por estatuadesal |
(Michael Roberts, in a Viagem dos Argonautas, trad. Júlio Marques Mota, 12/02/2021)
O Stigler Center da Booth Business School da Universidade de Chicago acaba de publicar um e-book comemorativo da posição publica assumida por Friedman sobre o valioso e virtuoso papel das empresas capitalistas modernas. Com o nome do líder economista neoclássico George Stigler, o Stigler Center quis honrar o trabalho de Milton Friedman em justificar as grandes empresas capitalistas como uma força para o bem.
Para os que não sabem quem foi Milton Friedman este foi o principal economista da “Chicago School” no período pós-guerra e o famoso expoente do “monetarismo”, ou seja, que a inflação dos preços de bens e serviços é causada por alterações na quantidade de dinheiro que circula numa economia. Friedman era notório pelo seu apoio aos ‘mercados livres’, governos pequenos e ditaduras (deu conselhos à ditadura de Pinochet no Chile nos anos 70). Vejam a minha crítica de 2006 ao trabalho de Friedman no meu livro, The Great Recession, na página 119.
O que interessou ao Stigler Center foi a opinião de Friedman sobre as empresas, a forma que as empresas capitalistas modernas têm assumido desde os finais do século XIX, substituindo a maioria das empresas detidas diretamente pelos seus gestores (familiares ou sociedades pessoais). A “doutrina Friedman”, como tem sido chamada, diz que a única responsabilidade de uma empresa é para com os seus acionistas. E como tal, o objetivo da empresa é maximizar os retornos aos acionistas. As empresas existem para maximizar os lucros e esse deve ser o seu único objectivo, sem quaisquer distrações de ‘responsabilidade social’ ou outras preocupações ‘externas’. De facto, se as grandes empresas ou as grandes multinacionais fizerem exatamente isso, no mundo dos mercados livres, seguir-se-ão ganhos para toda a comunidade: “há uma e única responsabilidade social das empresas – utilizar os seus recursos e envolver-se em atividades destinadas a aumentar os seus lucros, desde que se mantenham dentro das regras do jogo, ou seja, se envolvam em concorrência aberta e livre sem ser falseada ou com fraudes”. (Friedman).
O livro editado pelo Centro Stigler visa defender e promover a caracterização de Friedman do objectivo das empresas capitalistas. Mas também contém ensaios de quem discorda. Não vou discutir os detalhes dos ensaios que defendem a doutrina de Friedman; prefiro olhar para os argumentos daqueles que discordam. Mas comecemos por dizer que Friedman tem claramente razão: o objectivo das empresas ou corporações capitalistas é maximizar os lucros para os seus proprietários, quer sejam ganhos diretamente ou através da função de acionistas. E ele tem razão em dizer que quaisquer outros motivos ou objectivos adoptados só podem prejudicar a obtenção desse lucro.
Naturalmente, Friedman está errado ao assumir que o impulso do capitalismo para o lucro num “mercado livre competitivo” beneficiará toda a gente, não apenas os proprietários capitalistas, mas também os trabalhadores e o planeta. É um disparate para os defensores de Friedman no livro do Stigler, como Kaplan, concluir que “Friedman estava e está certo. Um mundo em que as empresas maximizam o valor acionista tem sido imensamente produtivo e bem sucedido ao longo dos últimos 50 anos. Consequentemente, as empresas devem continuar a maximizar o valor acionista enquanto se mantiverem dentro das regras do jogo. Qualquer outro objetivo incentiva a desordem, o desinvestimento, a interferência governamental e, em última análise, o declínio”.
Mas os críticos da doutrina de Friedman, da ala dos economistas Keynesianos heterodoxos, caem numa armadilha. A sua linha, tal como é defendido por Martin Wolf e Luigi Zingales, é que a doutrina de Friedman falha porque não existem mercados livres competitivos no capitalismo moderno. As empresas tornaram-se tão grandes que se tornaram ‘price makers’, e não ‘price takers’. Como diz Wolf, as grandes corporações não cumprem as regras e regulamentos para um ‘level playing field’ nos mercados: “as corporações não são “tomadores de regras”, mas sim “fazedores de regras”. Os jogos que elas praticam têm regras mas na criação destas regras são as grandes empresas que desempenharam um grande papel, através da política”.
A implicação desta crítica da doutrina Friedman é que se as corporações se mantivessem fiéis às “regras”, então o capitalismo funcionaria com benefício para todos. Por outras palavras, não há nada de errado com as corporações privadas a produzirem com fins lucrativos e a explorarem os seus trabalhadores para o fazerem. O problema é que elas se tornaram demasiado grandes para as suas botas. Precisamos de as regular de modo a que, ao obterem os seus lucros, todas elas compitam de forma justa entre si e também tenham em conta as “externalidades”; ou seja, as consequências sociais das suas atividades.
Esta crítica pressupõe que o capitalismo competitivo é uma “coisa boa” e funciona. Mas será que o capitalismo competitivo, se existisse ou fosse imposto por regras governamentais, produziria uma “sociedade justa e equitativa”? Nos dias em que o ‘capitalismo competitivo’ supostamente existia, nomeadamente no início do século XIX, Friedrich Engels salientou que o comércio livre e a concorrência de modo algum proporcionavam um desenvolvimento equitativo e harmonioso da produção para benefício de todos. Como Engels argumentou, enquanto os economistas clássicos oferecem concorrência e comércio livre contra os males do monopólio, não reconhecem o maior monopólio de todos: a posse de propriedade privada por alguns e a falta dela para os restantes. (Ver o meu livro, Engels 200).
