Translate

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O excepcionalismo das gerações do presente…

Posted: 07 Dec 2020 11:28 AM PST

«Atendendo ao progresso tecnológico e humano que se observa no presente parece difícil não acreditar nas gerações actuais.

Focando a atenção na área das tecnologias de informação note-se que os primeiros computadores pessoais da IBM surgem somente em 1981. Posteriormente, o processador de texto da Word Perfect e a folha de cálculo Lotus 123, aplicações que contribuíram para o sucesso desses computadores, são engolidas no turbilhão da História pelo Word e Excel da Microsoft. Não será um caso em que a economia imita a biologia e a teoria de Darwin da selecção natural (ou da tese da sobrevivência do mais apto, de Herbert Spencer). Parece mais um caso de uma jogada de xadrez, em que a Microsoft deliberadamente aproveitou a sua vantagem nos sistemas operativos para entrar em novos mercados e varrer do mapa a antiga concorrência (a Lotus antes tinha feito algo similar à VisiCalc), i.e., utilizando a analogia biológica, exterminar espécies que nem sequer eram inicialmente concorrentes, num episódio de “genocídio tecnológico”. E o que dizer dos omnipresentes “browsers” (navegadores) da internet, que surgiram 12 anos depois (1993) e que nos abriram as enciclopédias, as bibliotecas, as palavras de pessoas e os mercados do mundo. A revolução nas telecomunicações móveis iniciou-se pouco depois, com o telemóvel (e, a partir de 2007, do iPhone da Apple, os “smartphones”) a tornar-se na primeira tecnologia global com cinco mil milhões de subscritores únicos (i.e., cerca de dois terços da população mundial) e 7,7 mil milhões de números (subscrições) móveis, em 2017.

Essa revolução tecnológica continua e até parece acelerar em interacção com a dinâmica da economia mundial.

Parece assim existir fundamento para a convicção da tese da excepcionalidade do presente, a tese tão bem resumida por Reinhart e Rogoff (em relação às dívidas soberanas) com o título do livro “Desta vez é diferente”.

No entanto, como nos alerta Viriato Soromenho-Marques tão incansavelmente, esta é também uma era de profunda arrogância e ignorância intelectual que esquece a fragilidade que é habitar o equivalente a uma estreita margem de uma casca de maçã sem preocupações de monta pela saúde da mesma. Em particular, se se olhar para os problemas da Humanidade, das tremendas desigualdades aos problemas ambientais, é impossível não sentir insatisfação pelo actual estado de coisas e imensa responsabilidade perante as gerações que nos seguem.

Assim, temos este confronto entre as provas das nossas capacidades colectivas e esse precipício para onde parecemos caminhar convencidos da nossa própria invencibilidade.

Os paralelos com e as lições da Grande Depressão

Afigura-se, por conseguinte, pertinente reflectir sobre a seguinte questão. Como se comparam as gerações actuais com a narrativa hoje dominante do excepcionalismo dos líderes intelectuais e políticos da era da Grande Depressão?

Para a História ficou a percepção que a resposta inicial dos governos à Grande Depressão foi errada. No caso particular dos EUA essa narrativa é reflectida, por exemplo, nas memórias do presidente que perdeu a reeleição para Roosevelt em Novembro de 1932, Herbert Hoover, uma eleição polémica e viciosa que o historiador económico da Universidade da Califórnia em Berkeley, Barry Eichengreen, compara ao desfecho das recentes eleições americanas entre Trump e Biden.

Hoover culparia o Secretário do Tesouro, Andrew Mellon, pelas políticas económicas adoptadas no seu primeiro e único mandato, dado que este se opunha à intervenção directa do governo na economia. Mellon era um homem de negócios, financeiro, multimilionário e filantropo das artes que terá defendido, segundo Hoover, que a depressão económica era necessária para limpar “a podridão do sistema” económico dos excessos dos loucos anos 20 para que a economia americana se pudesse reerguer das cinzas tendo defendido, segundo Hoover, a liquidação do emprego, das acções, dos agricultores e dos imóveis. Mellon, aliás, passou a ser tão mal considerado pela opinião pública americana que foi sujeito a um processo de impugnação pelo Congresso Americano.

