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terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

A economia da produção das vacinas e o exemplo das mobilizações industriais

 


por estatuadesal

(Por Jacques Sapir, in Resistir, 08/02/2

Face à virulência da pandemia, a vacinação contra a Covid-19 acelerar-se dia a dia no mundo. Mais de 98 milhões de pessoas já haviam recebido a sua primeira injecção em 1/Fevereiro/2021 e cerca de 9 milhões as duas injecções. Mas isto não é nada ao lado dos outros milhares de milhões que restam para vacinar. Com uma população mundial estimada de 8,4 mil milhões de indivíduos, o objectivo de vacinar 70% da população mundial implica que 5,9 mil milhões de pessoas deverão ser vacinadas.

O desafio industrial é imenso e a competição, tanto económica como geopolítica, anuncia-se feroz. Pois, além das vantagens económicas que esta vacina pode proporcionar, o prestígio política que os países de origem destas vacinas terão será imenso.

As vacinas, um êxito científico sem par

O êxito dos cientistas que conseguiram elaborar vacinas eficazes (de 70% a 95%) contra uma doença desconhecida em cerca de um ano deve ser sublinhado. Ele deve muito a trabalhos desenvolvidos desde há uma dezena de anos contra o vírus Ébola que regularmente devasta a África Ocidental. Este êxito está à altura da aposta. Para além das mortes e dos sofrimentos, é claro enquanto a Covid-19 não for dominada, a economia mundial não funcionará senão em marcha lenta.

Este êxito não foi possível senão por uma mobilização considerável de meios financeiros. Eles levaram ao domínio de várias tecnologias. As vacinas que hoje estão imediatamente disponíveis, e teremos pelo menos 13 vacinas que serão utilizadas no decorrer do ano 2021, recorrem a quatro grandes técnicas.

Se aquela, muito inovadora, do ARN mensageiro é utilizada por três deles, como Pfizer/BioNTech, Moderna e Curevac, a técnica mais tradicional do vírus inactivado é utilizada por três outros: duas vacinas chinesas que já são amplamente utilizadas neste país e uma vacina indiana ainda em desenvolvimento. As duas técnicas restantes, que englobam as vacinas produzidas por AstraZneca, Instituto Gamaleya, Johnson & Johnson e Sanofi, mas também por CanSinoBio e NovaVax, também são inovadoras, ainda que em menor media que a da ARN mensageiro.

Um dos pontos mais interessantes nesta corrida à vacina é a pluralidade dos modelos industriais. Grandes sociedades associaram-se a companhias mais pequenas, mas também mais inovadoras, como no caso da Pfizer e BioNTech, ou da MODERNA, ou ainda da AstraZeneca com a Universidade de Oxford.

No lado oposto encontram-se grandes companhias integradas, como a Johnson & Johnson, como a Sanofi, mas encontram-se também sociedades de Estado como o Instituto Gamaleya na Rússia ou as sociedades chinesas, também elas estatais. Verifica-se, mais uma vez, que não há "modelo único" para a investigação-desenvolvimento. Os diferentes modelos utilizados remetem a diferentes ambientes institucionais, mas também financeiros e industriais.

Estratégias de comercialização

Esta competição avalia-se também nas estratégias de comercialização. Os produtores de vacinas russos e chineses jogam deliberadamente a carta dos acordos de licenciamento com os países que têm capacidades de produção mas que estão mais atrasados (Índia, Singapura, Malásia, mas também Egipto e Argélia). Isto implica transferências de tecnologia mas garante também uma pluralidade de fontes de produção que, tendo em conta os volumes necessários, se verifica indispensável. Estas estratégias de cessão de licença são uma resposta ao carácter mundial da pandemia e uma resposta que é plenamente compatível com a soberania farmacêutica e sanitária dos países em causa.

Tabela 2- As estratégias russas e chinesas de cessão de licença

Inversamente, as grandes sociedades ocidentais, como a AstraZeneca ou a Pfizer, pretendem manter a exclusividade da produção, ainda que a Pfizer tenha recentemente concluído um acordo com a Sanofi, cuja vacina, muito atrasada, não estará disponível antes do fim de 2021. Será esta posição sustentável a prazo? Não parece.

