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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Uma história oficial da democracia portuguesa?

 

por estatuadesal

(Manuel Loff, in Público, 16/02/2021)

Manuel Loff

Nas páginas deste jornal, João Miguel Tavares (J.M.T.) lamentou que “a maior parte dos portugueses não faça a menor ideia de quem foi Marcelino da Mata” que morreu há dias, aos 80 anos. Afinal, ele era, diz J.M.T., o “militar mais condecorado do Exército português”, por feitos cometidos durante a Guerra Colonial (e só) que Vasco Lourenço, que o conheceu bem, assegura terem sido “crimes de guerra” (PÚBLICO, 19.7.2018). J.M.T. limita-se a dizer que “é muito possível que tais crimes tenham acontecido. Não sei com exatidão quais foram, mas em bom rigor também não tenho forma de saber”. É natural: como nunca foi julgado nenhum dos responsáveis pelos massacres de Batepá (1953), Pidjiguiti (1959), Mueda (1960), Luanda (1961) e Norte de Angola (os contramassacres de 1961), Wiryamu e mais quatro aldeias (1972), só para citar os mais conhecidos, seria surpreendente conhecer em detalhe, pelo contrário, o que fez Marcelino da Mata. O que a J.M.T. interessa dizer é que “o seu perfil é triplamente incómodo para aquilo que se impôs como a narrativa oficial do Estado Novo, da guerra colonial, da descolonização ou das conquistas de Abril” por ter sido “um negro que lutou ao lado dos portugueses na guerra colonial; um herói do Estado Novo; um militar barbaramente espancado por militares de extrema-esquerda ligados ao MRPP, em Lisboa, já em plena democracia. É um triplo desconforto, triplamente silenciado.”

Há de tudo neste arrazoado. Nem vou perder tempo com o último argumento; linhas abaixo, os “militares de extrema-esquerda” passaram a ser a “revolução” como um todo ("uma revolução libertadora tortura[va] tão barbaramente quanto uma ditadura"), que é como quem diz que qualquer espancamento que ocorra hoje em Portugal é responsabilidade da democracia. O que é inaceitável é esta insinuação manipuladora que uma pretensa narrativa oficial da democracia silencia a guerra e o colonialismo! Como se fosse incómodo saber que “um guineense preferi[u] Portugal ao PAIGC”, que colonizados lutaram do lado do colonizador contra quem lutava contra o colonialismo. Onde está a novidade? Não foi o goês Casimiro Monteiro um dos assassinos de Humberto Delgado em 1965? Também ele “preferiu Portugal” à democracia.

Se a preocupação de J.M.T. é o reconhecimento do valor dos combatentes africanos na tropa colonial portuguesa, que lugar acha ele que devem ter na memória da democracia os Flechas organizados pela PIDE, sob a direção do inspetor Óscar Cardoso? Falemos das operações em que se envolveram! Em 1992, quando Cavaco, por proposta do Supremo Tribunal Militar, louvou Cardoso por “por serviços excecionais e relevantes”, Francisco Sousa Tavares descreveu-o como “um insulto feito a Portugal e a cada um de nós. E eu devolvo-o [a] essa trupe de generais e de almirantes” (DN, 14.11.1992). Falemos de história oficial, a escrita por Cavaco! Já lançado, porque não propõe J.M.T. à França, à Holanda, à Bélgica, à Rússia, à Polónia, à Ucrânia, à Croácia, à Lituânia que homenageiem (nestes três últimos casos, é verdade, já o fazem...) os voluntários (salvo os que foram à força) das Waffen-SS e da Wehrmacht que, durante a II Guerra Mundial, lutaram ao lado dos nazis contra os seus próprios compatriotas, muitos deles envolvidos nas operações de extermínio de judeus, ciganos, comunistas, resistentes?

Não faço ideia quanto a J.M.T. lhe toca sinceramente o caso de Marcelino da Mata. Percebe-se é que as vítimas dele nada lhe dizem. Na realidade, há um só objetivo em tudo isto: insinuar que a democracia portuguesa inventou uma história e a tornou oficial. O homem que Marcelo nomeou para o oficialíssimo cargo de presidir às cerimónias do Dia de Portugal (2019), um dos opinadores profissionais que mais espaço tem para se ouvir a si próprio, há muito que faz este número do outsider incómodo, debitando a mesma cartilha bolsonarista da ditadura cultural da esquerda que silencia a verdadeira memória do passado.

