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terça-feira, 26 de janeiro de 2021

A esquerda teve uma derrota, a direita tem um problema

 

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 25/01/2021)

Daniel Oliveira

Que ninguém use a abstenção para explicar os resultados destas presidenciais. Tendo em conta a pandemia, a quantidade de pessoas confinadas sem acesso ao voto, as inevitáveis filas para garantir a segurança de todos, o facto de estarmos perante uma reeleição com vencedor certo, a participação eleitoral até foi extraordinária. Como foi explicado, o aumento da abstenção resulta da entrada de emigrantes nos cadernos eleitorais. Estamos em linha com votações anteriores. Não foi a abstenção que nos trouxe até aqui.

Antes de haver qualquer confusão, Marcelo Rebelo de Sousa venceu as eleições. Foi eleito à primeira volta, reforçou a sua votação e pescou em todo o lado. E a vitória retumbante não é nem do PSD, nem do PS, nem do CDS, nem da direita, nem do centro. É dele. Depois, mais de 88% dos eleitores votaram em candidatos comprometidos com o essencial dos valores constitucionais democráticos. Somos, se me permitem dizer assim, a esmagadora maioria do país. Isto deve ser dito de forma clara, antes que se institua que uma minoria diz o que o país sente.

André Ventura não conseguiu o seu objetivo: o segundo lugar. Demite-se outra vez, recandidata-se outra vez e está feito. Mas não podemos ignorar o que já nem é um elefante na sala. É uma manada de elefantes. Um candidato que, por oportunismo desbragado, recusa o essencial dos valores civilizacionais em que se baseia a nossa democracia e os alicerces do Estado de Direito, teve 12% dos votos. Só teve uma derrota formal porque o seu tom exige fanfarronice em período de campanha.

Não me parece sério, em noite eleitoral, fazer uma análise das razões do voto em André Ventura. Não participarei nesse exercício em que cada um pega nos seus descontentamento e os atribui aos eleitores de Ventura. E ele agradece. Seja a desigualdade, a gestão da pandemia, o politicamente correto ou a corrupção. Até ouvi, de jornalistas e de Rui Rio, um exercício canhestro sobre um Alentejo comunista que virou para a extrema-direita.

No Alentejo, os eleitores não são todos comunistas. Os comunistas já nem sequer são a maioria há muito tempo. Não há, em comparação com as anteriores presidenciais, qualquer desvio do padrão no voto comunista no Alentejo. Os resultados de Edgar Silva e de João Ferreira foram muito próximos no país (4%). E também em Beja (15%), Évora (11%) e Portalegre (7%). O mesmo acontece em Setúbal (9%). Se há transferência de eleitores comunistas de uma presidencial para outra isso só acontecerá marginalmente. Não basta olhar para uma região para definir os eleitores de cada partido. Devia-se prestar mais atenção aos eleitores de direita nestas regiões dominadas pela esquerda.

Não podemos, no dia seguinte às eleições e em cima do joelho, procurar as razões profundas para o que nos aconteceu, que segue uma tendência internacional. Mas podemos falar dos responsáveis por este resultado concreto. Pelas escolhas que fizeram nestas eleições e que contribuíram para acelerar um processo de radicalização do voto de direita. São, para resumir, as direções dos principais partidos políticos, demasiado embrenhados nas suas táticas de curto prazo para compreenderem o que têm pela frente.

É António Costa, que com o seu apoio oficioso a Marcelo Rebelo de Sousa colou o Presidente ao Governo e ofereceu uma autoestrada a Ventura, transformando-o no depositário do descontentamento de direita, obviamente reforçado neste tempo de pandemia descontrolada. Ao não ter promovido uma candidatura do seu espaço político, o PS descolou o centro do confronto para Ventura e não, como seria saudável, para o centro político. É evidente que Costa até ganha com isto. Primeiro, porque o PSD passou a ter de lidar com um problema bicudo. Depois, porque o BE e o PCP foram canibalizados pelo voto útil em Ana Gomes e isso deixou-os frágeis para este ciclo. Por fim, porque nasceu um inimigo que pode ir para o Governo com o PSD - um forte argumento para o voto útil no PS e para a chantagem contra uma crise política. Costa até ficou melhor, com os partidos à sua esquerda e à sua direita fragilizados. Bom para ele, uma tragédia para o país.