A produção vai entrar em conflito com os limites das capacidades de produção destas sociedades e com os pedidos dos Estados. O problema coloca-se de maneira particularmente clara para a AstraZeneca cuja vacina, de utilização mais simples do que a BioNTech ou a Moderna, mas também mais barata, seria mais adaptada a campanhas de vacinação em massa nos países em vias de desenvolvimento.

A cessão de licença da vacina russa a sociedades indianas ou coreanas, da licença das vacinas chinesas a sociedades de Singapura, da Malásia, cujos custos de produção são sem dúvida inferiores aos da AstraZeneca, poderia ser um factor de perturbação das estratégias e verificar-se uma solução.

A OMS chama a atenção dos países desenvolvidos para este ponto, pois o fundo que ela estabeleceu para alimentar os países mais pobres está muito longe de poder por si só bastar para fornecer vacinas a preços aceitáveis aos países mais pobres. Há uma questão central, tanto moral como de eficácia.

De nada serviria que os países desenvolvidos tivessem a imunidade vacinal se subsistisse um enorme reservatório da doença nos países em desenvolvimento, reservatório que poderia recontaminar os países "vacinados" por estirpes mutantes.

A pandemia tem um carácter mundial. Se deve ser tratada por estratégias nacionais, o imperativo da erradicação do vírus, como foi o caso do vírus da varíola, é portanto um objectivo global. Isto implica estratégias de cooperação ou de coordenação entre os diferentes Estados. Estas estratégias implicam também que as soberanias dos Estados sejam respeitadas, o que dá um peso muito particular à cessão de licenças, tais como praticadas pelos produtores de vacinas russos e chineses.

A estratégia da União Europeia

Isto ocorre numa altura em que se está a desenvolver uma crise na UE, onde os três fabricantes, BioNTech-Pfizer, Moderna e AstraZeneca, anunciam atrasos e têm reduzido os ritmos de entrega. Esta crise é sintomática dos problemas que são agora particularmente agudos em vários países da UE.

A UE "apreendeu" a estratégia da encomenda das vacinas que normalmente deveria ser da responsabilidade dos Estados Membros. No entanto, dois países decidiram agir fora desta estratégia, a Polónia e a Hungria.

A UE esperava alcançar a imunidade vacinal até ao Verão de 2021, o que os atrasos doravante tornam muito pouco provável.

A estratégia escolhida pela UE deve ser comparada à dos Estados Unidos e também às do Reino Unido e de Israel. Estes três países posicionaram-se muito cedo sobre a questão das vacinas.

Os EUA e o Reino Unidos participaram maciçamente no esforço financeiro de desenvolvimento destas vacinas. Israel aceitou um sobre-preço relativo sobre as vacinas, mas também aceitou que os dados de saúde dos seus cidadãos sejam transferidos para a Pfizer, uma escolha contestável mas que sem dúvida compensou. Tanto na Rússia como na China são organismo de Estado ou sustentados pelo Estado que desde o princípio assumiram as despesas de desenvolvimento das vacinas e, na Rússia, elas são gratuitas.

A União Europeia, por sua vez, adoptou outra estratégia que consistiu em agrupar suas compras para poder puxar os preços para baixo. Isso certamente levou a que volumes importantes fossem encomendados a um custo total dominado.

Mas isto, combinado com o facto de que ela só se posicionou no mercado da vacina três meses após os outros países mencionados, também levou a que uma boa parte das entregas fosse dilatada para o Verão. O que é contraditório com o objectivo ostensivo de alcançar mais rapidamente uma "imunidade vacinal" implicando que uma boa parte da população, de 60% a 70%, pudesse ser vacinada. A velocidade da entrega deveria ter sido o critério principal.

Além disso, estes preços – calculados com a maior precisão possível – colocam problemas óbvios [1] .