Roosevelt toma posse como presidente dos EUA em Janeiro de 1933 e, logo a partir desse ano, adopta medidas de política económica heterodoxas, muito diferentes das do passado. Essas medidas incluem o confisco do ouro e a criminalização do seu comércio nos EUA, a desvalorização do dólar face ao ouro e, desse modo, a reestruturação da dívida privada e pública americanas, novos programas de investimento público, novas instituições (e.g, Federal Deposit Insurance Corporation, instituição responsável por um novo seguro federal dos depósitos bancários), nova legislação (a lei bancária, i.e., o Banking Act de 1933, incluindo as provisões conhecidas por legislação Glass-Steagall que obrigaram à separação da banca comercial da banca de investimento) e novos programas sociais (e.g., Segurança Social) alguns dos quais perduram até aos dias de hoje.

A “Teoria Geral” de Keynes de 1936, que lança as bases para a nova área científica da Macroeconomia, segundo Robert Skidelsky procura explicar a Grande Depressão, generalizando essa explicação (TG) a todas as crises económicas.

E ainda, por exemplo, o opus de Milton Friedman e Anna Schwartz de 1963, “Uma história monetária dos Estados Unidos”, que contribuirá para o desenvolvimento da teoria monetarista, tem as suas raízes nessa profunda crise económica e social. Nessa obra, Friedman e Schwartz argumentam que foram erros na política monetária da Reserva Federal que contribuíram para agravar essa recessão económica.

Assim, a Grande Depressão permitiu também que se destacassem líderes políticos que são apreciados hoje como verdadeiramente excepcionais porque definiram políticas públicas, à altura inovadoras, que sobreviveram ao teste do tempo. Resultou ainda no aparecimento de novas teorias económicas e de uma nova área científica. Coroou Keynes como o grande mestre da Macroeconomia. E contribuiu para que muitos outros economistas, como Milton Friedman, se destacassem.

Narrativas, é claro, podem não coincidir com a realidade. Porventura a lição é que parece necessário uma crise e sofrimento numa escala sem precedentes para que possa emergir verdadeiro excepcionalismo.

Excepcional mesmo seria evitar uma recessão profunda…

Infelizmente, à luz dessas referências intelectuais e políticas, a geração actual não parece tão excepcional assim. Apesar dos feitos impressionantes nos domínios da ciência e tecnologia, parece continuar a faltar rasgo e ambição nas respostas do mundo aos problemas da Humanidade e, em particular, à actual crise económica causada pela covid-19.

Seria bom, no entanto, saltar etapas indo directamente para essa fase do verdadeiro excepcionalismo, prescindindo da parte trágica da História que lentamente se insinua.»

Ricardo Cabral

A dor de perder de um filho é “a maior dor do mundo”- para sempre

por estatuadesal

(Marco Paulino, in Expresso Diário, 07/12/2020)

Na noite de sábado 5 de dezembro fomos invadidos pela ideia de quão vulnerável e efémera pode ser a vida. Não é que muitos de nós já não o soubéssemos, mas existem momentos em que a vida nos abana veementemente e mostra que tudo pode mudar num minuto, num segundo. Sara Carreira, de 21 anos, filha do cantor Tony Carreira e Fernanda Antunes, morreu num acidente entre vários automóveis na A1, em Santarém, junto à saída do Cartaxo. Rapidamente, a informação se difundiu, desde os meios televisivos às redes sociais.

É certo que todos os dias morrem várias pessoas, algumas das quais da mesma idade, ou até mais novas; em condições tão ou mais trágicas do que estas. Porém, Sara Carreira é uma figura pública, filha de uma celebridade que Portugal conhece, seja porque adora, seja porque odeia. Obviamente que isto não quer dizer que por ser uma cara conhecida seja mais importante do que qualquer cidadão anónimo, sobretudo para os respetivos entes queridos.

O que este enquadramento mediático nos dá, como facilmente se percebe pelos milhares de comentários que surgiram nas redes socias, é uma noção de proximidade da pessoa que partiu, daquela família enlutada, que gera sentimentos de compaixão, de comoção. É o que em Psicologia se tem chamado relações parassociais, enquanto relações de proximidade emocional potenciadas pela exposição repetida à vida da figura pública mediante as facilidades criadas pelos media, especialmente as redes sociais como o Instagram, e que quebra a barreira entre espectador e celebridade.

Esta espécie de conexão emocional gera inevitavelmente um abalo, que pode resultar, inclusive, no que tem sido denominado luto coletivo (collective grief), também designado por “luto público” (public grief) e que diz respeito ao processo de luto que é originado pela morte de uma figura pública. Para além deste luto, existe um processo de luto a realizar pelos pais, pelos irmãos, pelos amigos mais próximos.