É Rui Rio, que abriu espaço a entendimentos futuros com o Chega, dando-lhe um novo estatuto junto do eleitorado de direita. É até o irrelevante Francisco Rodrigues dos Santos (que ontem voltou a revelar essa irrelevância em todo o seu esplendor), que por insegurança interna não impulsionou uma candidatura de alguém como Adolfo Mesquita Nunes, que, como se percebe com os 3% de um candidato pouco interessante como Tiago Mayan, poderia ter corporizado outro tipo de oposição de direita a Marcelo Rebelo de Sousa.

É o BE e o PCP, que não perceberam que este era o momento de contribuírem para uma candidatura independente à esquerda do PS (não seria Ana Gomes), já que o PS não foi a jogo. Preferiram medir-se pela enésima vez, numa guerrilha (em vez de complementaridade) que ainda dará cabo dos dois. Mas deixo a esquerda para outro texto.

Temos pela frente anos sombrios. Tudo o que esta pandemia e a crise social e económica trarão fará crescer o descontentamento e o monstro do ódio. A inexistência de uma direita minimamente competente na oposição ajudará mais um pouco. O resto falo-á a incapacidade da esquerda em se unir quando tem mesmo de o fazer e o calculismo autocentrado do primeiro-ministro. Das razões profundas, falaremos nos próximos tempos. Destas, mais evidentes, podemos falar já. Aprenda-se qualquer coisa.

Olhando para os resultados eleitorais, a derrota da esquerda é estrondosa. Ana Gomes, João Ferreira, Marisa Matias e Vitorino Silva – os quatro candidatos que se assumem de esquerda – tiveram, juntos, 24%. O resto foi para candidatos de direita. Isto responsabiliza a esquerda, a começar pelo Partido Socialista. Mas se ficarmos por aqui, não percebemos o cenário político que nasceu hoje.

Grande parte do eleitorado socialista (e do resto da esquerda) não se transferiu para a direita. Votou num Presidente visto como próximo do Governo, seguindo a indicação do primeiro-ministro. O PS ficou na mesma. PCP e BE tiveram duras derrotas, mas aqueles para onde grande parte do voto foi (Marcelo e Ana Gomes) não têm plataformas partidárias. Podem ou não recuperar esse voto, mas não houve uma mudança no quadro partidário à esquerda. Já a direita ganhou um novo ator de que ficou refém. Sinceramente, não compreendo porque sorriem. Mesmo depois deste domingo, continuam em negação?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

EUA investigam alegadas ações "hostis" da Rússia

De  Euronews

EUA investigam alegadas ações "hostis" da Rússia
Direitos de autor  Alex Brandon/Copyright 2021 The Associated Press. All rights reserved.
TAMANHO DO TEXTOAaAa

O recém-empossado Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ordenou aos serviços de inteligência norte-americanos, para investigarem o alegado envolvimento russo em várias ações consideradas como prejudiciais ao país, nomeadamente interferência eleitoral, atos de piratagem digital e também o envenenamento do líder da oposição Alexei Navalny

"Mesmo estando a trabalhar com os russos para fazer avançar os interesses dos Estados Unidos, também estamos ativos para responsabilizar a Rússia por ações irresponsáveis e também hostis. Nesse sentido, o Presidente esta a ordenar aos organismos da inteligência para ter informação completa do caso da SolarWinds, interferência russa nas eleições de 2020, o uso de armas químicas contra o líder da oposição Alexei Navalni e as alegadas recompensas contra soldados americanos no Afeganistão", declarou Jen Psaki, Secretária de Imprensa da Casa Branca.

Ao mesmo tempo, Washington propôs a Moscovo a extensão por cinco anos do tratado New START, o último pacto sobre armas nucleares que limitava a 1550 o número de ogivas nucleares.

O tratado expira no dia 5, depois de não ter havido avanços nas negociações durante a presidência de Donald Trump.

Ó sistema, arruma os foguetes


por estatuadesal

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso Diário, 25/01/2021)

Pedro Santos Guerreiro

As eleições presidenciais têm quatro leituras imediatas: a grande vitória do moderado Marcelo, a grande escalada do radical Ventura, a subida da abstenção e uma esquerda anã. O Presidente vai agora conduzir em modo mãos-livres, em função da estabilidade que sempre revelou defender e do reforço da direita institucional que nunca escondeu querer. Mas o país está em crise funda e duradoura. E se Marcelo era o candidato do sistema, o sistema não pode respirar de alívio. Pela abstenção e porque a extrema-direita se nacionalizou, ficando em segundo lugar em 11 dos 18 distritos continentais e na Madeira, e passando em pouco mais de um ano de 67 mil para cerca de meio milhão de votos.

