. Na incerteza atual, já se registam três a dez vezes mais incumprimentos de hipotecas, o que pesa nos balanços dos bancos, e o efeito de arrastamento em 2021 será maior. As provisões têm crescido, os bancos procuram fusões desesperadas, mas nada disso evita que nasça um mundo novo em que os principais poderes financeiros mundiais passam a ser agências de transferências e pagamentos, ou gigantes como a Apple. Mais uma vez, não há regulação financeira que os domestique.

TERCEIRO ERRO: IGNORAR PROBLEMAS

Os restaurantes e o turismo vão reduzir-se por muito tempo. Por isso, haverá setores que não recuperam com a vacina. Como a economia portuguesa depende de alta intensidade de emprego em atividades com baixo valor acrescentado e vinculadas à procura interna, isso significa desemprego. Essa é portanto a prioridade, recuperar a procura que salva empregos.


O mestre da paciência impaciente

Eduardo Lourenço será lembrado como ensaísta, um género difícil de definir e que mora algures entre a história, a política, a filosofia e até a literatura, e nesse cruzamento os labirintos, a saudade, e as suas imagens de Portugal povoarão muitas homenagens, que espero que não ignorem o seu subtil sentido do paradoxo, ou como ele sentia o nosso país. Será lembrado como um europeísta convicto, como era, mesmo que detestasse a financeirização do mundo e os caminhos que essa vertigem autoritária impõem à civilização. Espero que não seja esquecida a sua impaciência tão paciente, a de querer o mais difícil, a democracia.

Não sei se o ensaio, a vontade europeia, e antes de mais o empenho democrático, que são tudo, serão suficientes para resumir quem foi Eduardo Lourenço. Faltará sempre a sua conversa e inquietação, a pergunta sobre o brilho dos olhos daquela pessoa, o gesto de abrir os seus jornais diários franceses, a curiosidade sobre o mundo. “Estou saindo”, disse ele numa das últimas, talvez mesmo a última entrevista. Sabia que o tempo era curto, já passei o meu prazo, dizia aos amigos, e continuava a olhar com modos de ver.

Mas há tempo para a ideia? Não há, não mora no imediato. Por isso, Eduardo foi radical à sua maneira, heterodoxo impenitente. Repugnava-lhe o pulsar do capital, este “‘bezerro de oiro’ mítico, de natureza e efeitos demoníacos, como jogo, de cada vez mais sofisticado, de um ídolo de papel de propriedades mágicas, pois tem a função — convencionada mas reverenciada — de substituir ‘o valor’, qualquer que seja o bem, pelo ficcional que o representa”, como me escreveu há três anos. E, se alguns não notaram, exigia-nos que soubéssemos distinguir o que “é aceitável ou inaceitável nesta espécie de Guerra de Troia sem fim que é a da luta entre os que dominam os mecanismos vitoriosos da economia mundial e os que sofrem os seus efeitos devastadores, (através de) um ato de coragem com o que isso implica de decisão ética e lucidez”. Coragem e lucidez, tanta falta que nos fará Eduardo Lourenço.


Na saúde, prometer não vale

O congresso do PCP em Loures festejou medidas aprovadas no Orçamento, entre as quais a extensão dos horários dos centros de saúde até às 22h e a sua abertura aos sábados entre as 10h e as 14h. Uma excelente regra para os cuidados primários de saúde. Só que não vai ser aplicada. A Associação de Medicina Familiar explicou a razão com meridiana clareza: faltam os profissionais que garantam essa extensão de horário. De facto, os centros de saúde fazem-no nos picos da gripe, mas por poucas semanas e com horas extraordinárias. Não têm médicos e enfermeiros para o fazer todo o ano.

E, como se viu, não é fácil: ficaram desertas um terço das vagas do recente concurso para 435 especialistas em medicina familiar. Veremos as contas no fim do ano, mas arriscamo-nos a que no fim de 2020, com as aposentações, tenhamos menos médicos de família do que no início do ano. A promessa de horários alargados é uma intenção sem meios. Faltou a única regra que salvará o SNS: ir buscar especialistas ao privado.


