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terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

OMS: partilhem a fórmula, produzam-se vacinas 'free'

Posted: 07 Feb 2021 03:45 AM PST



 

«Entretidos com a "pastelaria do INEM", talvez não tenhamos reparado na essencial declaração de Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, quando há dois dias apelou às farmacêuticas para disponibilizarem a "receita" das vacinas. Ou seja, uma produção aberta, em muito mais fábricas, globalmente, e a baixo preço. Isto é dito num momento crucial: sabemos que não é impossível produzirem-se mais vacinas no mundo. Teriam, sim, de deixar de ser feitas apenas nas fábricas da Pfizer, da Moderna, da AstraZeneca e da Johnson & Johnson (além das unidades chinesas e russas).

Não se trata de "nacionalizar/expropriar" a descoberta das vacinas ou querer perseguir os acionistas das farmacêuticas a quem saiu o jackpot. É por uma razão muito mais sólida. Como disse o diretor-geral da OMS, estas farmacêuticas receberam "substanciais fundos públicos" (biliões e biliões de euros/dólares) para o desenvolvimento da vacina, cobrindo-lhes esse risco. Ora, a abertura da tecnologia de produção da vacina pode ajudar a salvar milhões de vidas e o funcionamento planetário - inclusive para benefício dos próprios países ricos. Não haverá economia sem um mundo inteiro aberto.

Mais: face à escalada de novas variantes, as vacinas necessitarão de permanentes atualizações, faltando ainda saber quantos anos vamos ter de administrar doses a quase toda a população mundial. Portanto, este esforço tem de ser open source e global.

A Covax (que Durão Barroso preside) foi criada com dotações de Estados, empresas e milionários para fazerem chegar a vacina a todo o mundo, mas a tarefa é hercúlea. A organização não governamental OXFAM calcula que nove em cada dez pessoas dos países pobres não vão ter acesso à vacina neste ano. Em simultâneo, três quartos das vacinas produzidas até agora tiveram como destino apenas dez países e há uma guerra diplomática em curso por causa disso. Solução: produzir mais e libertar a produção. Há inúmeras fábricas de vacinas em todo o mundo disponíveis para acelerar esta luta contra a covid-19.

O controlo da vacina por meia dúzia de empresas/nações superpoderosas gerará um mundo ainda mais desequilibrado no final da pandemia. Um exemplo desta semana: o agradecimento (sentido) do presidente do Paquistão à China por lhe fornecer a vacina. Como se pagará este favor no futuro? Que engrandecimento de uma ditadura isto acarreta aos olhos das opiniões públicas de tantos países como aquele, por todo o mundo?

Foi, aliás, ultrajante, a posição do enviado da União Europeia a Moscovo, Josep Borrell, a quem se pediu simultaneamente uma ação firme de condenação do encarceramento do líder da oposição, Alexei Navalvy, e ao mesmo tempo uma atitude de charme para se negociarem vacinas russas para a Europa.

Vai continuar a existir mundo depois da covid. A pior coisa que nos poderia acontecer seria acordarmos num globo dividido em dois - o que foi controlado pela diplomacia da vacina chinesa (e russa), em contraponto ao mundo ocidental, fechado em si mesmo, que só se preocupou em salvar os seus cidadãos à frente de todos os outros - e onde realmente ninguém quer saber se os profissionais de saúde ou idosos de África, Ásia ou América Latina podem sobreviver.

Como não há vacina nem para a ansiedade nem para a demagogia, ataque-se o mal na raiz: abra-se a produção da vacina a todos. Infelizmente, só as opiniões públicas dos países ocidentais podem gerar essa mudança porque o establishment dirá que é impossível de ser feito. Até acontecer.»

Covid-19. Decréscimo nas mortes “é fantástico”

 


por estatuadesal

(In Expresso Diário, 07/02/2021)

"Fomos dos melhores do mundo no primeiro confinamento, os piores na origem da terceira vaga e vamos ser um dos países do mundo que mais depressa conseguiu controlar a terceira vaga porque, de facto, houve uma adesão fantástica ao confinamento e o resultado está à vista", disse, em declarações à agência Lusa, o virologista".


O virologista Pedro Simas disse este domingo que Portugal está a ter uma redução abrupta no número de novos contágios, resultante do confinamento, que poderá colocar o país entre um dos melhores do mundo a controlar a terceira vaga da pandemia.