Também aqui, novidade zero: é o que desde 1945 fazem as direitas extremas ao falarem de uma história dos vencedores da II Guerra Mundial, como se em Nuremberga os Aliados tivessem inventado os crimes contra a Humanidade praticados pelos nazis, como se Auschwitz fosse uma invenção dos sobreviventes dos campos, como se o fascismo fosse uma invenção dos antifascistas e os anticolonialistas tivessem inventado o colonialismo. Já não há pachorra!

O que é isso de “Governo de salvação nacional?”

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 15/02/2021)

A direita democrática anda em polvorosa, lacerada por quezílias tribais no seio dos seus partidos, sem lideranças que parem a hemorragia que engrossa as fileiras da extrema-direita, esgoto da ditadura, onde agora desaguam marginais, oportunistas e delinquentes.

A culpa da integração do partido fascista no sistema democrático foi do PSD, na pressa e ambição do líder açoriano, sem esperar que se rendesse sem nada receber em troca.

Rui Rio, sem autoridade e visão política, delapidou aí o prestígio granjeado na vitória sobre a tralha cavaquista de Passos Coelho, e agravou o desnorte no patético discurso da eleição presidencial, a rejubilar por o partido fascista retirar votos ao PCP, no Alentejo, sem se dar conta de que era o seu próprio partido a sofrer a maior hemorragia.

O CDS, condenado a ser satélite do PSD, está em vias de se transformar num meteorito, a desaparecer na atmosfera das próximas eleições legislativas.

É nesta situação de desânimo e rancor que a direita ataca a credibilidade de tudo o que o Governa faz, indiferente à pandemia, sem avaliar as consequências da maior tragédia que atingiu a Humanidade. Espera, na insidiosa campanha, destruir um Governo para o qual não tem alternativa, e impede consensos para a luta eficaz contra a pandemia.

O ambiente malsão levou os corifeus da direita democrática a pôr em causa tudo e o seu contrário, a condenarem as concessões natalícias, que tinham defendido com ameaças e insinuações de que Costa queria roubar o Natal, para agora ficarem mudos quando estão em causa o Carnaval e a Páscoa.

Mas a mais tola das ideias, “um governo de salvação nacional”, havia de surgir de dois figurões que cursaram Direito na vigência da Constituição de 1933. É evidente que tão grande despautério havia de ser aproveitado pelos média, redes sociais e comentadores que fazem pela vida a comentar não assuntos.

O PR, com bom senso, afirmou que “Temos de continuar a apoiar os que sofrem (…), tudo sem crise política, sem cenários de governo de unidade ou de salvação nacional”. Disse tudo, e a ideia de que a inanidade de Santana e Jardim era possível ficou ainda a pairar em quem não reflete, ou não sabe, que não há governos de iniciativa presidencial.

Dizer “sem cenários de governo de unidade ou de salvação nacional” é tão irrelevante como dizer “sem cenários de nomeação de juízes para o Supremo Tribunal de Justiça”.

António Barreto, um liberal provinciano, trânsfuga de todos os partidos e frequentador assíduo dos painéis de comentadores, com coluna semanal no Público, onde zurze tudo o que está à esquerda do PSD e à direita do CDS e IL, afirmou aí, na sua última homilia, que “Dado o afastamento dos governos de iniciativa presidencial e de unidade nacional, as hipóteses são conhecidas: esquerda contra direita? Bloco central?” Pois…, óbvio.

Parece ficar a dúvida de que era possível e de que a direita melhoraria a governação se entrasse no governo, insinuando que este não presta. Mas a direita faria melhor?

Só me surpreende que sejam pagas tão tolas insinuações, só para darem tempo a Passos Coelho para regressar de Alcácer Quibir, com ou sem nevoeiro, em qualquer manhã 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Abrir caminho

Posted: 15 Feb 2021 04:00 AM PST

 


«Reconheço ao artigo que Fátima Bonifácio (FB) publicou a 11/2 neste jornal a virtude da clareza. A autora responde à questão de saber que tipo de relação deve a direita conservadora (a que chama “clássica”) estabelecer com a extrema direita xenófoba e racista, em quatro andamentos (ainda que não necessariamente pela ordem que se segue).

Primeiro andamento.

“As democracias, e Portugal em particular, enfrentam hoje em dia problemas que […] parecem insolúveis.” Portugal precisa “de uma barrela de alto a baixo”, mas a verdade é que “grande parte da Europa se tornou ingovernável”, face à irrequietude dos povos tornados “cada vez mais difíceis de contentar”. Ou seja, a democracia como sistema político tornou-se incapaz de superar a sua própria crise e agoniza na estagnação e na impotência.

Segundo andamento.