Melhor seria ouvir o banqueiro anónimo

Era de esperar que o Parlamento impusesse agora ao Governo o que o primeiro-ministro não conseguiu impor em maio ao ministro das Finanças, a restrição de novo pagamento ao Novo Banco sem uma auditoria que confirme a legalidade da conta. O que não se esperaria é que o Costa soltasse as feras e, antes de todos, anunciasse ao mundo, mesmo com telefonema a Lagarde, que Portugal tinha entrado em incumprimento contratual. De todas as palavras, era das poucas que jamais poderia ter usado, mas a vertigem da trica levou-o a essa senda. Bem veio o presidente do banco corrigir Costa, afinal as contas não estão fechadas, não há ainda pedido de capital, terá que ser aprovado, é assim o contrato. O mal estava feito. Mesmo recuando na sua ameaça vã de levar o assunto ao Tribunal Constitucional, e podemos perguntar-nos como é que um Governo lança mão de bravatas deste calibre para logo depois abandonar a pose, a queixa de um incumprimento contratual foi sempre uma jogada imediatista.

E que pena o Governo preferir incendiar em vez de perceber o que um banqueiro anónimo logo veio sugerir a um jornal: excelente decisão, aproveite-se para impor regras a este fundo financeiro que tem cavalgado as contas portuguesas (e prejudicado os outros bancos). É nestes momentos que se nota que a finança pensa no poder e o Governo na manchete do jornal.

O ódio dos covardes que anda por aí

Posted: 05 Dec 2020 04:16 AM PST

José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«O livro de Cristina Ferreira merece ser lido nem que seja pela transcrição de comentários, tweets e outras formas de expressão nas chamadas “redes sociais”, com insultos dirigidos à própria, à sua família e aos seus amigos. E pela intenção de denunciar e combater esse mundo do ódio, de grosseria, de ameaças, de violência. Esse mundo é na sua quinta-essência o de uma forma vil de covardia, porque só o anonimato e a desresponsabilização explicam porque é que gente mesquinha, escondida no canto do seu telemóvel ou computador, faz do insulto, da intriga, da mentira e do ódio um passatempo quotidiano. Todas as pessoas com alguma notoriedade pública sabem que é assim, e um dos exemplos do livro de Cristina Ferreira mostra de que é que estamos a tratar:

“esta cristina na cama deve ser um cronho, k eu digo vos uma coisa, avaliar pela pessoa que se vê na tv, na cama deve ser um trambolho muita fava pouco vinho, vai te cronho, deves pensar k es a ultima bolacha do pacote, velha caduca…”

Aqui está do que estamos a falar, obscenidades, machismo, insultos, na linguagem gutural de um tal Paulo. Gostava que esse Paulo desse a cara para melhor se perceber este mundo de covardia, e sabermos do que se está a tratar, com cara e responsabilização. Porque, entre outras coisas, o que deveria acontecer é que o que é lei cá fora devia ser lei lá dentro, e isto é um crime.

Neste mundo de covardia, o livro é corajoso (comentário previsível: qual quê, essa gananciosa quer é ganhar dinheiro com a publicidade ao livro…). E não se surpreendam com este artigo, porque não me caem os parentes nem os pergaminhos na lama em dizer publicamente que concordo com o que concordo e ver o mérito da denúncia.

Noutras coisas, o meu mundo tem pouco que ver com o de Cristina Ferreira, não por ser aquilo a que se chama um “intelectual”, hoje mais um insulto do que um mérito, mas porque aqueles programas representam muitas vezes um papel perverso que têm mais relação com o mundo do ódio nas redes sociais do que se pensa. Critiquei António Costa, e essa crítica é extensiva a todos que foram lá fazer de cozinheiros e outras cenas esquisitas, e, eu próprio, tendo sido convidado, declinei agradecendo.

Nada tenho contra a chamada “televisão popular”, cujo papel em falar para as pessoas a quem ninguém fala e de quem ninguém fala é relevante. Mas não ignoro as relações entre a reality TV e aquilo que Cristina Ferreira critica. Há uma exposição do privado e do íntimo, que não só me repugna como tem um efeito inaceitável num dos valores civilizacionais, precário e frágil, a conquista da privacidade. A promiscuidade de que muitas vezes esses programas se alimentam acaba mais cedo ou mais tarde por limitar a liberdade de quem não traça uma linha muito firme entre o público e o privado.