A GRANDE VITÓRIA DO MODERADO MARCELO

Não teve grandes adversários, porque lhes ganhou antes da campanha: o PS, maior partido do Parlamento, não tugiu nem mugiu para não ter uma derrota explícita. Teve a implícita de ficar de fora.

Marcelo vinga pelo primeiro mandato imensamente popular, mas também pela campanha de equilíbrios difíceis que conseguiu fazer, incluindo dois debates em que cilindrou os que acabariam por ficar em segundo e terceiro lugares. E assim se mantém tudo igual para um novo mandato em tudo diferente. Porque o Presidente sai deste novo mandato para a reforma, este é o seu último bilhete para mudanças no país. E porque o país está numa situação económica e social, e portanto política, muito diversa da de 2016. Para pior. Hoje estamos em pandemia grave, amanhã estaremos em crise aguda. Uma crise que demorará anos.

Marcelo conduzirá agora em modos mãos-livres em função de dois objetivos determinantes: a da estabilidade política, da moderação, da unidade; e a da reconfiguração da direita, para que ela não acentue a descaracterização para o radicalismo nem acentue o vazio de representação para eleitores sociais-democratas que não se reveem em Rui Rio e democratas-cristãos que olham para Francisco Rodrigues dos Santos e não veem lá nada. Parece estar tudo à espera que Marcelo deixe de andar com o governo ao colo, mas é provável que o vejamos também a intervir agora à direita. Como? Como sempre: pela poder da palavra, assente num grande apoio popular. A popularidade de Marcelo foi e é a base do seu poder.

A GRANDE ESCALADA DO RADICAL VENTURA

O Chega foi criado em abril de 2019, teve 67 mil votos nas legislativas desse ano e o seu líder alcança quase meio milhão de votos nas presidenciais de 2021. O terceiro lugar é, nas suas palavras antecipadas, uma derrota, mas mesmo quem não quer passar cartão a Ventura não pode ignorar quão alto ele chegou nem que se “nacionalizou” a praticamente todos os distritos.

Agora virá a rábula do demite-se-mas-fica, o que na verdade pouco importa. Importa sim que há um partido de extrema-direita em rapidíssimo crescimento em Portugal. Já não são só a cintura de Lisboa e o Alentejo, Ventura não só multiplicou por mais de sete os votos do seu partido nas legislativas, como disparou em todos os distritos, ficando em segundo lugar em 11 dos 18 distritos (Vila Real, Bragança, Viseu, Guarda, Castelo Branco, Leiria, Santarém, Portalegre, Évora, Beja, Faro) e na Madeira.

A SUBIDA DA ABSTENÇÃO

Três em cada cinco portugueses não votaram. Não houve nova mobilização nem houve desmobilização total, pois a abstenção não foi tão elevada quanto se chegou a recear. Mas a democracia não pode ver-se em festa.

A abstenção foi elevada não só porque numa reeleição ela sobe sempre, não só porque estamos em pandemia, mas porque esta foi (mais) uma campanha falhada, porque o PS se demitiu de ir a jogo e o PSD ficou na bancada, porque as eleições deviam ter sido adiadas, porque milhares de pessoas que queriam votar não puderam. De uma vez por todas, avancem com o voto por correspondência.

Espera-se que Eduardo Cabrita não volte a delirar com a visão de uma “festa da democracia”, mas fica a nota positiva para a Comissão Nacional de Eleições e para todos os que se envolveram hoje no processo: depois da medíocre prestação uma semana antes no voto antecipado, o dia das eleições decorreu com as demoras naturais mas correu bem e sem percalços noticiados.

A ESQUERDA ANÃ

Ana Gomes safou o segundo lugar, mas muito longe dos seus objetivos. Marisa Matias teve uma votação à imagem da campanha, isto é, muito fraca. João Ferreira, que fez uma campanha melhor, logrou ficar em quarto, mas com um resultado fraco, ultrapassado por Ventura e perdendo para o líder do Chega em bastiões comunistas. Os três juntos tiveram metade da votação dos candidatos de esquerda há cinco anos. Era difícil pior. Provavelmente, três políticos arrumados quanto a projetos futuros de liderança.