A este propósito, uma pesquisa sobre luto, em particular pais em luto, mostra-nos que a perda contranatura de um filho, enquanto experiência traumática, tende a ser descrita como a perda mais dolorosa que qualquer ser humano pode vivenciar. Os pais em luto descrevem o sofrimento gerado por esta perda como “a maior dor do mundo”.

É sabido que a morte de um filho envolve inúmeras outras perdas consideradas secundárias, como a perda das expectativas para o futuro, a perda do papel parental na sua forma tradicional e a perda da própria identidade. Dada a importância da parentalidade para a identidade, os pais sentem-se destruídos, enquanto figuras parentais e pessoas. Por isso, veem-se invadidos por questões várias, como “quem sou eu agora?”, ou se continuam a ser reconhecidos como pais pela sociedade, na eventualidade de se tratar de um filho único.

As principais emoções presentes neste processo de luto são a culpa e a zanga, destacando-se o vazio como a principal sensação referenciada pelos pais em luto. A crença errónea de que os pais têm a capacidade de proteger incondicionalmente os filhos potencia que sejam vivenciados sentimentos de culpa e de falha, enquanto figuras parentais. Ainda que irracionais, estes pensamentos de autorresponsabilização são comuns e geram um sofrimento atroz.

Por sua vez, a zanga é facilitada, exatamente pela sensação de impotência e de injustiça pela perda da pessoa mais importante para a vida dos pais.

As investigações acerca do luto parental referem que a complexidade desta perda é também resultado das tarefas que são exigidas aos pais, tais como a necessidade de reorganizar as dinâmicas familiares e maritais, a inevitabilidade de comunicar a perda e com todo o sofrimento associado, num contexto em que o suporte social é reduzido, ainda para mais nesta fase pandémica em que somos recordados diariamente da necessidade de distanciamento.

No contexto das relações humanas, a perda de um filho tem vindo a ser reconhecida como a perda mais severa, duradoura e debilitante. Quanto ao casal, as investigações apresentam resultados distintos relativamente às mudanças originadas pela perda nas dinâmicas familiares. Enquanto algumas relações terminam, outras são fortalecidas pelo sofrimento, dada a necessidade de apoio mútuo constante.

Segundo uma investigação publicada em 2017 e intitulada "Parental bereavement: looking beyond grief", esta coesão tende a ser resultado de um maior entendimento do casal acerca da discrepância das suas respostas, ou necessidades individuais. Isto é, quando os membros do casal reconhecem que têm reações e necessidades diferentes no seu processo de luto, é facilitada a compreensão das atitudes do outro e proporcionado o apoio recíproco.

Pelo contrário, na ausência destas pontes de comunicação e compreensão, as tendenciais dificuldades associadas à gestão das diferenças na reação à perda dificultam a coesão entre o casal e potenciam o risco de divórcio dos pais. Na maioria das vezes, os homens optam por evitar o diálogo e mostram-se emocionalmente menos expressivos, atitude que pode ser percecionada pelas mulheres em luto como um sinal de desvalorização da perda ou esquecimento do filho perdido. Todavia, a investigação mostra que esta atitude visa, comummente, na ótica do pai em luto, passar uma imagem de força e proteger a mulher do sofrimento. Daqui se percebe um benefício claro, entre os vários possíveis, da intervenção psicológica especializada no luto.

Por acréscimo, destaca-se o relato dos irmãos em luto, os quais acentuam que não só perderam um irmão ou irmã, mas também os próprios pais, que “nunca mais voltaram a ser os mesmos”. É assim vivenciada uma dupla perda.

Perante o partilhado, percebe-se o facto de este processo de luto apresentar um maior risco de complicações e obstáculos à integração da perda na identidade. Os fatores de risco para complicações são, exatamente, a idade reduzida do descendente aquando da sua morte, a natureza repentina e consequente ausência de preparação para gerir a dor e a existência de uma relação de dependência.

No que diz respeito à variável idade, sabe-se, por exemplo, que uma das principais causas de morte na infância é a Síndrome de Morte Súbita Infantil, morte inesperada, que é frequentemente associada a sentimentos de impotência e falha no papel parental. Numa outra fase, se a perda de um filho acontece numa fase tardia da vida, pode ser sentida como mais dolorosa, pois acontece num contexto de múltiplas perdas sociais e interpessoais.

Para além do risco de complicações no luto, destaca-se o risco de perturbações mentais, como depressão, perturbação do stress pós-traumático e ideação suicida; e, inclusive, de patologia física, como o cancro e patologias cardíacas.