As somas comprometidas pelos laboratórios – e fala-se de um empréstimo de 2 mil milhões de dólares da Pfizer – apesar da ajuda que receberam, são simplesmente colossais. Na ausência de informação oficial, e a UE não brilha na área da transparência para dizer o mínimo, somos forçados a confiar na fuga de informação proveniente do governo da região flamenga.

Alguns preços parecem curiosos e não muito coerentes com outras informações. A UE revelou por erro o contrato com a AstraZeneca [2] e vê-se que para os 300 milhões de doses o preço é de 870 milhões de euros, ou na realidade 2,9 euros por dose. De notar também que um estudo publicado pelo Instituto Gamaleya (em russo) apresenta uma estimativa que coloca a Pfizer a US$20-30, a AstraZeneca a US$2,5 (ou seja, 2,08 euros).

A opacidade, contrária a todos os princípios democráticos, parece reinar na questão do preço e é mais do que provável que este, em cada contrato, dependa também do volume de doses encomendado. Finalmente, o anúncio da Pfizer de que os frascos contendo 5 doses poderiam ser utilizados para 6 doses, e que a Pfizer ajustaria as suas entregas em consequência, levou de facto a aumentar em 20% o preço da dose. Se o preço inicial era de facto de 12€ por dose, isto o faria passar a 14,4€ ou US$17,4, ou seja, muito próximo do intervalo baixo indicado pelo Instituto Gamaleya.

As diferenças de preços podem reflectir as tecnologias utilizadas, os volumes e as capacidades de produção, mas também, naturalmente, o "poder de mercado" de cada comprador num mercado onde as considerações geopolíticas estão a tornar-se cada vez mais importantes.

Nada prova que a estratégia da UE tenha sido a melhor. A questão do "preço" de uma vacina deve ser relacionada à do custo da epidemia. Se se acreditar nos números fornecidos, a perda, para a zona Euro em 2020, seria de 1090 mil milhões de euros [3] . Ora, a União Europeia teria desembolsado, em Agosto de 2020, 12,7 mil milhões, ou seja, 1,1% do que a epidemia custou aos países da zona Euro. Esta soma, certamente importante para o orçamento da UE, é no entanto fraca.

Pode-se deduzir que se a ideia de realizar compras agrupadas tivesse algum sentido, ela não compensava a perda em rapidez e em flexibilidade deste procedimento. Tanto mais que, recorda-se, não é seguro que a UE disponha das cerca de 600 milhões de doses teoricamente necessárias para vacinar (com duas injecções) os 2/3 da sua população.

O anúncio feito pela chanceler Angela Merkel de se interessar pela vacina russa Sputnik-V revela, de facto, uma ruptura de estratégia. A única "boa" estratégia consistir em deixar margens de flexibilidade aberta na decisão tomada pela Comissão Europeia e deixar, em casos de atrasos nas entregas, cada país em condições de fazer as sua próprias compras.

A velocidade da vacinação no Reino Unido onde, na data de 2ª. feira 1º de Fevereiro, cerca de 15% da população já estava vacinada estabelece um contraste cruel com a estratégia da União Europeia

Que futuro para as cooperações industriais?

Serão as cooperações possíveis? Elas são em todos os casos desejáveis. Em Dezembro a AstraZeneca dava conta da sua vontade de cooperar com o Instituto Gamaleya. As duas vacinas revelam-se de facto muito próximas. Parece hoje que a Sputnik-V, a vacina da Gamaleya, é superior àquela da AstraZeneca [4] .

No princípio de Janeiro de 2021, a chanceler Angela Merkel propunha às autoridades russas a sua ajuda no seu pedido de certificação na UE em troca de um possível acordo de licença respeitante a 100 milhões de doses. No fim de Janeiro ficava-se a saber que a Sanofi iria cooperar com a Pfizer, até que a sua própria vacina seja homologada. Diante das necessidades imensas e da situação de penúria, alianças são inevitáveis. Mas como organizar esta cooperação?