O capitalismo competitivo não evitou o aumento das desigualdades, os danos ao ambiente, a exploração extrema dos seus trabalhadores e as crises regulares e recorrentes de investimento e produção. Isso foi precisamente porque o modo de produção capitalista é para se obterem lucros (como diz Friedman) – e a partir daí, tudo o resto flui.
Sim, disse, Engels, “a concorrência baseia-se no interesse próprio e este interesse próprio alimenta os monopólios. Em suma, a concorrência transforma-se em monopólio”. Mas isso não significa que o monopólio seja o mal que deve ser banido e que um regresso aos mercados livres e à concorrência (dentro das regras estabelecidas) funcionaria. Esta é a armadilha em que alguns economistas de esquerda caem quando falam dos males do “capitalismo de monopólio estatal”. Não são os monopólios enquanto tais, ou a sua “captura” pelo Estado, que estão no centro da argumentação contra a doutrina de Friedman. É o capitalismo enquanto tal: a propriedade privada dos meios de produção com fins lucrativos. Esta é a crítica mais forte à justificação de Friedman sobre a empresa.
Em vez disso, pessoas como Martin Wolf ou Joseph Stiglitz só querem corrigir as “regras do jogo”. Wolf quer o que ele chama um “bom jogo” onde “as empresas não promoveriam a ciência do lixo sobre o clima e o ambiente; é um jogo em que as empresas não matariam centenas de milhares de pessoas, promovendo o vício dos opiáceos; é um jogo em que as empresas não fariam lóbi a favor de sistemas fiscais que as deixassem esconder vastas proporções dos seus lucros em paraísos fiscais; é um jogo em que o sector financeiro não faria lóbi pela capitalização inadequada que causa enormes crises; é um jogo em que os direitos de autor não seriam alargados e ampliados; é um jogo em que as empresas não procurariam esterilizar uma política de concorrência eficaz; é um jogo em que as empresas não fariam lóbi contra os esforços para limitar as consequências sociais adversas do trabalho precário; e assim por diante e assim por diante. ” Para Wolf, a tarefa é “como criar boas regras do jogo sobre concorrência, trabalho, ambiente, tributação, etc.”.
Esta não é apenas uma análise errada do capitalismo moderno; é utópica ao extremo. Como se pode pôr fim a qualquer uma das desigualdades acima descritas por Wolf, preservando o capitalismo e a lógica do mundo empresarial? Só temos de considerar a história interminável do forrobodó bancário e a sua conivência com o mundo empresarial para esconder os seus lucros dos governos nacionais. De acordo com a Tax Justice Network, as empresas multinacionais transferiram mais de 700 mil milhões de dólares em lucros para paraísos fiscais em 2017 e esta transferência reduziu as receitas fiscais globais das empresas para os governos nacionais em cerca de 10%.
As empresas de combustíveis fósseis grandes emitentes de carbono transferiram milhares de milhões de lucros para vários paraísos fiscais. Em 2018 e 2019, a Shell ganhou mais de 2,7 mil milhões de dólares – cerca de 7% do seu rendimento total nesses anos – isentos de impostos, ao reportar lucros em empresas localizadas nas Bermudas e nas Bahamas que empregavam apenas 39 pessoas e geraram a maior parte das suas receitas de outras entidades da Shell. Se esta grande companhia petrolífera e de gás tivesse reservado os lucros através da sua sede na Holanda, poderia ter enfrentado uma fatura fiscal de cerca de 700 milhões de dólares, com base na taxa de imposto sobre o rendimento das empresas holandesas de 25%.
E depois há as FAANG, (Facebook, Amazon, Apple, Netflix, Google) as grandes empresas tecnológicas que acumularam lucros enormes durante a pandemia da COVID-19, enquanto muitas pequenas empresas são encostadas à parede, sem saída. Dominam o software e a tecnologia de distribuição através de direitos de propriedade intelectual e sugam qualquer concorrência. Governos de todo o mundo estão agora a considerar como regular estes gigantes e colocá-los sob as “regras do jogo”. Fala-se em dividir estes “monopólios” em unidades competitivas mais pequenas. Estou certo de que Friedman teria aprovado esta solução como parte da sua “doutrina”.
Mas será que resolveria realmente alguma coisa? Há mais de um século, os reguladores antitrust dos EUA ordenaram a rutura do Standard Oil. A empresa tinha-se tornado um império industrial que produzia mais de 90 por cento do petróleo refinado da América. A empresa foi dividida em 34 empresas “mais pequenas”. Elas ainda existem hoje em dia. São chamadas Exxon Mobil, BP e Chevron. Será que Wolf, Stiglitz e os opositores do “capitalismo monopolista” consideram realmente que a solução “Standard Oil” pôs fim às “irregularidades” das empresas petrolíferas, melhorou as suas “responsabilidades sociais” e as salvaguardas ambientais a nível mundial? Será que eles pensam realmente que o ‘capitalismo de acionistas’ pode substituir a lógica empresarial e ser a solução? A regulamentação e a restauração da concorrência não funcionarão porque tudo o que isso significa é que a doutrina de Friedman continua a funcionar.
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The Friedman doctrine in the 21st century – Michael Roberts Blog (wordpress.com)