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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

O Mundo de Milton Friedman

por estatuadesal

(Michael Roberts, in a Viagem dos Argonautas, trad. Júlio Marques Mota, 12/02/2021)


O  Stigler Center da Booth Business School da Universidade de Chicago acaba de publicar um e-book comemorativo da posição publica assumida por  Friedman sobre o valioso e virtuoso papel das empresas capitalistas modernas. Com o nome do líder economista neoclássico George Stigler, o Stigler Center quis honrar o trabalho de Milton Friedman em justificar as grandes empresas  capitalistas como uma força para o bem.

Para os que não sabem quem foi Milton Friedman este  foi o principal economista da “Chicago School” no período pós-guerra e o famoso expoente do “monetarismo”, ou seja, que a inflação dos preços de bens e serviços é causada por alterações na quantidade de dinheiro que circula numa economia.  Friedman era notório pelo seu apoio aos ‘mercados livres’, governos pequenos e ditaduras (deu conselhos à ditadura de Pinochet no Chile nos anos 70).  Vejam a minha crítica de 2006 ao trabalho de Friedman no meu livro, The Great Recession, na página 119.

O que interessou ao Stigler Center foi a opinião de Friedman sobre as empresas, a forma que as empresas capitalistas modernas têm assumido desde os finais do século XIX, substituindo a maioria das empresas detidas diretamente pelos seus gestores (familiares ou sociedades pessoais).  A “doutrina Friedman”, como tem sido chamada, diz que a única responsabilidade de uma empresa é para com os  seus acionistas.  E como tal, o objetivo da empresa é maximizar os retornos aos acionistas.  As empresas existem para maximizar os lucros e esse deve ser o seu único objectivo, sem quaisquer distrações de ‘responsabilidade social’ ou outras preocupações ‘externas’. De facto, se as grandes empresas ou as grandes multinacionais  fizerem exatamente isso, no mundo dos mercados livres, seguir-se-ão ganhos para toda a comunidade: “há uma e única responsabilidade social das empresas – utilizar os seus recursos e envolver-se em atividades destinadas a aumentar os seus lucros, desde que se mantenham dentro das regras do jogo, ou seja, se envolvam em concorrência aberta e livre sem ser falseada ou com fraudes”. (Friedman).

O livro editado pelo Centro Stigler visa defender e promover a caracterização de Friedman do objectivo das empresas capitalistas. Mas também contém ensaios de quem discorda.  Não vou discutir os detalhes dos ensaios que defendem a doutrina de Friedman; prefiro olhar para os argumentos daqueles que discordam. Mas comecemos por dizer que Friedman tem claramente razão: o objectivo das empresas ou corporações capitalistas é maximizar os lucros para os seus proprietários, quer sejam ganhos  diretamente ou através da função de acionistas. E ele tem razão em dizer que quaisquer outros motivos ou objectivos adoptados só podem prejudicar a obtenção desse lucro.

Naturalmente, Friedman está errado ao assumir que o impulso do capitalismo para o lucro num “mercado livre competitivo” beneficiará toda a gente, não apenas os proprietários capitalistas, mas também os trabalhadores e o planeta. É um disparate para os defensores de Friedman no livro do Stigler, como Kaplan, concluir que “Friedman estava e está certo. Um mundo em que as empresas maximizam o valor acionista tem sido imensamente produtivo e bem sucedido ao longo dos últimos 50 anos. Consequentemente, as empresas devem continuar a maximizar o valor acionista enquanto se mantiverem dentro das regras do jogo. Qualquer outro objetivo incentiva a desordem, o desinvestimento, a interferência governamental e, em última análise, o declínio”.

Mas os críticos da doutrina de Friedman,  da ala dos economistas Keynesianos heterodoxos,  caem numa armadilha. A sua linha, tal como é defendido por Martin Wolf e Luigi Zingales, é que a doutrina de Friedman falha porque não existem mercados livres competitivos no capitalismo moderno.  As empresas tornaram-se tão grandes que se tornaram ‘price makers’, e não ‘price takers’.  Como diz Wolf, as grandes corporações não cumprem as regras e regulamentos para um ‘level playing field’ nos mercados: “as corporações não são “tomadores  de regras”, mas sim “fazedores de regras”. Os jogos que elas praticam  têm regras mas na  criação destas regras  são as grandes empresas que desempenharam  um grande papel,  através da política”.