O processo de reconstrução da identidade é inegavelmente doloroso, mas, quando conseguido, permite alcançar maior estabilidade do que aquela que existiria na ausência de qualquer intervenção especializada, ainda que seja impossível regressar integralmente ao funcionamento anterior à perda. Numa relevante investigação de Paige Toller, da Univerisdade do Nebraska-Omaha, em 2008, denominada "Bereaved Parents' Negotiation of Identity Following the Death of a Child", foi evidenciado que a nova identidade é reconstruída em função do sofrimento da perda, com novos objetivos, princípios e crenças baseados na experiência traumática. No fundo, a irreversibilidade destas mudanças é resultado do abrupto surgimento do evento traumático na identidade.

Sabe-se que as memórias traumáticas são rapidamente evocadas e, por isso, estabelecem relações imediatas com a autobiografia da pessoa em luto, levando a que o trauma seja transformado num inevitável ponto de referência da história de vida da pessoa. Perante uma fase de marcada desorganização e luto intenso causado pela morte de um filho, o psicólogo detém um papel preponderante para facilitar o envolvimento em rituais funcionais e promover o trabalho terapêutico das emoções, pensamentos e comportamentos.

Este não é, e jamais poderia ser, um texto sobre o luto da família Carreira; é um texto sobre aspetos gerais que a ciência psicológica nos disponibiliza nos dias de hoje sobre o luto, em concreto sobre pais em luto; é a insignificante oportunidade de manifestar os meus sinceros sentimentos aos pais, aos irmãos e amigos mais próximos da Sara Carreira; é também a insignificante oportunidade de expressar os meus sinceros sentimentos a qualquer pai e mãe em luto.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Com a vacina à vista, é estúpido morrer na praia

Posted: 06 Dec 2020 03:27 AM PST

«Estamos a entrar numa nova fase que muda radicalmente a nossa perspectiva sobre a pandemia da covid-19. Não eliminará os constrangimentos que fomos forçados a adoptar para nossa defesa. Mas Dezembro de 2020 é uma linha divisória. Há um antes e um depois que, embora parecidos, têm um significado desigual. Saímos de uma fase defensiva, e algo cega, para entrar numa outra, em que passa a haver uma perspectiva. Será um tempo mais exigente, para os cidadãos, para a política e para os governantes.

A questão chave é que a chegada das vacinas não é o fim da pandemia, nem da recessão económica, nem das restrições a que estamos submetidos. A vacina é apenas um primeiro passo. O que é relevante é que desencadeia um novo processo.

O desafio político é agora prevenir o cepticismo ou a frustração dos que esperam uma imediata vitória sobre a pandemia. O cansaço das restrições vai acentuar-se, como efeito indirecto das expectativas criadas pela notícia das vacinas. Avisam os cientistas: não podemos baixar a guarda. Este Natal vai ser um teste. Agora, que há uma sólida esperança, seria estúpido morrer na praia.

Em 31 de Dezembro de 2019, a China comunicou à Organização Mundial da Saúde a existência de uma pneumonia de causas não identificadas. Seguiu-se uma devastadora pandemia. Onze meses depois, num espantoso salto em frente da ciência e da tecnologia biológica, o coronavírus foi identificado, estudado e surgiram vacinas que se prevêem eficazes. Vacinas produzidas e testadas em menos de um ano e não nos cinco ou dez habituais. É uma prodigiosa aventura da investigação e da indústria.

A confiança

Governos e responsáveis da saúde terão de explicar aos cidadãos que se inicia um combate de longo fôlego. Muitos esperam que, iniciada a vacinação, sejam levantadas as restrições – recolher obrigatório, condicionamento de viagens, normalização dos horários comerciais ou da vida nocturna.

Mas a máscara e a distância social continuarão a limitar a nossa “vida social”. Suportaremos, por tempo ainda indefinido, a privação do contacto físico e a mutilação das nossas redes de relações. A limitação à conversa electrónica continuará a empobrecer-nos. A vida cultural está profundamente ferida.

Antes de Dezembro, isto tinha um sentido deprimente, era o último e frágil recurso de defesa perante a “peste”. Hoje, com a vacina, ganha outro sentido: é a janela por onde poderemos vislumbrar a saída da crise. Há, enfim, uma meta à vista.