Esta exposição e o abandono de qualquer pudor e privacidade que pululam nas revistas do jet-set, com centenas de pequenas figuras de fama escassa ou fugaz a “assumirem” namorados e outras coisas mais, representam um papel promocional na sua carreira que quase depende disso, dessa exposição, nem de obra, nem de talento, nem de esforço, muito menos de saber. Não estou a falar de Cristina Ferreira. E como são modelos para muita gente, que as inveja ou admira, ou as duas coisas ao mesmo tempo, fazem uma antipedagogia para as gerações mais novas e para os mais velhos que vivem dependurados no Facebook, dão origem a milhares de fotos de adolescentes a fazer beicinho, com pouca roupa, e abrem caminho para formas muito comuns de bullying nas escolas. Uma das formas clássicas é exactamente a circulação de fotografias íntimas mandadas a um namorado, que no fim do namoro ou até durante ele as envia para os colegas de turma. Isto e outras coisas mais, que permanecem como um fantasma a vida toda.

Podia dizer, como dizia Vicente Jorge Silva, o que é que “eles”, neste caso os políticos, querem quando se põem a jeito? Para “eles”, que se expõem para ganhar votos ou audiências ou dinheiro, não deveria existir a protecção da privacidade, vale tudo. Discordei, numa antiga polémica, com ele. Não, não vale tudo, mesmo quando o alvo se põe a jeito.

Já agora, sugiro à claque do ódio vários temas para comentários, tweets e outras excrescências sobre este artigo nas redes sociais, a começar pela acusação mais desejada, o miserável dinheiro. Não estou eu a querer agradar à minha “patroa” da TVI? Não estou eu a ajudar a vender o livrinho da dama por qualquer interesse financeiro ou para me promover à custa dela? Não quererei encostar-me à fama da senhora para obter likes e quejandos? Tudo isto será escrito porque o que faz mexer a cloaca das redes sociais são paus de madeira desta natureza.

Sempre existiu esta indústria do vilipêndio e agora vê-se mais? É verdade que sempre existiu e que agora se vê mais, mas também é verdade que agora é mais, mais descarado, mais vergonhoso, envolvendo mais gente, mais atenção fútil, mais dedicação ao mal, mais perseverança no insulto, mais covardia. Há gente quase profissional disto, que deve passar horas a escrever comentários como o que citei acima. Imaginem como é o mundo deles.

Sim, este elogio da denúncia de Cristina Ferreira é para vosso escarmento, vosso opróbrio, vosso desluzimento, vossa vergonha e, se tiverem de ir ao dicionário para perceber algumas palavras, ao menos ganha-se alguma coisa.»

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

A vacina não é de esquerda nem de direita

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 04/12/2020)

Clara Ferreira Alves


Eram 8 milhões. Eram 16 milhões. Eram 22 milhões. Todos os dias, os números de vacinas que Portugal vai comprar para vacinar o povo português muda de figura. E mesmo uma coisa tão simples como começar por dizer, vamos vacinar toda a população que queira ser vacinada e sensibilizar para a necessidade da vacina, se esboroou com as revelações de que os idosos de mais de 75 anos estavam “excluídos”. Li isto, juro que li, e depois li que os de mais de 80 anos também, e que a razão era porque não se conheciam os efeitos da vacina nestes grupos etários. Imagine-se uma pessoa desta idade ao ler isto. Que foi “excluída”. Fica decerto com pouca vontade de votar num governo do Partido Socialista. A seguir, vários dos participantes na comissão da ministra da Saúde para a administração das vacinas, assim que saíram da sala vieram contar aos jornalistas a sua versão da reunião. Houve mesmo um indignado que parece ter oferecido a sua vacina a um “idoso”, rasgando as vestes. Se for verdade, o idiota deveria ser excluído da dita comissão. Não é um adulto.