A implicação desta crítica da doutrina Friedman é que se as corporações se mantivessem fiéis às “regras”, então o capitalismo funcionaria com benefício para todos.  Por outras palavras, não há nada de errado com as corporações privadas a produzirem com fins lucrativos e a explorarem os seus trabalhadores para o fazerem.  O problema é que elas se tornaram demasiado grandes para as suas botas.  Precisamos de as regular de modo a que, ao obterem os seus lucros, todas elas compitam de forma justa entre si e também tenham em conta as “externalidades”; ou seja, as consequências sociais das suas atividades.

Esta crítica pressupõe que o capitalismo competitivo é uma “coisa boa” e funciona.  Mas será que o capitalismo competitivo, se existisse ou fosse imposto por regras governamentais, produziria uma “sociedade justa e equitativa”?  Nos dias em que o ‘capitalismo competitivo’ supostamente existia, nomeadamente no início do século XIX, Friedrich Engels salientou que o comércio livre e a concorrência de modo algum proporcionavam um desenvolvimento equitativo e harmonioso da produção para benefício de todos.  Como Engels argumentou, enquanto os economistas clássicos oferecem concorrência e comércio livre contra os males do monopólio, não reconhecem o maior monopólio de todos: a posse de propriedade privada por alguns e a falta dela para os restantes. (Ver o meu livro, Engels 200).

O capitalismo competitivo não evitou o aumento das desigualdades, os danos ao ambiente, a exploração extrema dos seus trabalhadores e as crises regulares e recorrentes de investimento e produção. Isso foi precisamente porque o modo de produção capitalista é para se obterem  lucros (como diz Friedman) – e a partir daí, tudo o resto flui.

Sim, disse, Engels, “a concorrência  baseia-se no interesse próprio e este interesse  próprio alimenta os monopólios.  Em suma, a concorrência transforma-se em monopólio”.  Mas isso não significa que o monopólio seja o mal que deve ser banido e que um regresso aos mercados livres e à concorrência (dentro das regras estabelecidas) funcionaria. Esta é a armadilha em que alguns economistas de esquerda caem quando falam dos males do “capitalismo de monopólio estatal”. Não são os monopólios enquanto tais, ou a sua “captura” pelo  Estado, que estão no centro da argumentação contra a doutrina de Friedman.  É o capitalismo enquanto tal: a propriedade privada dos meios de produção com fins lucrativos. Esta é a crítica mais forte à justificação de Friedman sobre a empresa.

Em vez disso, pessoas como Martin Wolf ou Joseph Stiglitz só querem corrigir as “regras do jogo”.  Wolf quer o que ele chama um “bom jogo” onde “as empresas não promoveriam a ciência do lixo sobre o clima e o ambiente; é um jogo em que as empresas não matariam centenas de milhares de pessoas, promovendo o vício dos opiáceos; é um jogo em que as empresas não fariam lóbi a favor de sistemas fiscais que as deixassem esconder  vastas proporções dos seus lucros em paraísos fiscais; é um jogo  em que o sector financeiro não faria lóbi  pela capitalização inadequada que causa enormes crises; é um jogo  em que os direitos de autor não seriam alargados e ampliados; é um jogo  em que as empresas não procurariam esterilizar uma política de concorrência eficaz; é um jogo  em que as empresas não fariam lóbi  contra os esforços para limitar as consequências sociais adversas do trabalho precário; e assim por diante e assim por diante. ”  Para Wolf, a tarefa é “como criar boas regras do jogo sobre concorrência, trabalho, ambiente, tributação, etc.”.