"Fomos dos melhores do mundo no primeiro confinamento, os piores na origem da terceira vaga e vamos ser um dos países do mundo que mais depressa conseguiu controlar a terceira vaga porque, de facto, houve uma adesão fantástica ao confinamento e o resultado está à vista", disse em declarações à agência Lusa.

Os vírus, adiantou, transmitem-se por gotículas e se forem inibidos os movimentos com confinamentos, uso de máscaras e distanciamento social, as cadeias de transmissão são interrompidas abruptamente.

"Isto era perfeitamente previsível e dependia do bom comportamento e adesão ao confinamento total e o que eu vejo é que houve uma adesão fantástica e o resultado está à vista porque a biologia é factual. Se não houver contactos e as pessoas aderirem às regras, os vírus não se conseguem transmitir. Está nas nossas mãos. É por isso que a curva de decréscimo é tão abrupta", frisou o virologista do Instituto Molecular da Universidade de Lisboa

Pedro Simas referiu que de 28 de fevereiro a 6 de fevereiro Portugal passou de uma média de 12.890 casos para 7.270 casos.

"É fantástico. Está a ser tão bem executado que já se nota ao fim de duas semanas um decréscimo significativo no número de mortes. A 31 de janeiro, tínhamos em média 288 mortes nos últimos sete dias e agora temos 253. Há aqui, também, uma tendência e isto significa que temos bons serviços de saúde e que, apesar das dificuldades, o Serviço Nacional de Saúde está a ter um bom desempenho. Só temos motivos para estar orgulhosos", disse.

O encerramento das escolas foi, para Pedro Simas, determinante para esta inflexão da curva de crescimento. "O encerramento das escolas foi determinante porque é uma mensagem clara para a sociedade portuguesa. Quando se fecha as escolas é porque o assunto é sério ", disse, adiantando que ter as escolas abertas implicava muito movimento dos adultos.

O virologista alerta que é agora muito importante aprender com o passado e perceber que é preciso desconfinar com regras para que Portugal não corra maior risco de surgimento de uma quarta vaga, lembrando que foi o relaxamento das medidas antes, durante e após o Natal que levou à terceira vaga do vírus.

"Já percebemos a dinâmica do vírus. Como se consegue controlar? a nível da sociedade aderindo às regras de distanciamento físico, o uso da máscara e inibindo ao máximo os contactos desnecessários", frisou. A combinação destes fatores, defendeu, vai fazer a diferença para se conseguir ganhar liberdade. mantendo o nível de infeções a níveis aceitáveis.

Pedro Simas reforça a necessidade de haver cautela no desconfinamento, defendendo que só deveria ser pensado quando o país atingir entre os 700 e os 1400 novos casos por dia. "Seria ótimo e estaríamos num nível de segurança grande em que, seguindo as regras, conseguíamos controlar e evitar uma quarta vaga", afirmou, observando que é possível que dentro de duas a três semanas Portugal atinja esses valores ideais de segurança para uma tomada de decisão sobre o desconfinamento.

"(O desconfinamento) é quando os números permitirem porque são um efeito direto do nosso comportamento e refletem diretamente se estamos a controlar ou não", frisou. Pedro Simas destacou ainda que está a acontecer no mundo um decréscimo exponencial do número de infeções.

"De fevereiro até agora tem vindo sempre a subir em todo o mundo até ao dia 23 de dezembro. Entre 23 e 28 baixou um pouco voltando a subir até 11 de janeiro. De 11 de janeiro até 6 de fevereiro tem vindo sempre a baixar. Nunca houve um decréscimo tão grande a nível mundial", disse, assinalando este facto como uma nota positiva, mas vincando que existe preocupação quanto a uma eventual quarta vaga, sendo por isso necessário e determinante todo o cuidado no pós confinamento.

Portugal registou este domingo 204 mortes relacionadas com a covid-19 e 3.508 casos de infeção com o novo coronavirus, segundo a Direção-Geral da Saúde (DGS). Há um mês que o país não registava um número de novos casos abaixo dos quatro mil, valor que remonta ao dia 3 de janeiro, quando foram atingidos 3.384 casos.

Estão internadas em Portugal 6.248 pessoas com a doença, mais 90 do que no sábado, das quais 865 em unidades de cuidados intensivos, menos 26. Os dados revelam ainda que 6.573 pessoas foram dadas como recuperadas. Hoje foi o sétimo dia consecutivo em que o número de recuperados superou o de novas infeções, quase o dobro.