Muitos dos novos hábitos vieram para ficar. O comércio digital está a expandir-se e o teletrabalho vai em grande medida permanecer. Surgirão graves problemas na criação de empregos ou na requalificação dos trabalhadores. A pandemia desencadeou um processo de destruição criadora. Mas, primeiro, destrói.

Não haverá regresso automático à “normalidade” de 2019. A simples descoberta deste facto, de que hoje há uma consciência muito ambígua, criará frustração e tensões sociais. Caberá ao poder político falar com rigor e seriedade aos cidadãos, enquanto dos media se espera realismo perante as expectativas. A questão da confiança é agora mais importante que na fase anterior.

Exasperação

Os cientistas ainda não conhecem todas as virtualidades e limites das vacinas. Não sabemos por quanto tempo garantem a imunização, nem a medida em que anularão os riscos de contágio. As campanhas de vacinação serão longas. Mesmo começando em Janeiro, os europeus terão de esperar meses, talvez muitos meses. Haverá conflito sobre as prioridades. A vacinação tenderá a ser desigual, em termos sociais e geográficos. A logística de uma vacinação em massa é um gigantesco empreendimento, que exige extrema competência. Ninguém perdoará os erros.

Num artigo recente, dois investigadores da universidade Johns Hopkins, Josh Michaud e Jen Kates, fazem o balanço dos muitos obstáculos a vencer e tiram algumas conclusões. “Como resultado, o risco de surtos continuará depois de ser posta em marcha a primeira geração de vacinas. As medidas de distância social, o controlo das fronteiras e outras formas de intervenção pública deverão permanecer por muitos meses. É possível que se siga uma desilusão, especialmente em relação às desigualdades na saúde, que se tornarão mais visíveis entre países e dentro do mesmo país” (Foreign Affairs, 2 de Dezembro).

Acrescentam: “Estas frustrações populares podem agravar o cepticismo sobre as vacinas e fomentar uma ainda mais perigosa desinformação, complicando os desafios dos programas globais de imunização.”

Europa

Ao contrário da maioria dos asiáticos, os ocidentais, europeus ou americanos, não souberam prevenir a segunda vaga da pandemia. Após um êxito inicial foram tentados a baixar a guarda. As populações estariam saturadas. A economia não devia permanecer parada. O relaxamento no Verão foi fatal.

No entanto, a literatura científica era clara: o regresso precipitado a uma relativa “normalidade” antes de haver uma vacina provocaria o retorno da pandemia numa forma mais agressiva.

O escritor italiano Daniele Rielli contesta o argumento da economia: “A escolha entre saúde e economia é um dilema mal formulado porque uma gestão prudente da economia, sem as loucuras e o laxismo estivais, talvez com um breve confinamento de duas semanas em Outubro, teria sido muito melhor para a economia.”

Ao contrário do que alguns anteciparam, a China não ganhou a “batalha das vacinas”. Pode ter muitos clientes e marcar pontos. É possível que as vacinas chinesas e russas venham a mostrar-se eficazes. Mas a falta de transparência e o desrespeito das regras de certificação feriram a sua credibilidade científica. Neste terreno, ganharam americanos e europeus.

O que a China e a Ásia estão a ganhar é a batalha da recuperação económica. A retoma do crescimento acelera-se no Extremo Oriente, em parte arrastado pela China. A América está a meio caminho. Na cauda, está a Europa. A Alemanha e França fecharão o ano com números negativos. Um factor decisivo será a capacidade europeia de lançar uma vacinação em massa. A eclosão de uma terceira vaga ser-nos-ia fatal.

Os governos têm pela frente tremendas tarefas com as campanhas de vacinação e um duro Inverno em perspectiva. Os próximos meses podem ser terríveis. A única forma de responder à exasperação popular é uma relação de confiança.

Aos cidadãos cabe perceber que, agora, é a vez de assumirem um papel activo no combate à covid. Repito: seria estúpido morrer na praia.»

Jorge Almeida Fernandes

domingo, 6 de dezembro de 2020

A vacina não cura a economia

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 03/12/2020)

Ao chegar ao fim do ano, as previsões antecipam uma queda do PIB mundial de 4%. Ultrapassará a da recessão de 2009 e será a maior desde o fim da Segunda Guerra. Os cenários ‘curtoprazistas’ são, portanto, imprudentes e, aliás, estão agora a dar lugar ao cinismo: não houve destruição criativa, queixa-se um analista, que pena não ter havido falências em catadupa para estimular o mercado. John Cochrane, um monetarista radical da Hoover Institution, propõe que “se deixe os bancos falir, de forma ordenada. As pessoas, computadores, edifícios são vendidos a novos donos, com novo capital, e o negócio continua como sempre”. Não vai tudo continuar como dantes, mesmo que haja o risco de se repetirem os mesmos erros em que os decisores são vezeiros.