A comissão integra gente da epidemiologia e da virologia, da ciência, da DGS e do Infarmed. E os militares, para a logística, embora os militares chegassem tarde a este campeonato, como sabemos. Estranhamente, a comissão não integra gente dos transportes, nem especialistas da rede de frio. Estranhamente, a TAP “disponibilizou-se” para o transporte de vacinas. Li isto, juro que li isto. A TAP deveria ter lugar cativo nesta comissão, porque se alguma razão haveria para a nacionalização foi o interesse nacional de transportar o maior número de vacinas nos aviões. E, para esse transporte, os aviões têm de ser adaptados para as câmaras de frio, sobretudo as de gelo seco da vacina da Pfizer. A Lufthansa já começou a adaptar os aviões em tempo real. Não se “disponibilizou”.

Os peritos ainda estão a estudar a eficácia das vacinas? Não sabemos da sua eficácia nos “idosos”, sabemos que não temos modo de aferir, agora, a eficácia nos velhos. Não são certamente os peritos portugueses que vão fazer essa certificação. A vacina nunca foi dada em larga escala a gente das idades tardias. Nunca foi dada em larga escala, ponto final. Nunca foi dada em larga escala a doentes crónicos ou com patologias graves. Outros fatores entram em linha de conta, o estado de saúde do vacinado, a sua volição, a sua necessidade putativa, a volição da família no caso de incapacidade, a opinião dos médicos, etc., etc. Arranjar um critério único para estas vacinações é, por agora, impossível. Há que usar o senso comum e a melhor informação.

O que importa reter é que a sorte do Governo está ligada a esta operação nunca tentada, e que a escala e a incerteza obrigam a um nível de profissionalismo e competência muito elevados. A experiência da vacinação da gripe e outros dislates não conduzem à segurança da população. O governo tem falhado no método e na mensagem, na operacionalização dos desafios e na execução das decisões. Uma acumulação de erros na fase duríssima que se segue retirará o PS do poder. É por isso que o primeiro-ministro terá de fazer a boa política supervisionar os técnicos, para evitar o desastre desta primeira reunião e a asinina mensagem sobre a “exclusão dos idosos”.

Em Portugal, a proximidade entre os media e o poder político pode ser uma receita para maiores desastres e sucessivas fugas de informações erradas ou distorcidas. Há que evitar anestesiar a população com rumores e manchetes sensacionalistas e falsas. Para isso, o primeiro-ministro teria a prudência de convocar os grupos de media e os seus diretores e responsáveis para uma reunião, porque os media são parte da sensibilização. E não apenas convocar para uma reunião, fazê-los participar do processo. Informação falsa ou errada pode avariar toda a logística. O problema está em que os media precisam de explorar as vulnerabilidades da operação, mas essa exploração sem responsabilização gera entropia e acaba por minar os resultados. E para isso já temos o dano suficiente das redes sociais e das suas campanhas de desinformação e perpétua indignação. Os media têm uma oportunidade para demonstrar a superioridade do bom jornalismo e da busca da verdade.

O destino de Portugal depende de tudo correr o melhor possível, e, por uma vez, não correr o pior possível. Nem decorrer da improvisação. Ora os media vivem de más notícias. É urgente conciliar o interesse nacional com a informação certa, em vez da especulação e da ignorância.

E é urgente que o primeiro-ministro e o Presidente se coíbam de comentar rumores ou intrigas, como aconteceu com os “idosos excluídos”. O fator humano é essencial, mas convém saber de que estamos a falar. Claro que um primeiro-ministro que tem uma mãe com 87 anos responde instintivamente que a idade não é critério e que os idosos não podem ser excluídos. E claro que um Presidente católico, imediatamente, responde que é uma “ideia tonta”. Precisamos de rigor nos comentários e nas bolhas noticiosas que se evaporam como bolas de sabão. A única coisa a excluir é a palavra exclusão. A vacina não está testada nos velhos, mas a morte por covid está, e sabemos que é uma agonia terrível e solitária. Há que fazer escolhas, somos adultos. Nada é ideal ou perfeito na doença e na morte. Minimizar o sofrimento é a ordem.