O número de casos ativos em Portugal também regista um decréscimo. Há 145.090 pessoas com o vírus ativo, menos 3.269 em relação a sábado. As autoridades de saúde têm sob vigilância 187.440 contactos, menos 5.233 relativamente ao dia anterior. Este indicador tem também registado uma descida consistente desde o dia 30 de janeiro.

A pandemia de covid-19 provocou, pelo menos, 2.310.234 mortos no mundo, resultantes de mais de 105,7 milhões de casos de infeção, segundo um balanço feito pela agência francesa AFP. A doença é transmitida por um novo coronavírus detetado no final de dezembro de 2019, em Wuhan, uma cidade do centro da China.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

A mentira no pequeno ecrã

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 05/02/2021)


A quem se dispõe a ver e ouvir os principais noticiários televisivos, à noite, pelas 20h, em qualquer um dos principais canais (RTP1 — salva-se a RTP2 — SIC e TVI) é-lhe infligida uma dose superlativa e alongada de notícias e reportagens sobre o Covid-19 que são exactamente iguais às notícias e reportagens do dia anterior, quase iguais às da semana anterior e horizontalmente encadeadas, sem picos nem descontinuidades, nas do mês anterior. A única coisa que difere é o teor de dramatismo, a acentuação, a mímica dos jornalistas (categoria na qual o vencedor absoluto é o clown José Rodrigues dos Santos).

Todos os dias, o empenho destes jornalistas em nos fazer imergir na peça que eles interpretam em vários andamentos (perigo, desastre, tragédia apocalipse) deixa-nos obtusos, anestesiados, irritados ou aterrorizados, conforme o nosso grau de permeabilidade e de “literacia mediática”, como se diz hoje. Sem negar a gravidade da pandemia, devemos perceber que quanto mais este jornalismo obeso e com a cegueira da enumeração se aplica a mostrar menos dá a ver, quanto mais imagens nos fornece mais visão nos confisca, quanto mais nos quer convencer de que toca a realidade e a verdade mais produz ficção e mentira. Este jornalismo da mesmice — dos mesmos factos, das mesmas pessoas e do mesmo tom — que encena pela redundância uma ilusão de totalidade (e que, por isso, precisa sempre de muito tempo, é uma espécie de roman-fleuve diário) coloca-nos perante um enigma: os jornalistas fazem-no por genuína convicção, por convicção induzida através de um mecanismo coercivo, ou sem nenhuma convicção, mas enquanto funcionários pragmáticos? Ficaríamos a saber alguma coisa de útil e mais aprofundada se eles se dispusessem a falar da sua profissão e das circunstâncias em que trabalham sem ser para cantar hinos e celebrar os sucessos da instituição que lhes dá emprego. John Maynard Keynes disse uma vez dos seus pares: “Os economistas estão ao volante da nossa sociedade, mas deviam estar no banco de trás”. É justo e razoável achar que Keynes tinha razão em 1946, quando fez essa afirmação, e continua a tê-la hoje. Vão para ele os créditos se dissermos mais ou menos o mesmo de quem vai ao volante deste jornalismo que nos é servido diariamente na televisão (não falo agora dos jornais porque aí, apesar de tudo, a paisagem é menos monótona e mais plural).