Esta não é apenas uma análise errada do capitalismo moderno; é utópica ao  extremo.  Como se pode pôr fim a qualquer uma das desigualdades acima descritas por Wolf, preservando o capitalismo e a lógica do mundo empresarial?  Só temos de considerar a história interminável do forrobodó  bancário e a sua conivência com o mundo empresarial  para esconder os seus lucros dos governos nacionais.  De acordo com a Tax Justice Network, as empresas multinacionais transferiram mais de 700 mil milhões de dólares em lucros para paraísos fiscais em 2017 e esta transferência reduziu as receitas fiscais globais das empresas para os governos nacionais em cerca de 10%.

As empresas de combustíveis fósseis grandes emitentes de carbono transferiram milhares de milhões de lucros para vários paraísos fiscais. Em 2018 e 2019, a Shell ganhou mais de 2,7 mil milhões de dólares – cerca de 7% do seu rendimento total nesses anos – isentos de impostos, ao reportar lucros em empresas localizadas nas Bermudas e nas Bahamas que empregavam apenas 39 pessoas e geraram a maior parte das suas receitas de outras entidades da Shell. Se esta grande companhia petrolífera e de gás tivesse reservado os lucros através da sua sede na Holanda, poderia ter enfrentado uma fatura fiscal de cerca de 700 milhões de dólares, com base na taxa de imposto sobre o rendimento das empresas holandesas de 25%.

E depois há as FAANG, (Facebook, Amazon, Apple, Netflix, Google)  as grandes empresas  tecnológicas que acumularam lucros enormes durante a pandemia da COVID-19, enquanto muitas pequenas empresas são encostadas à parede, sem saída.   Dominam o software e a tecnologia de distribuição através de direitos de  propriedade intelectual e sugam qualquer concorrência.  Governos de todo o mundo estão agora a considerar como regular estes gigantes e colocá-los sob as “regras do jogo”. Fala-se em dividir estes “monopólios” em unidades competitivas mais pequenas.  Estou certo de que Friedman teria aprovado esta solução como parte da sua “doutrina”.

Mas será que resolveria realmente alguma coisa? Há mais de um século, os reguladores antitrust dos EUA ordenaram a rutura do Standard Oil. A empresa tinha-se tornado um império industrial que produzia mais de 90 por cento do petróleo refinado da América.  A empresa foi dividida em 34 empresas “mais pequenas”.  Elas ainda existem hoje em dia.  São chamadas Exxon Mobil, BP e Chevron.  Será que Wolf, Stiglitz e os opositores do “capitalismo monopolista” consideram realmente que a solução “Standard Oil” pôs fim às “irregularidades” das empresas petrolíferas, melhorou as suas “responsabilidades sociais” e as salvaguardas ambientais a nível mundial?  Será que eles pensam realmente que o ‘capitalismo de acionistas’ pode substituir a lógica empresarial  e ser a solução? A regulamentação e a restauração da concorrência não funcionarão porque tudo o que isso significa é que a doutrina de Friedman continua a funcionar.

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Leia este artigo no original clicando em:

The Friedman doctrine in the 21st century – Michael Roberts Blog (wordpress.com) 

O vírus da globalização

Posted: 11 Feb 2021 03:40 AM PST

 


«O vírus introduz-se num corpo, controla alguns órgãos e começa a desregular funções vitais. Ainda hoje não sabemos exatamente o que é nem, ao certo, de onde veio.

Certo é que chega depressa e a toda a parte. Não é bem uma metáfora. Seria difícil, aliás, encontrar expressão mais nítida e tangível para esse fenómeno contemporâneo que dá pelo nome de globalização. Há um ano, nenhum economista admitiria a possibilidade de uma tão longa e tão drástica limitação da atividade económica à escala planetária. Nenhum antropólogo, cientista social ou político ousaria prometer que restrições tão violentas de direitos e liberdades tão elementares como circular e conviver poderiam ser decretadas e cumpridas - até dentro de casa, derradeiro reduto da reserva de intimidade privada - sem que tremendas convulsões sociais explodissem por todo o lado. Mas é verdade. Fecharam-se fronteiras. Alterações súbitas e duradouras dos comportamentos habituais, rotinas, trabalho, condições de sobrevivência e práticas culturais enraizadas produziram-se até agora de modo relativamente pacífico.