Nas circunstâncias actuais abrem-se três possibilidades:

Pode-se pensar em cooperações entre grupos farmacêuticos. Já temos cooperação entre a Sanofi e a Pfizer e a AstraZeneca com o Instituto Gamaleya. Estas cooperações industriais vão multiplicar-se. Pode-se imaginar que, por trás do interesse demonstrado por Angela Merkel na vacina russa Sputnik-V, oculta-se também o desejo de ver o grande grupo farmacêutico Bayer entrar na competição com um argumento que não a vacina Curevac, que parece estar muito atrasada. Serão elas suficientes face à urgência da situação? Pode-se duvidar disso.

Depois há o princípio das "licenças abertas", que é diferente do das "licenças livres", defendido por Jean-Luc Mélenchon e que levaria, de facto, à espoliação dos produtores de vacinas. Esta espoliação seria perigosa para o futuro pois novas pandemias, que requerem novas vacinas, são possíveis. Numa "licença aberta", um ou mais Estados compram a licença para uma vacina e disponibilizam-na àqueles que têm os meios para a produzir. Isto já foi feito e não é de forma alguma contraditório com as regras da Organização Mundial do Comércio. No entanto, é preciso reconhecer que isto leva tempo, vários anos para os medicamentos contra a SIDA.

Finalmente, é necessário olhar a experiência industrial da 2ª Guerra Mundial, particularmente nos Estados Unidos, onde foi posto em prática uma verdadeira planificação em economia de mercado [5] . Nos Estados Unidos, onde a indústria era altamente concorrencial, um organismo de planificação identificou as capacidades de produção não utilizadas num determinado momento e encorajava um fabricante de aviões, ou um estaleiro naval, a transferir uma parte da sua produção. Boeings foram assim construídos pela Lockheed, Lockheed pela Curtiss ou Republic [6] .

O objectivo era assegurar que as capacidades de produção estivessem sempre tão próxima quanto possível de uma utilização a 100%. Normalmente, seria tarefa do Comissariado do Plano organizar isto, se este último não fosse uma enorme operação de comunicação. Da mesma forma, o Comissariado do Plano teria a tarefa de seleccionar os possíveis empreiteiros para acelerar o processo.

Se se considera que 6 mil milhões de pessoas deveriam ser vacinadas daqui até o fim do ano de 2021, o que exigiria, no caso das vacinas com dupla dose, não menos de 12 mil milhões de doses, pode-se medir a imensidão do esforço a cumprir. Este esforço implicará formas de cooperação industrial que respeitem a soberania das nações, que não podem passar senão por acordos de licença sistemáticos. Estes últimos estão a ser postos em prática, mas continuam a ser muito limitados. É tempo de nos inspirarmos nos exemplos de mobilização industrial tal como foram realizados durante os grandes conflitos mundiais do século XX.

Notas
[1] gulfnews.com/...
[2] www.lalibre.be/...
[3] www.challenges.fr/...
[4] www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)00191-4/fulltext
[5] Smith, R. Elberton, The Army and Economic Moblization, Washington DC, Center of Military History, 1985.
[6] Idem, pp. 55-61

Ver também: ·  Vacinas: Como farmacêuticas bloqueiam acesso global

A crise é bem mais que pandémica


Posted: 13 Feb 2021 03:55 AM PST



 

«Em Portugal, como no conjunto dos países da União Europeia (UE), a pandemia trouxe agravamento de problemas às sociedades, mas as crises de que hoje tanto se fala têm origens bem anteriores e mais profundas.

A necessidade de medidas excecionais evidenciou a insustentabilidade do modelo económico e financeiro dominante; a irracionalidade das cadeias de valor em que a economia tem assentado; a violência da precariedade laboral e do desrespeito pelo trabalho digno; o impacto negativo das políticas neoliberais sobre o papel dos estados e sobre valores do bem comum e da comunidade; as fragilidades da democracia; a necessidade de uma atitude nova perante a globalização, fortalecendo as sociedades na sua organização regional, a nível dos estados e dos territórios. O drama é que se teima em não mudar muito o desastroso rumo que vinha de trás.