O ESPAÇO LIBERAL

Tiago Mayan Gonçalves, que foi a grande surpresa positiva da campanha, acabou por não ter uma supervotação, mas teve ainda assim o dobro dos votos que a Iniciativa Liberal teve nas legislativas. Cumpriu. Superou as expectativas iniciais. Pode ter nascido um político com mais caminho pela frente. Já Vitorino Silva, o simpático lanterna-vermelha, ficou no mesmo caminho, um pouco abaixo dos resultados de há cinco anos. 

A democracia não é um dado adquirido

Posted: 24 Jan 2021 04:48 AM PST



 

«Tendo nascido nos anos 80, a nossa formação política iniciou-se quase ao mesmo tempo em que aprendemos a falar. A democracia tinha poucos anos e aquilo que lhe faltava em maturidade sobrava em entusiasmo. Aprendemos que um debate se queria longo e aceso, rico em ideologia e ideais, que as campanhas eram feitas de multidões, algazarra e episódios, que o voto era uma arma e que se votava em urnas e nas ruas, se preciso fosse. Aprendemos que a democracia se conquistou no 25 de Abril, mas ninguém nos disse que tínhamos de trabalhar para a manter. 

A democracia deixou para trás um passado de iliteracia, mortalidade infantil, desemprego, miséria e emigração em massa, repressão política e guerra, e muitas outras agruras. Para a maioria das pessoas da geração dos nossos pais, que conheceu essa realidade, pensar numa alternativa à democracia era um anátema; para nós, para quem o passado ainda estava bem visível nas palavras dos nossos pais e avós, era uma impossibilidade. 

Talvez por isso nunca considerámos a possibilidade de a democracia não ser um dado adquirido e de nos caber, afinal, lutar por mantê-la. Encerrados nas nossas certezas, demorámos a perceber que a descredibilização de um representante eleito não fere apenas a imagem do respectivo partido político ou instituição, mas também a confiança de todos no sistema democrático. Ou que a incapacidade, por qualquer via ideológica, de corrigir desigualdades e assimetrias regionais, e de desenvolver transversalmente o país, abriria a porta a que, tarde ou cedo, alguém questionasse a validade de um sistema sobre o qual se colocam tão elevadas expectativas. E não reconhecemos que as crescentes taxas de abstenção não se limitam a piorar a qualidade da nossa democracia, sendo antes sintoma e causa da sua perda de sustentabilidade. 

Lá fora, candidatos populistas, apostados em “dar voz aos que não têm voz”, desafiam ou tomam o poder. Nos EUA, líderes do mundo livre e democrático, massas ululantes, tomaram de assalto o Congresso, afirmando fazê-lo em nome da democracia e às ordens do Presidente, para impugnar o resultado das eleições que o derrubou. Em Portugal, hoje, em plena campanha presidencial, os candidatos não discutem ideologia, ideais ou sequer visões institucionais. Discutem-se uns aos outros ou fingem que nem lá estão. Entretanto, há um candidato que parece apostado em seguir as passadas dos que, no século XX, mantiveram Portugal no miasma que só a democracia veio dissipar e deixaram a Europa afundada em duas guerras com milhões e milhões de mortos. 

Acabou o “estado de graça” da democracia. Não temos já motivos para acreditar que esta sobreviverá, nesta ou noutra forma reconhecível, independentemente do nosso desinteresse e inacção, ou que resistirá eternamente à desilusão, ao cinismo e ao desespero do número crescente de pessoas que, a cada quatro anos, sentem que nada mudou. 

Muito há a fazer e nada do que se possa fazer produzirá o milagre de nos dar a democracia que queremos de um dia para o outro. Incrementar a militância política e restaurar a ligação dos partidos à comunidade, revitalizar o associativismo em todas as suas formas, fomentar a literacia política e cívica são apenas alguns dos passos que aqui, na base do nosso sistema político, estão ao nosso alcance enquanto cidadãos. Não são ideias originais, mas estiveram na origem do nosso sistema político e é nelas que temos que apostar para lutar pela democracia.» 

De boas intenções está o Inferno cheio

 


por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 23/01/2021)

Pacheco Pereira

Os EUA (e não só) têm um problema racial grave. Não é preciso ir mais longe do que ver a diferença de tratamento entre os manifestantes que assaltaram o Capitólio e os que participaram nas manifestações do Black Lives Matter. Ou a facilidade com que a polícia dispara a matar contra negros. Ou muito mais coisas que encheriam todo o jornal, tão evidente que esse problema existe e é grave.