Perante este cenário dramático de absoluta exceção, impôs-se a urgência de dispor de vacinas capazes de imunizar as populações do planeta antes que as mutações do vírus neutralizem ou enfraqueçam a sua eficácia. E em menos de um ano, chineses, russos, europeus e americanos, desmentindo os prognósticos dos mais céticos, inventaram-nas! Seria lógico, perante uma tragédia à escala universal, que a Organização Mundial de Saúde planeasse a coordenasse a campanha de vacinação, mas, em vez disso, estamos a presenciar logo aqui, no Ocidente rico e bem equipado, o espetáculo degradante de uma disputa sôfrega e impiedosa pelas vacinas, com vantagem para os mais ricos e chorudo benefício para os grandes laboratórios farmacêuticos.

Como é possível que de tantas restrições legitimamente impostas às liberdades comuns, tenha escapado incólume este direito peculiar: a propriedade intelectual! As patentes das vacinas registadas pelas grandes empresas farmacêuticas - que, como é sabido, contaram à cabeça com abundante financiamento público para acorrer à calamidade - permitem-lhes disponibilizar as vacinas consoante as suas expectativas de lucro, sem outro critério ou prioridades. Os dados pessoais dos eleitores britânicos foram mera oportunidade de negócio entre a Cambridge Analitica e os promotores do Brexit. O principal gestor da Amazon engordou com os lucros acrescentados à boleia dos confinamentos e do isolamento profilático e até vai mudar de ramo, diz-se, para se dedicar às viagens espaciais. E a Pfizer regateia e prospera, entretanto, à custa da nossa saúde. Enquanto as expectativas de crescimento económico caíram menos do que era esperado, continua a progredir o setor financeiro e os interesses ligados às tecnologias da comunicação. Eis o admirável mundo novo da desregulação global!»

Pedro Carlos Bacelar De Vasconcelos 

O governo não devia propor já uma "bazuca 2.0"?


Posted: 10 Feb 2021 03:47 AM PST

 


«As críticas ao governo que oiço com maior frequência focam-se nas questões do combate à covid-19: porque não preveniu a terceira vaga, porque deu "folga" ao pessoal no Natal, porque decretou tarde de mais o confinamento, porque insiste no estado de emergência, porque deixou os hospitais entrar em rotura, porque demorou muito a socorrer-se dos hospitais privados, porque os critérios de vacinação não são claros, porque não pune os que se vacinam antes de tempo, porque não planeou a tempo o processo de vacinação, porque não faz chegar as ajudas financeiras às empresas, porque os apoios às famílias e às pessoas são curtos, porque quer calar todas as críticas, porque limita as liberdades, porque...

Há, porém, uma crítica que não oiço e que, decorrente da pandemia e do novo período de confinamento e paragem de grande parte da atividade económica e do trabalho, me parece estar a escapar aos opositores parlamentares e aos desasados da política, que clamam por governos de salvação nacional na esperança de voltarem ao jogo: por que não está o governo português a lutar na União Europeia pela negociação de uma segunda "bazuca" financeira? Ou, se está, porque não fala disso?

Recordo que em março do ano passado, quando sucessivos Estados europeus tiveram de parar a atividade económica e o trabalho por causa do primeiro confinamento provocado pela chegada à Europa do novo coronavírus, todos os dirigentes da União e os líderes de boa parte dos Estados membros, incluindo o Presidente da República Portuguesa e o primeiro-ministro de Portugal, colocaram em cima da mesa a questão das ajudas financeiras de emergência para enfrentar a crise.

Essa pressão sobre a União Europeia, apesar de ter ocorrido bastante cedo, não foi suficiente para conseguir uma decisão lesta, quer porque o desenho de uma programação financeira dessas, fora da normalidade dos orçamentos comunitários, seria sempre complicada, quer porque vários países impuseram condições para aceitarem um acordo que fizeram arrastar o processo. Houve um pré-acordo em julho, mas o Parlamento Europeu só o aceitou, modificado, em novembro, depois de exigir várias melhorias.