A União Europeia não se reforça como poder regional. Não é um polo com "autonomia estratégica" e pode caminhar para uma rutura profunda, com uma parte a encostar-se ao polo geopolítico que se afirma a Leste e, a outra, mais integrada no polo "Atlântico". Entretanto, no fundamental, a UE está a responder à crise prosseguindo políticas assentes na insultuosa dicotomia "frugais"/"não frugais", deixando países como Portugal numa situação delicada. Num contexto mundial em que se acentua a quebra das trocas comerciais, dos fluxos financeiros e dos movimentos do Investimento Direto Estrangeiro, os desafios tornam-se pesadíssimos. Acresce, para nosso mal, que a cultura dominante das maiores forças políticas nacionais há muito se entregou a um sebastianismo provinciano face ao exterior e, em particular, à UE.

O nosso país necessita de um Governo mais capaz em várias áreas e com muito mais fôlego. Oxalá o primeiro-ministro tenha vontade e determinação para tratar da tarefa logo que a pandemia esteja controlada. Contudo, esse fôlego jamais será conquistado se a direita do Partido Socialista for, como está a ser cada vez mais, a representante da Direita. Deixem à Direita a tarefa de tratar dela própria e de definir se se distancia ou não das forças antidemocráticas e fascistas. Se Rui Rio é uma confirmação do Princípio de Peter, compete ao PSD resolver o problema. Se quer o PSD quer o CDS não têm respostas (e não têm) para os problemas que o país enfrenta, espicacem-se e responsabilizem-se, mas só isso.

No plano noticioso e do comentário político a crise é profunda. Dominam os cenários apocalíticos, a ausência de reflexão, o registo individualista e o corta-cabeças. E não faltam notícias falsas ou manipuladoras. Esta semana disse-se que o salário médio dos portugueses subiu durante a pandemia. Puro engano. A ilusão resulta do facto de muitos milhares de trabalhadores precários e outros com baixos salários terem ido para o desemprego, deixando de contar para o cálculo da média.

Na economia e no trabalho os problemas a resolver são grandes. Os apoios às empresas não serão eternos, não existem sinais de mudança qualitativa na matriz de desenvolvimento e o desarmar do lay-off poderá colocar muitos trabalhadores na rampa do desemprego.

Há que desmontar as panaceias do determinismo tecnológico e da "deslaboralização" das sociedades e impedir a regulação unilateral do trabalho, para se defender emprego e termos sistemas de segurança social que garantam vidas dignas.»

 

Amantes na madrugada

por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso, 11/02/2021)


É muito raro sermos procurados por colegas. Como se sabe, em todo o mundo, os médicos fogem dos médicos. Com a idade, somos mais vezes procurados por colegas. É aquela ideia, nem sempre verdadeira, de que os mais velhos sabem mais. Na minha especialidade fiz supervisão a muitos. Por vezes, o profissional mistura-se com o pessoal, quando se discute a atitude e os sentimentos face a um doente, mas nunca é um pedido de ajuda em relação à sua vida. Desta vez foi um pedido formal de consulta. Conhecia-o vagamente, nunca trabalháramos juntos, nada me impedia de falar com ele.

“Venho cá com um dilema ético. Sei que não nos compete a nós aconselhar os doentes sobre escolhas morais, mas o que me aconteceu deixou-me muito incomodado”, disse. Fiquei em silêncio.

“Sou um grande madrugador, preciso de sair cedo, ter a rua só para mim. Às seis já ando lá fora, faço uns quilómetros de marcha, tomo um café e volto para casa, arranjo-me e vou trabalhar. Nunca os tinha encontrado, mas naquele dia estacionei o carro num sítio diferente. Reparei que estava um carro parado, com as luzes acesas, e alguém lá dentro. Comecei a fazer os meus exercícios de aquecimento e não liguei. Quando ia começar a marcha chegou outro carro, que parou atrás. Quando os dois saíram dos respetivos veículos, o abraço foi efusivo, direi mesmo muito efusivo. Era claro que não eram amigos, não eram um casal, só podiam ser namorados. Na sua experiência de terapia de casal, alguma vez lhe passou pela consulta alguém que usasse a desculpa do exercício físico para ‘saltar a cerca’?”