Mas há qualquer coisa de errado quando, para combater esse racismo, se começa a definir toda a gente pela raça, e se começa a institucionalizar um sistema de quotas igualmente pela raça, na maioria dos casos, pela cor da pele. Os democratas americanos e a Administração Biden não fizeram outra coisa nestes últimos dias senão dizer: temos X mulheres (muito do que aqui se diz aplica-se às quotas de género, mas fica para outra vez), X de toda a longa sequência LGBTQ+, X de negros, também identificados como afro-americanos, X de “castanhos”, que é uma categoria nova, X de nativos, X de latinos, X de indianos-americanos, X de americanos orientais, etc. Eu percebo que a diversidade de uma sociedade feita pelos emigrantes, como é a americana, ganhe com a variedade cultural, religiosa, étnica, de origem geográfica, para além da diversidade de género e orientação sexual, mas há qualquer coisa de retrocesso civilizacional neste caminho.

Os países em que este tipo de categorização existe na lei são países em que ser classificado num grupo, seja por orientação sexual, seja por etnia, cor da pele ou raça, ou pela religião, é feito para discriminar e perseguir, não para integrar. Os católicos nos países muçulmanos, as minorias muçulmanas na China, os homossexuais nas Filipinas ou no Uganda, em todos os sítios em que estas categorias estão inscritas em listas ou nos censos, nunca favoreceram a integração, mas, pelo contrário, a guetização. Um assunto conexo, quase sempre tratado com ligeireza, é o das listas públicas de predadores sexuais e pedófilos, mas também aqui fica para outra altura.

Para usar um exemplo ainda mais brutal na sua provocação, mas que penso ter sentido nem que seja pela revelação que às vezes o excesso dá, ninguém como os nazis levou mais longe esta obsessão pela classificação do outro, que se destinava também a defender, pelas suas fronteiras claras, o próximo, o ariano louro. Nos campos de concentração, os judeus, os homossexuais, os ciganos, as testemunhas de Jeová gozavam de uma plena identidade rácica, étnica, religiosa para serem alvo de perseguição e morte. É o inverso das boas intenções do presente, mas o mecanismo é idêntico.

Tenho para mim que numa sociedade democrática todos são iguais, e essa igualdade deriva da pessoa humana, do indivíduo, compreendendo todos os factores de identidade que advêm do género, da cor da pele, da orientação sexual, da religião, mas que são, ou devem ser, para os procedimentos da democracia, invisíveis. Uma pessoa, um voto, uma pessoa, um cidadão, uma pessoa, uma identidade cívica, e só depois é que tudo o resto conta. Na verdade, a nossa tradição democrática assenta na condição de cidadão, e esta qualidade, tal como com a democracia, quando é adjectivada, é enfraquecida. A democracia é uma escolha cultural e política, não parte de uma descrição sociológica nem antropológica da sociedade. O sistema de quotas, que está a crescer, assumidas na lei ou implicitamente funcionando como exclusão ou vantagem, torna, em nome da igualdade, as pessoas desiguais e perverte a cidadania. Mas o mais importante é que não permite combater os males que estão por trás da desigualdade.

Podem dizer-me que isso significa que as instituições, empresas, poderes vão continuar a ser masculinos, brancos e socialmente privilegiados. É verdade e é mau, mas não é instituindo sistemas de quotas, visíveis ou invisíveis, que se combate esta situação. Pelo contrário, institucionaliza-se uma diferença que dilui a igualdade da cidadania e, portanto, mantém os mais fracos, fracos. É verdade que essa igualdade é virtual e não real, mas, do ponto de vista dos procedimentos da democracia, é essa virtualidade que conta. Mais: é essa igualdade virtual que é a base da igualdade real, sendo que a diferença entre uma e outra é do domínio das políticas, e das lutas sociais.

O discurso cada vez mais hegemónico sobre o género, a preferência sexual, a cor da pele, a etnia ou a religião tem o resultado de ocultar que não há legislação nem práticas “politicamente correctas” que resolvam o problema de fundo que explica quer as discriminações, quer o racismo, ou seja, a pobreza, a exclusão, a desigualdade de oportunidades. Enquanto se viver numa sociedade desigual, ela tenderá a potenciar todos os factores de exclusão e esses factores incluem o género, a orientação sexual, a cor da pele, a etnia e a religião. Se se quer combater o racismo e a discriminação, é na luta social que está a chave para combater as injustiças e não pensando que há força nos guetos.

Historiador