No final, as luminárias da União Europeia ainda decidiram condicionar o acordo à aceitação, por parte da Polónia e da Hungria, de um compromisso de respeito pelo Estado de direito. Estes ameaçaram vetar a "bazuca" e os fervores democráticos europeus, depois de novo compasso de espera, lá foram arrefecidos num gélido acordo com aqueles países, que cairá no esquecimento, mas permitiu, já mesmo no final do ano, desbloquear 1,8 biliões de euros num pacote de recuperação económica, que virá aos poucos até 2027.

Na verdade, boa parte deste dinheiro corresponde ao orçamento "normal" da União Europeia e o reforço conseguido é de "apenas" 750 mil milhões. Para Portugal virão 30 mil milhões do orçamento "normal", e mais de 15 mil milhões de "reforço". É pouco: lembremos, para termos uma comparação, que o empréstimo a Portugal cedido pela troika após a crise de 2011 totalizou 76,4 mil milhões de euros.

Ainda há hipótese de pedir novos empréstimos, mas com a dívida pública que temos (ainda por cima a aumentar), isso parece ser um suicídio para as finanças públicas...

Um ano depois do início do processo de fabricação da "bazuca", estando o governo português no exercício na presidência europeia, e estando a generalidade da Europa a enfrentar novos períodos de paragem da economia, certamente com efeitos tão devastadores quanto foi a do ano passado, não se deveria - dada a dificuldade de tema e a previsível longa negociação que ele implicará - lançar desde já a discussão sobre uma "bazuca 2.0"? Não se deveria, até, aproveitar para colmatar falhas e insuficiências da primeira "bazuca"?

De que é que estão à espera? De, nos vários países da União Europeia, se multiplicarem nos próximos meses as manifestações de rua violentas e, nos próximos atos eleitorais, aumentarem os votos na extrema-direita?...»

 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

As escolas não têm de abrir para todos ao mesmo tempo

 

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 10/02/2021)

Daniel Oliveira

Antes da pandemia, a percentagem de alunos portugueses pobres com negativa a matemática era de 10 a 20 pontos percentuais mais alta do que os restantes. Nos alunos com mães sem formação superior, era 30. Com a pandemia, os alunos britânicos perderam dois meses de aprendizagem. Os mais desfavorecidos perderam sete. Em Portugal será melhor? As escolas têm autonomia para receber alunos sinalizados ou em perigo de abandono. Exijam meios e adiram. Não têm de abrir ao mesmo tempo para todos. Chama-se equidade.



Muitos têm de compatibilizar o teletrabalho com o ensino à distância, com apoios financeiros reduzidos e tendo de escolher entre ser mau profissional ou mau pai e mãe. Outros vivem dramas ainda maiores. E já nem falo do falhanço do Governo na aquisição de computadores. A coisa é estrutural. A mais de um quarto das crianças com menos de 12 anos entra-lhe água ou humidade em casa e 15% vivem em casas sobrelotadas. Para estes, as aulas online são uma fantasia. Uma em cada dez crianças estará a estudar sem que a família tenha capacidade para comprar refeições completas e saudáveis. 3% já sentiram fome e não comeram por não haver dinheiro. Nas famílias numerosas e nas monoparentais, tendencialmente mais pobres, os problemas duplicam. Dizer que se se der computador e internet a estas crianças se conseguiu alguma coisa pela sua aprendizagem é uma brincadeira de mau gosto.

Mas estes números nem são os mais relevantes para discutir a urgência de dar respostas diferenciadas para necessidades que são diferentes. Outros, menos chocantes, são ainda mais determinantes para a desigualdade no ensino.