Não respondi. Mas perguntei: “Porque é que isso o tocou tanto, ao ponto de vir falar comigo?”

Ele respondeu: “Era noite, estava distante, não lhes vi bem a cara e segui com a minha caminhada. Confesso que nunca mais pensei neles. Pus os auscultadores e comecei a ouvir um Requiem de Mozart, o que me põe sempre muito bem-disposto de manhã. Até nem fiz o percurso habitual, antes tivesse feito, não estava agora aqui a chateá-lo. Meti-me pelo meio das ruas do casco antigo da vila. Ao virar de uma esquina, já com o sol a raiar, dou de caras com eles. Veja bem, a correrem de mão dada...”

Aqui fez uma paragem no discurso e emocionou-se. Respeitei o silêncio.

“Até tenho vergonha alheia ao contar-lhe isto. A senhora era a minha cunhada. Quando me viu, tirou imediatamente a mão do gajo e ficou de todas as cores. Parou, falou-me e apresentou-me o seu ‘treinador pessoal’, um colega de trabalho. A mulher do meu irmão, apanhada nas curvas, por mim. Está a ver o sarilho em que estou metido. Não contei a ninguém. Mas ela telefonou-me. Com as tretas do costume, a contar-me uma história, como se eu fosse o marido dela. E a pedir-me para não falar com o meu irmão. Que ia resolver a coisa, que nunca tinha acontecido nada, além de uns beijinhos. Sabe como é, não pense que eu sou machista, mas as mulheres tentam sempre dizer que estas coisas são quase platónicas.”

Não fiz comentários, mas fiz uma pergunta da qual pensava já saber a resposta, presunção minha. “Qual é o seu dilema?”, perguntei.

“Ainda não lhe contei tudo. Falta a parte mais difícil. Fomos namorados em miúdos, depois nunca mais nos vimos. Por acaso, ela encontrou o meu irmão e acabou por casar-se com ele. Eu sei, nós sabemos que não devíamos, mas olhe, de vez em quando...”

Por momentos, tive de me controlar, não me competia dar-lhe lições de moral familiar. Apeteceu-me perguntar se tinha um dilema ou um trilema? Parecia ter adivinhado o meu pensamento.

“Isto pode parecer-lhe ridículo, mas, além de a questão ser por si já muito complexa, tenho outra preocupação. Sei lá quem é o tipo e se está infetado?”

Respondi-lhe: “Meu caro, isso é um triplo problema. Ético, de ciumeira e sanitário. Começamos por qual?” 

O mercado é incompetente para vacinar o mundo

 

Vale mais do que algumas explicações

Posted: 12 Feb 2021 06:29 AM PST

 

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O mercado é incompetente para vacinar o mundo

Posted: 12 Feb 2021 03:37 AM PST

 


«Que o mercado funciona, não haja disso dúvidas. O problema é como funciona e se resolve o problema da produção e distribuição de bens essenciais. A experiência das vacinas está a provar que não é o caso. Por isso, logo dois meses depois do festejo do sucesso que foi a conceção de vacinas em tempo fulgurante, os alertas sobem de tom: segundo a UNICEF, a este ritmo de produção o mundo só estará vacinado dentro de sete anos. Se assim for, não haverá imunidade de grupo e o tempo permitirá novas mutações perigosas do vírus.

Não há pressa

Os planos de produção das vacinas aprovadas nos EUA e na União Europeia (UE), as da Pfizer, AstraZeneca e Moderna, só protegerão em 2021 um terço do mundo. Outras vacinas, como a russa e as chinesas, também ainda não asseguram a vacinação sequer dos seus próprios países. Entretanto, as três maiores empresas no ramo, que não conseguiram sintetizar uma vacina, planeiam produzir 225 milhões de doses: a GSK fez um contrato com a Curevac para 100 milhões, a Merck desistiu de fabricar as suas vacinas e a Sanofi fará 125 milhões de doses da AstraZeneca, o que, no total, vale para 1,5% da população mundial.