Atentemos no seguinte: o canal de televisão que à segunda-feira, num programa de fact checking chamado Polígrafo, traça “uma linha em nome dos factos”, dizendo-nos “onde acaba a verdade e começa a mentira”, é o mesmo que levou uma hora e meia a mentir-nos no Jornal da Noite que antecede esse programa. Não mente por dizer mentiras ou falsear imagens, não é a actual questão das fake news e da pós-verdade que aqui surge como pertinente ou a solicitar análise. Mente pelo encadeamento de palavras e de imagens, pela poluição discursiva e visual que produz, pelo tom adoptado (a dimensão prosódica do discurso, digamos assim), arrastando-nos para uma das regiões mais poluídas do planeta. Ai, nem palavras nem imagens são zonas a defender. Cumpre-se um formulário que encontrou uma representação eloquente no mais repetido estribilho dos últimos meses: “Hoje há X mortes a lamentar”. Temos à nossa disposição outras maneiras de dizer, de fazer, de dar a ver (mesmo na televisão em Portugal: é preciso dizer que nem tudo se equivale, não há apenas os jornais televisivos das 20h, nem todos praticam o mesmo tipo de jornalismo) que, sem a pretensão de um polígrafo, nos facultam elementos suficientes para percebermos onde está a mentira. Há uma cena do filme Palombella Rossa em que o protagonista, um deputado comunista interpretado pelo próprio realizador, Nanni Moretti, entrevistado por uma jornalista, começa a fazer um relato de lutas ecológicas e políticas travadas por comunidades indígenas do Peru. A entrevistadora, achando o assunto pouco interessante, interrompe-o e faz-lhe perguntas sobre o seu divórcio e o seu estilo de vida. Atingindo o extremo da impaciência, o entrevistado dá uma bofetada à jornalista e grita-lhe: “Ma come parla? Come parla?”, como quem diz: “Como é possível falar dessa maneira? Como posso eu continuar a falar consigo?” 

No princípio era o milagre português

Posted: 04 Feb 2021 03:15 AM PST



 

«No início da pandemia, fomos considerados exemplares. Em todos os indicadores epidemiológicos posicionámo-nos melhor que os países congéneres. Dávamos “lições” ao mundo no que concerne à resposta coletiva cívica e conscienciosa a que a todas as geografias era exigido. Jornais de referência como New York Times debruçaram-se sobre o nosso caso, apelidado, talvez por tão raramente nos destacarmos no panorama internacional, como o “milagre português”. Em Abril do ano passado, o jornal Alemão Der Spiegel dedicava uma reportagem a este “milagre”, pelo que destacou como sua causa central o medo (porventura, condição sine qua non a qualquer milagre). O medo fez os portugueses sair da rua.

O “milagre” que fez o Português sair da rua

Um artigo científico recentemente publicado analisa esta questão em particular. Mais precisamente, não o medo (uma emoção associada à parte mais primitiva do nosso cérebro), mas, ao invés, a auto-percepção de risco (uma espécie de medo informado, cognitivamente desenvolvido, com envolvimento das zonas mais sofisticadas do nosso cérebro). Com base nos resultados do Barómetro da ENSP-NOVA, foi analisada a perceção de risco da população portuguesa durante a primeira vaga da pandemia. Os resultados são inequívocos – sobretudo entre os mais vulneráveis (tanto pela idade, como pela presença de outras doenças), o risco que cada um julga ter de desenvolver complicações graves em caso de infeção pelo SARS-CoV-2 parecia corresponder ao risco real. Assim, este “medo” português não só se adequou ao que as circunstâncias impunham, como se ajustava à própria vulnerabilidade de cada um. A literatura científica diz-nos que a perceção de risco antecede o comportamento preventivo, ou seja, quanto mais julgarmos que estamos vulneráveis, maior será o nosso esforço para nos protegermos, nomeadamente sair da rua e ficar em casa o mais possível. Aqui está uma excelente justificação (não divina) para o nosso “milagre”.

O “milagre” não dura e o Português saiu à rua

A 13 de Março de 1964, uma moradora do bairro de Queens, em Nova Iorque, foi brutalmente assassinada por múltiplo esfaqueamento quando voltava do trabalho. Kitty Genovese, de 28 anos, estava na hora e local errados, numa altura em que a violência na cidade atingia proporções preocupantes. Mas não estava sozinha quando foi atacada. Diversos vizinhos testemunharam o crime sem, no entanto, tentarem impedi-lo. Apesar de, mais tarde, as circunstâncias exatas desse testemunho inoperante terem sido questionadas, o evento despoletou uma série de estudos na área da psicologia social, que ajudam a compreender o comportamento individual diante de um problema coletivo. Genericamente, numa emergência, a probabilidade de intervenção individual é tanto menor quanto maior o número de intervenientes. O outro que resolva. A este comportamento designou-se de síndrome de Genovese.

A pandemia dura, o “milagre” não tanto, como é, de resto, apanágio de qualquer milagre. Somos, neste momento, os piores entre os piores do mundo no que concerne a indicadores covid-19. Um inacreditável destacadíssimo primeiro lugar no número de novos casos por milhão de habitante (ao fim de Janeiro, 16 vezes superior à média mundial). O que correu mal, então, com o “milagre português”?