No centro das dificuldades está a ineficácia das eleições para assegurar uma resposta “liberal e democrática, mas forte” à magnitude dos problemas. Como combinar, interroga-se FB, “reformismo e popularidade e ganhar eleições”, quando raramente na Europa se engendraram soluções de popularidade com governança “forte”? Ou seja, para falar claro, a violência e a extensão das “reformas” exigidas (que prudentemente a autora se dispensa de apresentar) são incompatíveis com eleições livres e democráticas.

Terceiro andamento.

No caso das eleições portuguesas a coisa ainda é pior. Socorrendo-se de um texto do seu correligionário Rui Ramos sobre as eleições presidenciais, FB entende que o país só vota maioritariamente à esquerda porque está acorrentado ao Estado clientelar criado pelo PS. Segundo decreta Ramos, e FB confirma, “o Estado é de esquerda mas o país não é”. Ao contrário do que os resultados eleitorais enganadoramente indicam, explica-nos a autora, o país não vota maioritariamente à esquerda, é sim “colonizado pela esquerda”. Trump não diria melhor.

Ou seja, em Portugal as eleições teriam deixado de ser uma forma de legitimar o poder político. Elas não exprimem a vontade real dos eleitores, que só Ramos e FB sabem qual é. Retomando os velhos tropos do ultramontanismo reacionário dos anos 20 e 30 do século passado, esta nova direita conservadora atribui-se a si mesma, por força de uma misteriosa ordem natural das coisas (“manda quem pode”), o dom de saber o que realmente quer o povo, qual o verdadeiro sentido do “interesse da nação” e até o dever de impor ao país, mesmo contra ele próprio, os duros remédios da “salvação nacional” e das “barrelas”. A partir daqui vale tudo.

Quarto andamento.

E vale mesmo. FB constata que, na vigência da democracia, “a direita não se conseguiu impor (na realidade é disso que se trata) com boas maneiras e falinhas mansas”. É portanto o tempo da brutalização da política, a hora das “maneiras” do Chega, de a extrema direita xenófoba e racista agir como “pelotão da frente” para “abrir caminho” a uma “direita clássica” que, candidamente, a autora classifica como “democrática e – sobretudo – liberal”. Fica-se na dúvida se esta linguagem quase militar é ou não retórica… Não fosse o vulgo não reparar, FB insiste no facto do Chega ser o único partido, da direita à esquerda, que tem algo de novo para oferecer.

O problema é que esse novo é velho e sinistro. Tudo isto é regressão: a desqualificação das eleições é a porta de entrada desse novo tipo de ditaduras “iliberais” onde a autocracia se confunde com o neoliberalismo à solta. O discurso catastrofista sobre a inviabilidade da democracia e até do país constituiu-se, desde finais do século XIX, como prefácio ideológico de todos os atentados políticos contra a liberdade e a democracia no século XX. Ainda que a autora fuja a explicar-se sobre o que realmente propõe como solução política, o seu argumentário é o da fundamentação de uma estratégia subversora da atual ordem constitucional e democrática. Tal como o do Chega.

Numa coisa estou de acordo com FB. Quando, à angustiante pergunta “onde encontramos cabeças que nos orientem?”, responde com o Chega feito partido guia, FB está a confirmar o seu próprio diagnóstico sobre “o afundamento da criatividade intelectual e imaginação política” na Europa. E na “direita clássica” portuguesa.»

Todo o poder aos novos sovietes

 

por estatuadesal

(Pedro Marques Lopes, in Diário de Notícias, 13/02/2021)

Pedro Marques Lopes

Como é do conhecimento geral, as contas de Donald Trump, no Facebook e no Twitter, continuam suspensas. As administrações destas duas empresas deliberaram e acharam que as publicações do agora ex-presidente dos Estados Unidos incitavam à violência e debitavam muitas mentiras.

Não será preciso ser particularmente sagaz para perceber que os gestores destas redes sociais só prescindiram deste importante cliente depois de ser certo que ele ia deixar de ser presidente dos Estados Unidos.

Isso chegaria para desconfiarmos do suposto compromisso com a verdade destes indivíduos ou de qualquer vontade de defender valores que não seja ganhar mais uns milhões. Aliás, não será preciso puxar muito pela memória nem este jornal inteiro bastaria para dar exemplos de que não só a verdade para estas empresas pouco importa como os atropelos éticos são constantes.

Se em tese todas as empresas se devem guiar por práticas que sigam princípios éticos em que, claro está, se inclui não mentir e não divulgar mentiras, sabemos que essa qualidade é tão mais respeitada quanto maior for o poder coercivo das autoridades - e convém lembrar que no caso das democracias essas são as representantes do povo. Ou seja, ou o Estado impõe regras ou a vontade de realizar lucros sobrepõe-se a quase tudo. É uma visão pessimista sobre os homens e sobre o capitalismo? Talvez, mas é o que a história nos ensinou. Não, não há uma mão invisível para a ética empresarial.