Tudo o que seremos nos próximos anos, política, económica, socialmente, tudo o que seremos humanamente, depende do sucesso deste plano de vacinação. No momento em que escrevo, há gente acampada à chuva e ao frio em greve da fome em frente ao Parlamento. A gente dos restaurantes, numa falência que em certos casos já é acompanhada por destituição e fome. A cidade ficará destruída sem eles. Nada, nesta crise sanitária, é normal ou parecido com outras crises. E quando a crise acabar, o nosso mundo terá mudado, nunca mais voltaremos a ter o que tivemos. A inocência perdeu-se. E só pode ser compensada pelo ganho de uma nova consciência. A de que estamos rodeados de novos perigos, e que este desafio é o primeiro de outros, porventura mais graves, gerados pela emergência climática. E que a futura geração de políticos terá de se preparar para um mundo onde nada está adquirido, nem a democracia. Muito menos a paz social. Algum heroísmo precisa-se.

E deixem de falar com as pessoas como se elas fossem crianças. A corresponsabilização do povo português não foi utilizada, e preferiu-se a teoria do abanão ou do ralho da escola primária. O PS tende para o paternalismo, que lhe advém da mania do Estado socialista omnipotente, omnisciente e omnipresente. Um pouco mais de confiança na capacidade individual precisa-se.

E não é no Twitter que se faz política a sério, ou se exibe ousadia ou coerência. Rui Rio devia saber que o que tem feito é compor uma resma de inutilidades que podem conduzi-lo ao poder, mas não garantem inteligência no país do tanto faz. A vacina não é de esquerda nem de direita. Este é o maior e mais perigoso repto desde Abril de 1974. Ou os partidos trabalham em conjunto para o vencer, ou morrerão no altar onde é sacrificada a liberdade. E sem eles morrerá 1974.

Pior do que Floyd

Posted: 04 Dec 2020 03:47 AM PST

«O assassinato de George Floyd, que espalhou indignação pelo mundo, não tem a gravidade do que se passou com Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa, em meados de março. E, no entanto, tenho de olhar para o jornal para escrever bem o seu nome. Nem uma manifestação, nem uma palavra do prolixo Presidente. Foi tal a indiferença que durante oito meses a diretora do serviço que alegadamente torturou e matou o imigrante ucraniano se manteve calada. Há 15 dias, confessou que nem lhe ocorreu pôr o seu lugar à disposição. Também não contactou a família de Ihor. Parece que foi mais um dia no escritório. Na sua cabeça, a culpa é de umas maçãs podres, não é do SEF.

O insulto já não é o silêncio. Nem é a insensibilidade perante a família de Ihor. É Cristina Gatões ainda ser diretora do SEF. A naturalidade com que vários agentes entraram, depois do espancamento, na sala onde Ihor foi torturado e o apoio que os agressores tiveram para esconder o crime indica que não se tratou de um episódio isolado. As descrições que aparecem no “Diário de Notícias” desta semana são a de um inferno. Com imigrantes isolados do mundo e sem intérpretes, o Centro de Instalação Temporária (CIT) do aeroporto seria, segundo uma testemunha, um lugar de ameaças, pancada e medo. Onde os inspetores levariam os “passageiros” para uma sala e, com uma “luva preta, para não deixar impressão digital”, sem identificação e com um cassetete, teriam “conversinhas” com quem cometeu o crime de querer vir para Portugal. Cristina Gatões não teve os primeiros sinais de alarme em março. Quando chegou ao cargo, em janeiro de 2019, já tinha ouvido a provedora de Justiça chamar ao CIT de Lisboa “terra de ninguém”, um universo mais impenetrável do que as prisões. Já conhecia o relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção contra a Tortura, que comunicou inúmeras falhas, relatou suspeitas de maus-tratos e agressões e a sensação de que as pessoas tinham medo de falar. Ela própria fora inspetora no aeroporto. Por isso, Cristina Gatões é politicamente responsável por o que aconteceu a Ihor Homeniuk. Oito meses de silêncio depois, veio confirmar que o seu serviço tinha sido responsável por “uma situação de tortura evidente”. Da qual não tirou qualquer consequência. Nem a de se demitir, nem a de contactar a família da vítima, nem a de assumir o dever de a indemnizar. Nada.