Vários académicos da Nova School of Business and Economics (Susana Peralta, Mariana Esteves, Pedro Freitas e Bruno P. Carvalho) e um do Ambition Institute, do Reino Unido (Miguel Herdade), fizeram um rápido levantamento de dados estatísticos sobre a situação material e económica das famílias, que mostram as condições de vida das crianças em Portugal; de informação sobre a desigualdade de aproveitamento escolar antes da pandemia; e de estudos internacionais sobre o impacto desigual do ensino a distância em 2020. O objetivo deste documento, que serve de base a todo o meu artigo (hoje sou mensageiro), é o de sustentar a necessidade de aplicar a Resolução do Conselho de Ministros de julho do ano passado, onde se estabelecia prioridade no ensino presencial para jovens e crianças em risco sinalizados pelas CPCJ, benificiários da Ação Social Escolas (ASE) e alunos para os quais o regime não presencial se revele ineficaz, onde incluiria crianças com necessidades educativas especiais.

Para além das condições materiais e alimentares, as condições de aprendizagem são muito desiguais. Já o eram, antes da pandemia e com ensino presencial. Usando o acesso à ASE como indicador de baixo rendimento, conclui-se que a percentagem de alunos pobres com nota negativa a matemática era de 10 a 20 pontos percentuais mais alta do que nos restantes. E que a percentagem que conseguia a nota máxima era cerca de metade da dos restantes.

Sabe-se que um fator bastante relevante para os resultados dos alunos é a formação académica da mãe – porque ainda são elas que mais acompanham a aprendizagem dos filhos. Este indicador torna-se ainda mais determinante no ensino à distância, que exige muito mais apoio das famílias. Mesmo com o ensino presencial, a percentagem de alunos com negativa cujas mães não tinham formação superior era 30 pontos percentuais acima da dos restantes e a dos que obtinham nota máxima era inferior em 13 pontos percentuais. Diz o documento que, “tanto em Português como em Matemática, o diferencial de desempenho acentua-se à medida que os alunos progridem no sistema de ensino”. Ou seja, a desigualdade vai-se aprofundando. E assim continuará no resto da vida.

Isto era o nosso ponto de partida. Do nosso ponto de chegada não podemos saber em que ponto estamos do caminho, com a pouca tradição de recolha de dados que temos, também não. Mas um estudo britânico, citado no documento e que penso até já ter referido aqui, mostra-nos como é desigual o preço pago pelo primeiro confinamento.

Em 2019, antes da pandemia, o fosso educativo entre os alunos britânicos mais desfavorecidos e os restantes era de 9 meses no ensino primário e de 18 no ensino secundário. As estimativas apontam para um aumento desse fosso em 36% durante os primeiros meses da pandemia, o que fez o Reino Unido recuar dez anos nos progressos que tinha conseguido no combate à desigualdade nas escolas. Os alunos britânicos perderam dois meses de aprendizagem em comparação com os da mesma idade no ano anterior. Os mais desfavorecidos perderam sete. Um dado importante para nós: no Reino Unido, mais de um terço dos alunos frequentam escolas onde os professores não têm as aptidões técnicas e pedagógicas necessárias para o ensino à distância. Temos alguma razão para acreditar que em Portugal seja melhor?

Estima-se que a perda de um terço do ano letivo equivale a uma quebra de 1,5% no PIB acumulada até ao fim do século – chegaremos a 2100 com menos 2,6%. A OCDE estima que os jovens afetados terão uma perda salarial de 3% ao longo da vida. Como se percebe por todos os dados anteriores, estamos a falar de médias. Porque serão os que partem em piores circunstâncias que carregarão grande parte deste fardo.

Se não houver pressão, ficaremos todos à espera que as escolas abram para todos, com as circunstâncias mais próximas possíveis do ideal. Já foram dados passos para garantir um tratamento diferenciado. Uma comunicação feita pela Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares deu autonomia às escolas para prestarem apoio presencial a alunos em risco, para aqueles que considere ineficaz a aplicação do regime não presencial e em especial perigo de abandono escolar. É preciso que as escolas exijam meios para o fazer e adiram. Não têm de abrir ao mesmo tempo para todos. Chama-se equidade.