Então quem regula as redes sociais e o que há para regular? Ninguém e nada. Não são órgãos de comunicação social - não sendo assim regulados pelas entidades do setor - e o produto que têm para vender são conteúdos produzidos por pessoas e organizações a que não têm qualquer ligação e que publicam ou não em função do lucro.

Ou seja, temos umas empresas com fundos ilimitados, sem qualquer controlo e que decidem, em grande parte, quem tem voz ou não, o que é verdade e mentira, quem pode anunciar e o quê. Acresce esse pequeno detalhe de saberem tudo sobre os seus clientes. Ou seja, além de venderem o que lhes é cedido gratuitamente, vendem também as informações que têm sobre nós, e nunca ninguém soube tanto sobre todos os aspetos da nossa vida como essas empresas (acrescento Amazons e Googles).

Este poder, nunca antes alcançado por empresas privadas, é tão grande que põe em causa, também como nunca, o poder político. O too big to fail de instituições financeiras que condicionava (e ainda condiciona) os Estados é uma brincadeira comparado com esta, já não tão nova, realidade.

A globalização tirou muitos milhões de pessoas da miséria, mas concentrou um poder extraordinário em meia dúzia de empresas que de facto governam o mundo.

O controlo dos mercados onde operam (e estão em cada vez mais) é absoluto. A sua dimensão é tão grande que qualquer possível concorrente é rapidamente destruído ou absorvido. De facto, já não há mercado nenhum, é na prática impossível concorrer com essas empresas.

O sonho do governo mundial foi atingido, mas revelou-se um pesadelo. Não somos governados por ninguém que lute pelo bem comum, o interesse deste governo é só e apenas o lucro das empresas de que são donos.

Teremos de prescindir do excelente serviço da Amazon, da possibilidade de saber sobre a vida de quem gostamos ou de partilhar opiniões através de redes sociais como o Facebook ou o Twitter? Não sei, provavelmente. O que de certeza absoluta não podemos fazer é aceitar bovinamente que condicionem a nossa forma de pensar, que nos controlem todos os nossos passos e, sobretudo, não podemos entregar os nossos destinos a quem não elegemos.

Calou-se a última rádio independente

De  Nara Madeira

Budapeste, Hungria
Budapeste, Hungria   -   Direitos de autor  Euronews
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Calou-se, nas ondas hertzianas, uma das últimas vozes críticas do governo ultranacionalista de Viktor Orbán. A Klubrádió perdeu a licença, que detinha há dez anos, por motivos vários, apresentados pelo Autoridade de Comunicações local, entre eles o facto de não cumprir as quotas musicais, ou seja, de transmitir pouca música húngara.

Os motivos não são aceites pela administração. András Arató, presidente do grupo do qual faz parte esta rádio, explica que "há três outras estações que cometeram os mesmos, «pecados horríveis»" que eles "no mesmo período. Mesmo assim, conseguiram a renovação da licença com muita facilidade. Por isso, achamos que foi discriminação e o Conselho de Comunicação mentiu ao dizer que não tem o direito de prolongar o uso das frequências".

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Comissão Europeia mostrava-se preocupada pelo fim deste meio de comunicação independente e dizia estar em contacto com as autoridades húngaras "a fim de garantir que a Klubrádió possa continuar a operar legalmente".

O desafio agora é orientar os ouvintes para a Internet e manter os 120 postos de trabalho. Atualmente esta rádio sobrevive com a contribuição de alguns dos mais de 200.000 ouvintes que a sintonizam todos os dias.

Os funcionários da Klubrádió ainda esperam que haja um volte-face. Mihály Hardy, sub-editor de redação diz esperar que os "silenciem apenas por um curto período de tempo, na frequência analógica tradicional. Enquanto isso, os nossos ouvintes receberão, exatamente, o mesmo produto e qualidade através da Internet. E, claro, a batalha jurídica também continuará", acrescenta.

Já o Conselho dos Média da Hungria diz que a administração da rádio não recorreu da deliberação de um tribunal de validar a decisão da autoridade competente.

O Parlamento Europeu debaterá a liberdade de imprensa na Hungria e este caso numa sessão plenária em março.

O Conselho dos Média tinha já retirado a frequência à Klubrádió em 2011, que acabou por recuperá-la, novamente meses depois, após uma decisão judicial. Desde então, perdeu todas as frequências regionais ficando apenas com aquela que agora perdeu.