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sábado, 20 de fevereiro de 2021

E agora, Marcelo?

 

por estatuadesal

(Ângela Silva, in Expresso, 19/01/2021)

Nunca se saberá se é verdade ou mentira que Marcelo Rebelo de Sousa teve reais dúvidas, angústias, conversas em família e hesitações sobre recandidatar-se ou não a um segundo mandato presidencial. Mas que o fardo, grande e pesado, volta e meia o atormenta confessou o próprio na sua primeira entrevista após ter sido reeleito. “São 10 coisas más e uma boa”, eis como Marcelo pintou o cargo em conversa com Ricardo Araújo Pereira (nada como o humor quando nos sentimos apertados), e até contou a conversa que teve com Cavaco Silva em 2016, três meses após o seu antecessor ter deixado Belém. “Estou ótimo! Nem imagina, sinto-me aliviado, saiu-me de cima dos ombros um peso, está a ver?”, ter-lhe-á dito Cavaco. Ao que Marcelo diz ter respondido: “É o peso que veio para cima dos meus ombros!”

A 7 de dezembro, quando convocou os jornalistas à Pastelaria Versailles de Belém para anunciar que era recandidato, Marcelo disse que avançava por não querer “sair a meio de uma caminhada exigente e penosa” — uma pandemia a enfrentar, uma crise económica a vencer — e por ver “uma oportunidade única para mudar Portugal para melhor”. Estaria a pensar que ajudar o país a recuperar de uma crise avassaladora é sempre uma grande oportunidade para um político ver se passa no teste de estadista, ainda por cima quando se é reeleito com uma invejável percentagem de 60% dos votantes. Mas o Presidente sabe que a empreitada é bicuda, que a famosa ‘bazuca’ de milhões que há de vir de Bruxelas para responder à crise já cheira a pouco — ele próprio disse em campanha que “já era preciso duas bazucas”. E resolveu tornar a coisa ainda mais exigente ao lembrar que em 2024 comemoramos os 50 anos do 25 de Abril e seria “inconcebível não sermos um país além de mais livre, mais desenvolvido e mais justo”.

Mal se viu reeleito com o segundo melhor resultado de que há memória, prova de que os eleitores contam mesmo com ele, Marcelo disse ter percebido o sinal e garantiu que retirará as devidas ilações. A saber, que “os portugueses querem mais e melhor”. O que isto significa é simples: o Presidente prepara-se para ser mais exigente com o Governo neste segundo mandato. Desde logo no que toca à resposta à pandemia — as últimas semanas já o mostraram mais musculado na gestão do estado de emergência e mais em cima do processo de vacinação — e depois disso com aguçado olho vivo a acompanhar o plano de recuperação económica e social do país, que contará com milhões de fundos europeus a circular. Tudo isto num contexto político menos seguro do que parece, com um Governo minoritário e cansado e cujos parceiros à esquerda estão menos fiéis do que já foram, com a direita estilhaçada entre um PSD estagnado, um CDS mirrado e em guerra interna e o radical Chega a crescer, e com um coro de vozes que já pede ao Presidente governos de salvação nacional.

“O Presidente é o mesmo, as circunstâncias é que vão mudando”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa ao Expresso pouco antes de ir a votos, quando influentes socialistas se desdobravam em declarações de apoio à sua recandidatura com base num pressuposto — que faça um segundo mandato “idêntico” ao primeiro. Ele diz que sim, que será “o mesmo”, mas vai avisando que, se o mundo mudou, se houver novas circunstâncias, se o país pedir mais e se pressentir bloqueios, saberá retirar as ilações. E o que quer isto dizer? Que, não sendo por natureza um político de fraturas e preferindo, pelo contrário, ajudar a fazer pontes, o que o impede de vestir a partir de Belém o fato de líder da oposição, estando mais livre, Marcelo subirá a fasquia ao poder socialista e estará muito atento ao desgaste do atual ciclo político junto da opinião pública. Viu-se nas duas vezes em que, já reeleito, falou ao país para renovar o estado de emergência. A primeira, quando dramatizou como nunca antes o estado da pandemia, e a segunda, 15 dias depois, quando pediu ao Governo um plano criterioso e sustentado para desconfinar o país (e ouviu António Costa responder-lhe que é muito cedo para “especular” sobre desconfinamentos). O tom da coabitação já não é exatamente o mesmo. À sua maneira, Marcelo II também vai ser diferente de Marcelo I.

IRONICAMENTE À ESPERA DE PASSOS

Isso ajuda a perceber a frase aparentemente fora do contexto que o Presidente incluiu na sua mais recente comunicação ao país. “Não contem comigo para crises políticas, por muito sedutoras que sejam, ou para governos de salvação nacional”, afirmou. O que levou muita gente a questionar o sentido de um aviso assim quando o tema era a pandemia. Mas Marcelo foi fino na mensagem. Ao falar de “salvação nacional”, fez ecoar que a situação é politicamente delicada e não está para brincadeiras. E, ao dizer que não contem com ele para nomear governos à margem do xadrez parlamentar, deixou claro que é António Costa quem ele quer ver a gerir esta crise até ao fim.

Por um lado porque sempre foi defensor da estabilidade política, e todo o seu primeiro mandato foi prova disso, a começar pela forma como ajudou a normalizar a ‘geringonça’, cá dentro e lá fora. Por outro porque, não se vislumbrando nenhuma alternativa de poder capaz de se afirmar no Parlamento, Marcelo não dará gás a saídas de emergência que permitissem ao PS livrar-se de ter de gerir o atual momento sem garantias de que algo de novo daí resultaria. Com o PSD encalhado nas sondagens, sempre abaixo dos 30%, e o CDS a ver se mantém o atual líder ou se corre com ele, o que faz sentido para o Presidente da República é ajudar a manter o Governo e esperar que a direita se arrume. Com os olhos postos nos congressos que os parceiros da velha AD têm previstos para 2022, logo após as autárquicas, que ajudarão a perceber melhor qual é, afinal, o estado da arte.