Tal como o que correu bem na primeira vaga pode ser o efeito de diversificados fatores, a presente calamidade é, com certeza, o resultado de muitas causas. Especialmente diante do frondoso desastre, muito poderá e deverá ser explorado sobre essas causas. Parece, desde já, haver um volte-face amiúde reportado sobre o comportamento preventivo de muitos portugueses. Permissão que gerou permissão, de mau exemplo em mau exemplo, bastava testemunhar pela janela. Talvez, tal como preconizado pela “teoria das janelas quebradas”, popularizada em torno do combate à violência em Nova Iorque nos anos 90, pequenos sinais de desordem (por exemplo, amena cavaqueira de grupos de pessoas sem respeito pela distância social) formem uma ladeira escorregadia que leva a mais e maiores elementos de desordem (por exemplo, aglomeração de grande número de pessoas em espaços interiores sem qualquer proteção).

Talvez o medo básico individual se tenha dispersado em irresponsabilidade coletiva. No seu pior e à escala de um país inteiro, quiçá um género de síndrome de Genovese, em que, no seio desta calamidade, que requer uma intervenção individual contundente, quanto mais pessoas envolvidas (para o caso, todos nós), menor a probabilidade de cada um fazer o que lhe é devido. O outro que resolva. Suavizámos a autoiniciativa de termos um comportamento cívico exemplar e, assim, saímos à rua quando mais nos indicavam o contrário.

É importante continuarmos a tentar compreender o que correu bem na primeira vaga e o que sucedeu desde então. Para já, parece muito evidente que é importante, por um lado, deixarmos de acreditar em milagres e de embandeirar em arco quando as coisas nos correm bem, por outro, temos de repudiar continuamente a desinformação que nos chega, ouvirmos o que a ciência tem para dizer e retomarmos nas próprias mãos o dever que cada um tem para combater esta crise.

A intervenção de cada um de nós tem de ser contundente. Não é o outro, sou eu!

No princípio, foi o “milagre português”, agora tem de ser muito mais do que o habitual português suave.»

O que Ana Rita Cavaco ouviu dizer e as duas faces da mesma incivilidade

 

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 04/02/2021)


Deixo para a edição semanal desta sexta-feira o texto sobre o debate que se instalou em torno dos casos de vacinação indevida e a demissão de Francisco Ramos, no que ela tem de compreensível, de acertado, de errado, de inevitável e de lamentável. Na desproporção mediática que cria dinâmicas que podem tornar impossível qualquer gestão desta pandemia, com custos para as nossas vidas. Como digo, fica para outro texto. Esta quinta-feira quero falar de uma personagem que tem tudo a ver com isto.

Dois dos bastonários ligados à área da saúde – pelo menos que eu tenha dado por isso, não se confundem com eles os dos farmacêuticos, psicólogos, médicos dentistas e nutricionistas – têm desempenhado um papel lamentável nesta pandemia. Esse papel é essencialmente político, extravasando a já ilegítima tentativa de se substituírem aos sindicatos. Mas não me vou dedicar a Miguel Guimarães. Não porque seja irrelevante. O poder absurdo que a Ordem tem na porta de entrada das especialidades também ajuda a explicar algumas das dificuldades que vivemos. Apenas porque, apesar de tudo, não o quero misturar com uma pessoa que promete ter futuro na cada vez mais desprestigiada política nacional. É para isso que está a trabalhar, pelo menos.

A bastonária Ana Rita Cavaco entra num outro campeonato. Já não estamos, no seu caso, a falar de aproveitamento político. Estamos a falar de um comportamento que degrada o espaço público, intolerável em quem ocupa o lugar que ocupa. Apesar de apenas 19 mil dos mais de 70 mil enfermeiros lhe terem dado o seu voto, é inconcebível que a classe se consiga rever no seu comportamento ofensivo e tóxico.

Sobre os casos de utilização indevida de vacinas, que não são uma originalidade portuguesa, Ana Rita Cavaco tem liderado uma caça às bruxas. Não se trata de denunciar casos de abuso. O abuso deve ser denunciado. Seria normal que quem tem poderes delegados pelo Estado usasse melhores vias do que as redes sociais, mas já não espero que alguém ainda ligue a isso. Grave é que a bastonária acuse pessoas sem qualquer tentativa de recolher provas, usando o poderoso argumento de “ouvi dizer”. Foi o que fez com Jorge Botelho, secretário de Estado da Descentralização e Administração Local, e a sua mulher, Margarida Flores, diretora regional do Instituto de Segurança Social do Algarve. Esclareça-se que nada sei sobre estas duas pessoas, para além dos cargos que ocupam e de serem, ao que parece, marido e mulher. Nem sei são competentes. Isso é, neste caso, relevante.