PRIMEIRO ERRO: ORÇAMENTOS CURTOS

O ano próximo, quando quer que as vacinas comecem a alcançar a maioria da população, será de desemprego e falta de procura agregada. Na incerteza, só as políticas públicas podem corrigir a procura deficitária, razão para o FMI calcular um histórico multiplicador de 2,7 (um milhão de investimento público provoca um aumento de 2,7 milhões do PIB), e assim sustentar as redes sociais de proteção. Mas vão faltar recursos. A queda de receita de IVA e outros impostos pode alcançar os 10 a 20%, segundo as projeções da instituições internacionais, e em 2021 ficaremos longe do nível do produto de 2019.

Os fundos europeus poderiam cobrir uma parte dessa necessidade. O problema é que, embora ainda não se saiba como será resolvido o imbróglio com a Hungria e Polónia, mesmo no caso mais favorável esse contributo será atrasado (o empréstimo para despesas de lay-off deveria ter vindo em junho e chegou no último dia de novembro) e é reduzido. Portanto, vai ser preciso contrair dívida, beneficiando dos juros negativos. O que o orçamento não pode é ser curto. Eis uma boa razão para um orçamento suplementar, para corrigir o já aprovado, que é estruturalmente contracionista. Não haverá uma segunda oportunidade para responder a tempo aos problemas sociais imediatos.

SEGUNDO ERRO: ESPECULAR

Se sair do mundo real e ler as notícias das bolsas, notará a euforia. O índice S&P500 subiu 13% em novembro, um mês de rios de leite e mel, e as principais bolsas europeias incharam em 21%. Se alguém ainda tem dúvidas sobre esta anomalia, é melhor tomar atenção: a bolha concentra-se nas empresas que fizeram e farão grandes lucros, como as de comunicações, de publicidade (a Google e o Facebook), de gestão de dados e de informação. As bolsas estão intoxicadas com boas notícias e assim vão continuar. Como escrevia um economista do século XIX, se o lucro de uma operação for 10% haverá alegria, se for 20% será a loucura.

Ora, a euforia é ignorante. Na incerteza atual, já se registam três a dez vezes mais incumprimentos de hipotecas, o que pesa nos balanços dos bancos, e o efeito de arrastamento em 2021 será maior. As provisões têm crescido, os bancos procuram fusões desesperadas, mas nada disso evita que nasça um mundo novo em que os principais poderes financeiros mundiais passam a ser agências de transferências e pagamentos, ou gigantes como a Apple. Mais uma vez, não há regulação financeira que os domestique.

TERCEIRO ERRO: IGNORAR PROBLEMAS

Os restaurantes e o turismo vão reduzir-se por muito tempo. Por isso, haverá setores que não recuperam com a vacina. Como a economia portuguesa depende de alta intensidade de emprego em atividades com baixo valor acrescentado e vinculadas à procura interna, isso significa desemprego. Essa é portanto a prioridade, recuperar a procura que salva empregos.


O mestre da paciência impaciente

Eduardo Lourenço será lembrado como ensaísta, um género difícil de definir e que mora algures entre a história, a política, a filosofia e até a literatura, e nesse cruzamento os labirintos, a saudade, e as suas imagens de Portugal povoarão muitas homenagens, que espero que não ignorem o seu subtil sentido do paradoxo, ou como ele sentia o nosso país. Será lembrado como um europeísta convicto, como era, mesmo que detestasse a financeirização do mundo e os caminhos que essa vertigem autoritária impõem à civilização. Espero que não seja esquecida a sua impaciência tão paciente, a de querer o mais difícil, a democracia.

Não sei se o ensaio, a vontade europeia, e antes de mais o empenho democrático, que são tudo, serão suficientes para resumir quem foi Eduardo Lourenço. Faltará sempre a sua conversa e inquietação, a pergunta sobre o brilho dos olhos daquela pessoa, o gesto de abrir os seus jornais diários franceses, a curiosidade sobre o mundo. “Estou saindo”, disse ele numa das últimas, talvez mesmo a última entrevista. Sabia que o tempo era curto, já passei o meu prazo, dizia aos amigos, e continuava a olhar com modos de ver.

