«O nosso Trump de bolso, André Ventura, é dado como habilidoso da política. Mas tal aura deve-se mais a basbaques que não param de lhe dar estatuto que (pelo menos ainda) não alcançou que à inexistente qualidade intrínseca da peça.
Não tenho dúvida que o saudosismo do Estado Novo tem mercado eleitoral. Quer nas muito conservadoras elites do salazarismo, perdedoras no regime democrático, que dantes votavam no CDS. Quer (paradoxalmente) nos filhos das classes mais deserdadas do Estado Novo não apreciadoras de modernices – a falta de mundo e de escolaridade foi em todos os tempos e locais grande fonte de ilusões de superioridade nacionalista. Sucede em todas as democracias que destronaram ditaduras: há uma porção de pessoas que endeusam uma suposta era gloriosa passada. E é conhecida e estudada a propensão para o pensamento simplista, para a recusa da ambiguidade num mundo complexo, para as soluções fáceis de diabolizar um inimigo imaginário.
No entanto também não tenho dúvidas que Ventura e o Chega são produtos políticos de qualidade duvidosa – e nem sequer só moralmente. São ambos pechisbeque político. Ventura é pouco mais que um imitador de Trump, ávido de atenção mediática como fim último da política, com tiradas cada vez mais indecorosas, e pretendendo criar uma realidade alternativa onde vivem encapsulados os seus indefetíveis. Sucede que Trump não foi excessivamente bem-sucedido – ganhou uma primeira eleição por uma conjunção de acasos infelizes e perdeu estrondosamente a segunda, com sucessão interminável de revezes e incompetências no entremeio.
Ventura nesta campanha presidencial tem seguido o guião de Trump. No primeiro debate, com João Ferreira, interrompeu permanentemente e impediu que qualquer conversa existisse. Veio ainda reclamar que quer os votos bem contados – levantando, tal como Trump, espantalhos mentirosos sobre a fiabilidade dos resultados eleitorais. A falta de originalidade é gritante.
Não é novo. Já há muito seguia os estratagemas trumpistas. A procura de polémicas com celebridades ou personagens do entretenimento e cultura, de forma a ganhar visibilidade. Já andou em despiques públicos com Filomena Cautela, Agir, José Castelo Branco. Tudo é uma encenação para enganar tolos com papas e bolos. Ventura até fala de si na terceira pessoa, assumindo implicitamente uma persona criada para o mercado político dos mais incautos.
Há nisto uma vantagem para quem se lhe opõe: pode-se prever o que copiará a seguir. Além disso, Trump gerou uma quantidade avassaladora de anticorpos na sociedade americana que terminou com a derrota. Os anticorpos também se criam a cada encenação e palavra de Ventura, sempre ali ao nível do esgoto. As hostes democratas devem perceber isso e usar e agitar os ditos anticorpos. Votar contra a extrema-direita rasteira é um incentivo para muitos.
Os temas de Ventura também vão de encontro aos fantasmas dos eleitores mais preconceituosos, em vez de falarem da realidade. Há esse perigo mortal, segundo as mulheres do Chega, que são as feministas. Nem se entende como as feministas não estão nas listas de organizações terroristas de todo o mundo. Por outro lado, o discurso securitário e punitivo é ridículo num dos países mais seguros e pacíficos do mundo – a nossa nódoa criminal é precisamente na violência doméstica.
O RSI é uma prestação com valores irrisórios, tanto de dotação global como dos recebimentos individuais. Os poucos milhões que os ciganos recebem não valem mais que cinco minutos de atenção, sobretudo tendo em conta as grandes clientelas sanguessugas de impostos, algumas aliadas de Ventura. Mesmo os que consideram que os ciganos se excluem, ou se arrepiem com o tratamento dado às mulheres na comunidade (aqui incluo-me), terão de concordar que a forma de dar oportunidades às novas gerações é educá-las e não estigmatizar.
Por muito que Ventura se esforce, e os trolls das redes sociais se multipliquem em insultos e contas falsas, a realidade impõe-se sempre à narrativa política fantasiosa. Não convence ninguém que vivemos numa crise de segurança pública pela inexistência de prisão perpétua (ou de cortar mãos a ladrões, inovação saudita recente de Ventura), os resultados das eleições são fraudulentos ou que pagamos muitos impostos por causa dos ciganos. Os problemas reais – os hospitais e centros de saúde, o emprego e o desemprego, transportes públicos, escolas – têm a mania irritante de se sobreporem às ameaças imaginárias.
Ventura imita igualmente Trump na opacidade. O financiamento do Chega, em alguma parte já revelado em reportagens de Miguel Carvalho para a Visão, coloca o partido na mão de meia dúzia de empresários ricos. Não admira. Ventura passou rapidamente de antissistema para desejoso de ter tachos num eventual governo de direita. Não quer destruir nenhum sistema – quer que os seus o explorem.
Inevitavelmente, este caldo apela a pessoas de fraca qualidade. Ou, na novilíngua de Ventura, de ‘pessoas de bem’. A mim essas ‘pessoas de bem’ do Chega costumam enviar-me mensagens com abundantes e carinhosos emojis em forma de fezes, a cada vez que critico o seu deus. Há semanas, uma encantadora senhora ‘de bem’ apoiante do Chega, certamente muito católica, desejou-me que morresse.
Dentro do Chega, e segundo as reportagens que Pedro Coelho tem feito para a SIC, toda a gente se grava (e se denuncia mutuamente à comunicação social), os ódios são florescentes, já houve purgas e leis da rolha à boa maneira estalinista. O grande amigo de Ventura, Luc Mombito, envia mensagens insultuosas e sexualizadas a uma menor, de seguida justificando-se com o racismo que o tem como alvo – apesar de fazer parte do partido que diz não existir racismo em Portugal.
Não fora o perigo real de abandalhamento e desgaste das instituições democráticas, até seria (em teoria, volto a ressalvar) divertido vermos tal grupo de deploráveis e impreparados num governo. Porque os produtos políticos tóxicos como o Chega (e o movimento trumpista) têm em si a génese da sua destruição. O ódio e o ressentimento que cultivam para os alvos de fora inevitavelmente contaminam o interior. Quando se cultiva ódio, o ódio espalha-se por todo o lado e vira-se contra os criadores. Vimos tal qual na permanente guerrilha dentro da Administração Trump. E a realidade alternativa que criam, para alienar eleitores, às tantas explode-lhes nas mãos. Para Ventura, como para Trump, o espalhafato mediático será uma maldição.»