Este bloqueio à produção tem uma origem clara. Em primeiro lugar, as empresas detentoras das patentes (por 20 anos) não querem envolver outras. A dinamarquesa Bavarian Nordic ofereceu-se para produzir 240 milhões de doses, sem resposta. Na Índia, onde estão as filiais com maior capacidade, há uma única empresa a produzir. As três empresas querem maximizar os seus lucros com a patente e com a produção, depois de terem recebido 88,3 mil milhões de dólares de fundos públicos dos EUA e UE. O resultado é que só 43% da capacidade produtiva mundial estão a ser usados.

Os que ficam de fora

Das 108 milhões de pessoas já vacinadas, só 4% são de países em desenvolvimento, quase todas da Índia. Dos países mais pobres do planeta, só a República da Guiné encomendou vacinas, 55 doses. Em qualquer caso, o mercado funciona, considerando a falta de recursos dos países do Sul: o plano de vendas da Pfizer é dirigido em 80% para os países desenvolvidos, que só representam 14% da população mundial. O mercado só reconhece quem tem dinheiro.

É certo que a pandemia ainda não parece ter atingido da mesma forma o Sul. A África Subsaariana, com 15% da população mundial, só identificou 3% dos casos. Mas sofre outro choque: a sua economia teve no ano passado uma queda como não acontecia há 25 anos, com mais 32 milhões de pessoas em pobreza extrema. E, como quase todas as 253 milhões de crianças deixaram de ter aulas desde há seis meses, os efeitos vão ser prolongados (se imagina aulas online, lembre-se de que metade da população do continente não tem eletricidade nem computador). Este mundo ficou de fora e a Covax, a aliança da OMS para as vacinas, admite que, no melhor dos casos, haverá um quinto desta população vacinada em 2021.

Guerras de alecrim manjerona

Um ano depois de declarada a pandemia, apesar do sucesso científico sem precedentes, chegamos à realidade do mercado. E a guerra é feia de se ver: a Comissão Europeia, em desespero pela redução das entregas no trimestre pela Pfizer (menos um terço) e AstraZeneca (menos 80 milhões de doses), anunciou, a 29 de janeiro, o controlo de exportações. Juncker não perdeu a oportunidade para criticar a sua sucessora, que em março tinha feito um brilharete no Parlamento Europeu contra medidas protecionistas. Em todo o caso, o controlo não era bem para levar a sério, foi somente um estratagema para justificar contratos desastrados que permitiram aos fornecedores fazerem o que quisessem. Como escreveu Teresa de Sousa, insuspeita de reservas antieuropeís¬tas, “a presidente da Comissão, que fez da vacina a sua imagem de marca e que tinha trabalho para apresentar, delapidou desnecessariamente o crédito acumulado ao não reconhecer os erros e ao responder às críticas com ataques a terceiros em todas as direções”.

Ursula van der Leyen, que no tempo dos discursos tinha sido incensada pelos seus discursos e como a mulher que salvaria a Europa, é agora abandonada pelos que descobrem que afinal, como aconteceu com todos os recentes presidentes da Comissão, foi colocada nesse lugar para seguir a luz de Merkel e de Macron, e não para lhes fazer sombra. O resultado é que a vacinação europeia é menor do que a do Reino Unido ou dos EUA e, como lembra o “Economist”, a função de dirigir a operação de distribuição das vacinas foi entregue a um departamento cuja função era superintender a etiquetagem alimentar.

Navegando entre subsídios e facilidades, as três farmacêuticas já anunciaram aos seus acionistas que esperam ter 30 mil milhões de dólares de lucro em 2021. Sim, o mercado funciona mesmo, só que não é para garantir a vacinação universal.»