Mas há tempo para a ideia? Não há, não mora no imediato. Por isso, Eduardo foi radical à sua maneira, heterodoxo impenitente. Repugnava-lhe o pulsar do capital, este “‘bezerro de oiro’ mítico, de natureza e efeitos demoníacos, como jogo, de cada vez mais sofisticado, de um ídolo de papel de propriedades mágicas, pois tem a função — convencionada mas reverenciada — de substituir ‘o valor’, qualquer que seja o bem, pelo ficcional que o representa”, como me escreveu há três anos. E, se alguns não notaram, exigia-nos que soubéssemos distinguir o que “é aceitável ou inaceitável nesta espécie de Guerra de Troia sem fim que é a da luta entre os que dominam os mecanismos vitoriosos da economia mundial e os que sofrem os seus efeitos devastadores, (através de) um ato de coragem com o que isso implica de decisão ética e lucidez”. Coragem e lucidez, tanta falta que nos fará Eduardo Lourenço.


Na saúde, prometer não vale

O congresso do PCP em Loures festejou medidas aprovadas no Orçamento, entre as quais a extensão dos horários dos centros de saúde até às 22h e a sua abertura aos sábados entre as 10h e as 14h. Uma excelente regra para os cuidados primários de saúde. Só que não vai ser aplicada. A Associação de Medicina Familiar explicou a razão com meridiana clareza: faltam os profissionais que garantam essa extensão de horário. De facto, os centros de saúde fazem-no nos picos da gripe, mas por poucas semanas e com horas extraordinárias. Não têm médicos e enfermeiros para o fazer todo o ano.

E, como se viu, não é fácil: ficaram desertas um terço das vagas do recente concurso para 435 especialistas em medicina familiar. Veremos as contas no fim do ano, mas arriscamo-nos a que no fim de 2020, com as aposentações, tenhamos menos médicos de família do que no início do ano. A promessa de horários alargados é uma intenção sem meios. Faltou a única regra que salvará o SNS: ir buscar especialistas ao privado.


Melhor seria ouvir o banqueiro anónimo

Era de esperar que o Parlamento impusesse agora ao Governo o que o primeiro-ministro não conseguiu impor em maio ao ministro das Finanças, a restrição de novo pagamento ao Novo Banco sem uma auditoria que confirme a legalidade da conta. O que não se esperaria é que o Costa soltasse as feras e, antes de todos, anunciasse ao mundo, mesmo com telefonema a Lagarde, que Portugal tinha entrado em incumprimento contratual. De todas as palavras, era das poucas que jamais poderia ter usado, mas a vertigem da trica levou-o a essa senda. Bem veio o presidente do banco corrigir Costa, afinal as contas não estão fechadas, não há ainda pedido de capital, terá que ser aprovado, é assim o contrato. O mal estava feito. Mesmo recuando na sua ameaça vã de levar o assunto ao Tribunal Constitucional, e podemos perguntar-nos como é que um Governo lança mão de bravatas deste calibre para logo depois abandonar a pose, a queixa de um incumprimento contratual foi sempre uma jogada imediatista.

E que pena o Governo preferir incendiar em vez de perceber o que um banqueiro anónimo logo veio sugerir a um jornal: excelente decisão, aproveite-se para impor regras a este fundo financeiro que tem cavalgado as contas portuguesas (e prejudicado os outros bancos). É nestes momentos que se nota que a finança pensa no poder e o Governo na manchete do jornal.

O ódio dos covardes que anda por aí

Posted: 05 Dec 2020 04:16 AM PST

José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«O livro de Cristina Ferreira merece ser lido nem que seja pela transcrição de comentários, tweets e outras formas de expressão nas chamadas “redes sociais”, com insultos dirigidos à própria, à sua família e aos seus amigos. E pela intenção de denunciar e combater esse mundo do ódio, de grosseria, de ameaças, de violência. Esse mundo é na sua quinta-essência o de uma forma vil de covardia, porque só o anonimato e a desresponsabilização explicam porque é que gente mesquinha, escondida no canto do seu telemóvel ou computador, faz do insulto, da intriga, da mentira e do ódio um passatempo quotidiano. Todas as pessoas com alguma notoriedade pública sabem que é assim, e um dos exemplos do livro de Cristina Ferreira mostra de que é que estamos a tratar:

“esta cristina na cama deve ser um cronho, k eu digo vos uma coisa, avaliar pela pessoa que se vê na tv, na cama deve ser um trambolho muita fava pouco vinho, vai te cronho, deves pensar k es a ultima bolacha do pacote, velha caduca…”

Aqui está do que estamos a falar, obscenidades, machismo, insultos, na linguagem gutural de um tal Paulo. Gostava que esse Paulo desse a cara para melhor se perceber este mundo de covardia, e sabermos do que se está a tratar, com cara e responsabilização. Porque, entre outras coisas, o que deveria acontecer é que o que é lei cá fora devia ser lei lá dentro, e isto é um crime.