Pare, escute e olhe: uma pandemia pode esconder outra

Posted: 09 Feb 2021 03:43 AM PST

 


«Haverá sempre quem chame exagero à classificação de terrorismo em casa para designar parte do que acontece em casos de violência doméstica. Eu não. A galeria de horrores a que muitas mulheres são submetidas, muitas delas durante anos – e refiro-me a mulheres porque são as vítimas na esmagadora maioria dos casos, em Portugal como por esse mundo fora –, é qualquer coisa de inimaginável para muitos de nós que nem damos por isso, tão ocupados estamos com as questões que nos dizem respeito. E aqui está outro erro: se há algo que, mais do que tudo, nos diz respeito, é precisamente essa situação de desamparo, abandono, isolamento, marginalização, esquecimento e desprezo em que vive quem sofre as consequências da violência doméstica.

Se isso era assim quando a vida decorria sob a normal anormalidade, pensem bem como será agora. Como será passar dias, semanas, meses, não tarda um ano, em que as liberdades estão reféns de um inimigo tão invisível quanto devastador e em que até os livros, as livrarias, a cultura, a essência de todos, sofrem a tortura dos ignorantes que cortam a eito se fingem decidir por nós? Como será sofrer em silêncio, passar o tempo amordaçada, ameaçada, sob o peso esmagador da contradição que é querer gritar para tudo contar e mal se poder mover os lábios a expressar uma única ideia? Como será o come-e-cala, o insulto a toda a hora, a submissão para que os filhos não sofram, dormir sem dormir, a asfixia psicológica, a angústia, o medo, a repugnância, o asco, a coragem de resistir uma e muitas vezes? Tantas que, de repente, tudo se perde e dizem que foi por amor quando é de ódio, escrevem que foi a paixão quando é crueldade, mostram que foi irracional quando é metódico?

Por tudo isto, porque a pandemia em que vivemos pode, afinal, esconder outra pandemia, a da violência doméstica, é importante recuperar uma frase emblemática que nos avisava para o perigo de cruzar a linha do comboio: “pare, escute e olhe”. É em grande parte disso que se trata, de exigirmos mais a cada um de nós e aos legisladores. De sermos uma sociedade adulta e não entregue a vendedores de banha da cobra que abusam da palavra vergonha sem verem no espelho a vergonhosa imagem que este lhes devolve todos os dias. De não nos limitarmos à indiferença e ao comodismo de todos os dias, mas de mostrarmos que ninguém nos fica invisível. De acabar com um sistema em que as vítimas não conseguem ter atendimento e apoio imediato e, tantas vezes, são olhadas como suspeitas. Ou então com o inqualificável “tenho pena, mas nada posso fazer”. De pôr fim à impunidade nos (poucos) casos que chegam a tribunal e (muitos) são, antes disso, arquivados sem provas. Ou, então, terminam com a mentira da pena suspensa. De não resvalar para o extremismo do bota-abaixo simplista e populista do agravamento de penas, mas também de não escolher a reintegração como mero recurso mecânico e sim num quadro de escrupuloso respeito por programas que, de facto, regenerem os agressores e não os devolvam à sociedade sequiosos de vingança.

Não sou um especialista e, por isso, não escrevo nessa qualidade. Escrevo num esforço de cidadania como contributo para que a realidade mude de forma drástica; escrevo, porque me envergonha que homens como eu sejam capazes de actos atrozes contra mulheres, crianças e idosos, que muitas vezes só ficamos a conhecer demasiado tarde, quando as histórias já se transformaram em tragédias e são relatadas como tal pelos meios de comunicação; escrevo, porque, também como jornalista, considero meu dever agir para que a realidade mude.

Quando escrevi Murro no Estômago, livro que conta histórias de vítimas/sobreviventes de violência doméstica em discurso directo e experiências de profissionais que combatem todos os dias o flagelo em diferentes papéis, disse às mulheres que confiaram em mim e contaram as suas histórias de sobrevivência: “Este livro é vosso, eu sou apenas um porta-voz. Do vosso sofrimento, das vossas lágrimas, da vossa coragem, da vossa luta, da vossa vontade de vencer, da vossa esperança.”

Neste confinamento que tudo esconde, condena a ternura, mata o amor, nos aprisiona até os livros e ameaça desumanizar-nos, saibamos ser solidários e seguir a epígrafe do Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”»

Paulo Jorge Pereira