A ciência em vez da política

 

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 12/02/2021)

António Guerreiro

Como temos visto, os modelos matemáticos para prever a progressão futura da pandemia são belos instrumentos que falham tantas vezes com estrépito porque ainda existe o incalculável e não é possível evitar a sua emergência. É o incalculável que faz com que a estatística não se tenha tornado completamente a arte de governar. A favor do cálculo e do calculável, há hoje números para tudo e são eles que guiam os actos administrativos da governação. Neste tempo de ruína da política, o que fica fora da racionalidade numérica é da ordem do ingovernável. Freud colocou o governar entre as três “profissões” impossíveis. As outras duas eram o educar e o psicanalisar. Todas elas são artes cibernéticas, no sentido em que podem ser definidas através da metáfora da pilotagem de um navio. A “ciência” a que Norbert Wiener chamou “cibernética”, refere-se ao pilotar, ao dirigir.

Boas razões têm levado o poder político a submeter-se ao parecer de comités científicos nas decisões sobre matérias que exigem o saber dos “especialistas”. Mas isso também tem alguns efeitos nefastos, um dos quais é o modo como se tem acentuado bastante uma visão distorcida da ciência, quando nela se investem crenças colectivas na sua capacidades salvífica. Uma leitura necessária nas circunstâncias actuais são duas conferências que Max Weber pronunciou em Munique, em 1917 e 1919: “A Ciência como Vocação” e “A Política como Vocação” (estão ambas publicadas pela Relógio D’Água, com o título: A Ciência e a Política como Ofício e Vocação). Na primeira conferência, Weber defendeu que “as ideias de liberdade e felicidade são estranhas à ciência como vocação” (ou profissão, já que a palavra alemã Beruf tem os dois significados). E rejeitou a tecnocracia como uma opção desejável, argumentando que ela, podendo embora ter a eficácia como característica, não tem a capacidade de exprimir aquilo que se espera do agir político: que toque o fundo não racionalizável da vida. Como noutros domínios, estamos hoje confrontados, no espaço público, com dois extremos: por um lado, temos a emergência das posições obscurantistas, negacionistas e anti-científicas; no pólo oposto, temos a ciência a colonizar a política e a contribuir para que esta seja vista como um problema. Um governo da ciência, dominado por “especialistas” que de certo modo passam a substituir os cidadãos, é já visto como uma alternativa desejável. Entre a ciência e a política, há uma lua-de-mel a festejar publicamente. É, aliás, como “cientista” (de uma incerta “ciência” que se chama Economia) que Mario Draghi acaba de ser chamado para governar a Itália. É o resultado do “casino” político italiano.

Transferida para o domínio da governação, a ciência é uma forma de despotismo que obrigaria a renunciar a direitos civis. Grande parte do nosso comportamento quotidiano não é guiada pelo saber e as prescrições da comunidade científica. Teríamos uma vida infeliz se assim fosse, por mais que respeitemos, admiremos e vejamos a ciência como o principal factor de cultura e civilização. O prolongamento da situação actual de pandemia, tal como ela é gerida, comporta enormes riscos políticos, como já todos percebemos. Um deles é que a democracia se transforme em “democratura”, para usar um neologismo que começa a impor-se e a seguir o seu curso.

Olhando aquém e além da situação excepcional em que vivemos, isto é, analisando uma disposição que não nasceu com a pandemia, é notável que os cidadãos se mostram favoráveis à substituição da política pela ciência. E isso acontece por causa da política fraca em que caímos (e, por todo o lado, os recentes arautos e protagonistas de uma política forte, quando falam de política estão antes a falar de polícia) e da falta de um poder e de um debate políticos que tratem os cidadãos como adultos. O discurso dirigido aos cidadãos durante a epidemia inclinou-se para uma moralidade e infantilidade insuportáveis porque essa é a regra já antes instaurada. Nada exemplifica melhor esse discurso do que os discursos das instituições estatais que zelam pela nossa segurança e bem-estar, como é o caso da Protecção Civil: “Hoje vai chover, proteja-se”, “Não se exponha ao sol porque vão estar mais de 30 graus”, “Agasalhe-se e tome as devidas precauções porque a temperatura vai descer muito”. Amplificadas pelos media, as prescrições, proibições e conselhos que pretendem instalar-nos num mundo seguro criam um ambiente de parque infantil.