A culpa é como um vírus. Se ninguém faz nada para a conter, alastra pela cumplicidade do silêncio. Cada dia que passa com a diretora do SEF no lugar é mais um dia que o ministro que a mantém assume para si a culpa. Cada dia que passa sem que o ministro nada faça é um dia em que o primeiro-ministro assume para si a culpa. Pelo que nos é descrito sobre o que se passava no CIT, é natural que aqueles inspetores se sentissem à vontade para dar largas à sua bestialidade. E é natural que só uma denúncia anónima e um médico legista tenham tornado impossível esconder um crime que até o diretor de Fronteiras de Lisboa terá tentado fazer passar por “morte natural”. Que cultura de impunidade torna tudo isto possível? A que se instala quando os políticos têm medo dos serviços que deviam dirigir: nasce um Estado dentro do Estado, onde a arbitrariedade é lei. A morte de George Floyd virou os EUA de pernas para o ar. Aqui, depois de oito meses sem que a diretora do SEF se demitisse ou fosse demitida, é o ministro que está a mais. Alguém tem de varrer o SEF de alto a baixo. Nenhum deles o fará.»

Daniel Oliveira

As lições de 2019

Posted: 03 Dec 2020 03:58 AM PST

«Na actual situação sanitária do país, e o investimento pessoal que todo Ministério da Saúde se vê obrigado a fazer, o que menos se deseja é que, relativamente à regulamentação da Lei de Bases da Saúde, e em especial do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, se repita a situação que envolveu o processo de elaboração e aprovação daquela lei. Algumas lições hão-de ter sido tirado do que aconteceu. A principal das quais foi que, apesar de todas as resistências, e até oposições, no dia 19 de Julho de 2019, alguns dos resistentes de esquerda, nomeadamente o PS, se congratularam com a legislação que tinha sido aprovada, reivindicando-a como sua. Daí não veio nem vem mal ao mundo. Importante mesmo foi que nos livrámos de um chapéu-de-chuva que só servia para cobrir os negócios que o sector privado fazia debaixo dele.

O articulado daquela lei já contém algumas disposições que dão sinais de mudança na política de saúde, principalmente no que respeita às relações com o sector privado e na valorização que é dada a aspectos centrais de qualquer política de saúde, como seja toda a actuação que cobre a actividade que não está directamente ligada ao tratamento da doença.

A situação que estamos a viver desde Março é um exemplo extremo dos défices que se foram acumulando numa área que agora se percebe que tem de ser tratada com maior exigência, a saúde pública e todos os aspectos que a ela estão associados, o principal dos quais é a prevenção da doença. Podemos mesmo afirmar que ela é a coluna vertebral das políticas de saúde, que têm a saúde positiva dos cidadãos como principal fundamento para a sua actuação, na medida em que representa a interface entre os serviços e a comunidade. Tem sido esta visão da política de saúde que tem contribuído para que, em alguns países, a esperança de vida tenha aumentado na parte que diz respeito à esperança de vida saudável.

Tudo isto está contemplado na Lei de Bases da Saúde. Não é, portanto, por ausência de pensamento sobre o que é relevante que se podem apontar dificuldades em transferir este pensamento para uma disposição legislativa que o torne operacionalizável. E é esse défice que vem aumentando de dimensão. Na década de 90, foram necessários três anos para que o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde decorrente da respectiva lei fosse aprovado. Se os tempos são outros, e são, há então, mau grado as circunstâncias, que actuar de maneira diferente. E actuar de maneira diferente significa também agir com a celeridade que o tempo político exige e que as condições de funcionamento do SNS impõem.

Neste caso, do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, estou-me a referir a que a sua organização e funcionamento deve estar mais bem adaptado ao SNS. Isto significa que não deverão ser as características e especificidades das comunidades, e até as suas idiossincrasias culturais, que hão-de adaptar-se aos serviços. Do que deve ser tratado no Estatuto é de uma nova entidade, de uma síntese entre as comunidades e quem está habilitado a contribuir para que ela seja mais saudável. Continuar a manter instalações e equipamentos de um lado e comunidades do outro é replicar um modelo que já mostrou ser bom para aumentar a esperança de vida, mas em que pouco contribui para aumentar a esperança de vida saudável.

Se entendemos que é urgente que o SNS seja dotado de um Estatuto é porque a sua elaboração exige um trabalho paciente, rigoroso e participado por muitos actores sociais. E, sobretudo, com a maleabilidade suficiente para poder ser apropriado tanto pelo Escoural como por Pitões das Júnias. Por Melgaço e Barrancos. Por Beja e Viseu.»

Cipriano Justo