Neste mundo de covardia, o livro é corajoso (comentário previsível: qual quê, essa gananciosa quer é ganhar dinheiro com a publicidade ao livro…). E não se surpreendam com este artigo, porque não me caem os parentes nem os pergaminhos na lama em dizer publicamente que concordo com o que concordo e ver o mérito da denúncia.

Noutras coisas, o meu mundo tem pouco que ver com o de Cristina Ferreira, não por ser aquilo a que se chama um “intelectual”, hoje mais um insulto do que um mérito, mas porque aqueles programas representam muitas vezes um papel perverso que têm mais relação com o mundo do ódio nas redes sociais do que se pensa. Critiquei António Costa, e essa crítica é extensiva a todos que foram lá fazer de cozinheiros e outras cenas esquisitas, e, eu próprio, tendo sido convidado, declinei agradecendo.

Nada tenho contra a chamada “televisão popular”, cujo papel em falar para as pessoas a quem ninguém fala e de quem ninguém fala é relevante. Mas não ignoro as relações entre a reality TV e aquilo que Cristina Ferreira critica. Há uma exposição do privado e do íntimo, que não só me repugna como tem um efeito inaceitável num dos valores civilizacionais, precário e frágil, a conquista da privacidade. A promiscuidade de que muitas vezes esses programas se alimentam acaba mais cedo ou mais tarde por limitar a liberdade de quem não traça uma linha muito firme entre o público e o privado.

Esta exposição e o abandono de qualquer pudor e privacidade que pululam nas revistas do jet-set, com centenas de pequenas figuras de fama escassa ou fugaz a “assumirem” namorados e outras coisas mais, representam um papel promocional na sua carreira que quase depende disso, dessa exposição, nem de obra, nem de talento, nem de esforço, muito menos de saber. Não estou a falar de Cristina Ferreira. E como são modelos para muita gente, que as inveja ou admira, ou as duas coisas ao mesmo tempo, fazem uma antipedagogia para as gerações mais novas e para os mais velhos que vivem dependurados no Facebook, dão origem a milhares de fotos de adolescentes a fazer beicinho, com pouca roupa, e abrem caminho para formas muito comuns de bullying nas escolas. Uma das formas clássicas é exactamente a circulação de fotografias íntimas mandadas a um namorado, que no fim do namoro ou até durante ele as envia para os colegas de turma. Isto e outras coisas mais, que permanecem como um fantasma a vida toda.

Podia dizer, como dizia Vicente Jorge Silva, o que é que “eles”, neste caso os políticos, querem quando se põem a jeito? Para “eles”, que se expõem para ganhar votos ou audiências ou dinheiro, não deveria existir a protecção da privacidade, vale tudo. Discordei, numa antiga polémica, com ele. Não, não vale tudo, mesmo quando o alvo se põe a jeito.

Já agora, sugiro à claque do ódio vários temas para comentários, tweets e outras excrescências sobre este artigo nas redes sociais, a começar pela acusação mais desejada, o miserável dinheiro. Não estou eu a querer agradar à minha “patroa” da TVI? Não estou eu a ajudar a vender o livrinho da dama por qualquer interesse financeiro ou para me promover à custa dela? Não quererei encostar-me à fama da senhora para obter likes e quejandos? Tudo isto será escrito porque o que faz mexer a cloaca das redes sociais são paus de madeira desta natureza.

Sempre existiu esta indústria do vilipêndio e agora vê-se mais? É verdade que sempre existiu e que agora se vê mais, mas também é verdade que agora é mais, mais descarado, mais vergonhoso, envolvendo mais gente, mais atenção fútil, mais dedicação ao mal, mais perseverança no insulto, mais covardia. Há gente quase profissional disto, que deve passar horas a escrever comentários como o que citei acima. Imaginem como é o mundo deles.

Sim, este elogio da denúncia de Cristina Ferreira é para vosso escarmento, vosso opróbrio, vosso desluzimento, vossa vergonha e, se tiverem de ir ao dicionário para perceber algumas palavras, ao menos ganha-se alguma coisa.»