Escreve a bastonária (tenho de estar sempre a sublinhar que é bastonária, porque custa a acreditar): “Também ouvi dizer que a Presidente da SS de Faro, ilustre esposa de um Secretário de Estado, eu para nomes sou horrível, mas acho que a ilustre é Margarida Flores e o partner é o SE da administração local, acho que se chama assim. Pegou nela, dizem, na família e nuns amigos socialistas e toca de fazer de fura filas e chicos espertos a tomar a vacina. Se assim for, a quantidade de trastes por metro quadrado no País, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho! Que gente é esta meu Deus. Atenção, dizem...”

Ana Rita Cavaco sabe, como todos hoje sabem, que espalhada a mentira já não há como a travar. Mas a coisa piora. Quando foi contactada por um dos visados para a informar de que nem sequer fora vacinado, a bastonária (sim, bastonária) acrescentou um postscriptum: “Entretanto ligou-me agora o SE Jorge Botelho, agora fixei o nome, referindo que não foi vacinado, nem ele, nem a esposa mas que tem critérios para ser. Ficou aborrecido com o que as pessoas dizem. Achei que devia pôr aqui a sua posição mas confesso que fiquei confusa, não foi mas tem critério. Lembrei-me de outra coisa também, o critério neste país para se ter um alto cargo público, família.”

Perante a informação de que estava a difamar alguém, a bastonária (é mesmo bastonária) não pediu desculpas, não corrigiu o que escreveu. Preferiu manter a dúvida: “confesso que fiquei confusa.” E passou ao ataque, sobre as relações familiares na ocupação de cargos públicos, sem qualquer relação com os factos em causa e o processo de vacinação. Errar numa acusação desta natureza é grave, mas pode acontecer a qualquer pessoa num gesto imediato e irrefletido de que se arrepende. Saber que se mentiu e manter a insinuação, em vez de pedir desculpas pela injustiça cometida, define o caráter de alguém.

Jorge Botelho e Margarida Flores já tornaram pública a intenção de avançar com processos crime por difamação contra Ana Rita Cavaco. Sabem, todos sabemos, que isso não limpará os seus nomes do diz-que-disse. Sei por experiência própria que estas acusações permanecem para sempre no ar. E que a bastonária (pois, bastonária) continuará a usar um estilo que resulta.

O estilo de Ana Rita Cavaco é fácil de reconhecer. E nem os insultos relacionados com características físicas das pessoas escapa ao mimetismo de Trump e da sua cópia nacional – “a gorda fura filas”, foi como chamou à presidente da Câmara Municipal de Portimão, por ela ter dito que era obesa. Alguma vez imaginámos ler de um qualquer bastonário o termo “gorda” para se referir a um qualquer detentor de cargo público, por mais censurável que fosse o seu comportamento? O que aconteceu à nossa exigência para isto já não nos incomodar? A que ponto chegámos para alguém que dirige uma ordem profissional falar assim e tudo ser normal?

A tristeza com que vejo espertalhões passarem à frente para receberem a vacina é a mesma com que vejo uma bastonária com poderes delegados do Estado a liderar uma caça às bruxas nas redes sociais, chamando “gorda” a uma autarca ou difamando pessoas porque “ouviu dizer” que tomaram a vacina indevidamente e recusando-se a corrigir a difamação quando é esclarecida. São duas faces da mesma informalidade e desprezo por regras legais e de civilidade. Uma não se opõe à outra. São cozinhadas no mesmo caldo.

Para percebermos como está invertida a ordem moral das coisas, basta deixar uma pergunta. Francisco Ramos demitiu-se da liderança da task-force depois de ter ele próprio detetado irregularidades no processo de vacinação no hospital onde tem responsabilidades de direção. Se Ana Rita Cavaco descobrisse irregularidades na Ordem dos Enfermeiros, demitia-se? Acho que todos sabemos intuitivamente a resposta. E todos percebemos que tipo de pessoas estão a fazer julgamentos públicos de que tipo de pessoas.