O eventual regresso de Pedro Passos Coelho é um fator decisivo para Marcelo saber com o que pode contar neste mandato. Sobretudo porque Passos é visto à direita (e em Belém) como o nome mais capaz para federar PSD, CDS e Iniciativa Liberal e para estancar e recuperar a fuga de eleitores para o Chega. E assim, ironicamente, para o Presidente da República, que anda há cinco anos a pedir uma alternativa “clara e forte” às esquerdas, a solução pode passar pelo homem com quem teve uma má relação antes de chegar a Belém. Passos, recorde-se, não o queria como candidato presidencial, considerava-o um “cata-vento mediático” e nunca lhe perdoou ele ter sido um contribuinte líquido para que António Costa cumprisse a legislatura. Mas a verdade é que, mesmo sem ser um Soares, Marcelo adoraria não sair do palácio sem ver a sua família política chegar ao poder.

Para isso, aconselha a direita a ter calma. Nada de crises políticas, nada de eleições antecipadas, nada de governos de iniciativa presidencial, nada de soluções tipo Bloco Central (que avisa serem “instáveis e pouco duradouros”). E, sobretudo, nada de pressas. É preciso ver o que dão as autárquicas, se Rio resiste e consegue manter-se na liderança do PSD ou se cai e vem outro líder. É preciso ver se no CDS Adolfo Mesquita Nunes consegue apear “Chicão”. É preciso esperar que os dois partidos se realinhem cada um por si e os dois entre si. E é preciso perceber como ficam nesta nova direita os dois novos partidos, Iniciativa Liberal e Chega. A esperança de Marcelo é que desta incerteza nasça uma alternativa. Mas nem aqui a vida que o espera será fácil.

Na noite eleitoral, antes de entrar na Faculdade de Direito onde discursou ao país, o Presidente andou às voltas de carro, sozinho ao volante, à espera de ouvir na rádio o que diriam Ana Gomes e André Ventura. E o grito de guerra lançado pelo líder da nova direita radical, após superar os 10% nas presidenciais — “o PSD não voltará a ser Governo sem o Chega” —, levou-o a enxertar no seu próprio discurso a seguinte frase: “Temos de fazer esquecer exclusões e xenofobias”. Marcelo sabe que o Chega lhe complica a vida e que, se só for possível uma maioria de direita com a ajuda de Ventura, ele próprio arrisca-se a ficar associado à chegada ao poder dos populistas radicais, que, antes de todos, alertou serem um perigo também em Portugal. Para se prevenir, avisou na campanha que, se um dia for chamado a dar posse a um Governo apoiado pelo Chega, exigirá garantias escritas. E lembrou que um Presidente da República pode sempre recusar ministros. Mas o que Marcelo também disse foi que a legitimidade dos novos partidos não está em causa uma vez legalizados e menos ainda pode estar em causa a legitimidade dos seus eleitores. A sua esperança é que, se a alternativa tiver de passar por aí, as novas lideranças à direita saibam tratar do assunto. Mas a deambulação solitária de Marcelo a ouvir Ventura via rádio é todo um programa.

E O PAÍS GOVERNA-SE?

O grande desafio deste segundo mandato passa, no entanto, por saber como Marcelo Rebelo de Sousa deixará o país depois de estar 10 anos no topo do Estado. Desde que lá chegou, em 2016, o Presidente matraqueou vezes sem conta que basta de vistas curtas e falta governar com um rumo reformista de médio prazo. E há um ano, dias antes de o país se confinar, convidado pelo “Público” para presidir a uma conferência sobre “Portugal, e agora?”, Marcelo foi claro: “Ou se faz um esforço em todos os azimutes, num quadro parlamentar mais fragmentado e com menos pontes, para que a governação seja mais estável nas opções e na base de sustentação, e também mais virada para mais do que a mera gestão diária, ou teremos a aventura, Orçamento a Orçamento e lei a lei, de coexistir em geometria variável. E o caminho não é esse.”

Um ano depois, a mensagem está mais atual do que nunca. A situação é muito pior, politicamente tudo está mais partido e instável, e o Presidente teme continuar a ver um Portugal bloqueado. Sobretudo se de futuras legislativas não sair uma maioria absoluta nem de esquerda nem de direita, capaz de criar condições para levar por diante o objetivo que ele próprio traçou em campanha: “Recriar o país de forma estrutural.”

No discurso da vitória, Marcelo disse ter percebido o que os portugueses não querem — “uma crise infindável, um empobrecimento agravado, um sistema político lento a responder a novos desafios” — e também o que os portugueses querem — “uma reconstrução que vá para além da mera recuperação”. E apontou como meta pós-pandemia virarmo-nos para “tudo o resto, que queremos tanto”. O resto não é coisa pouca. É “mais crescimento, menos desemprego, menos pobreza, mais justiça social, menos corrupção, mais reforma do Estado”. Uma revolução digna dos 50 anos de Abril, que coloca ao Presidente da República uma enorme dúvida existencial. Saber se, estando Portugal a viver um dos momentos mais dramáticos da sua história recente, ele próprio conseguirá, quando sair de Belém, deixar um país diferente para melhor.

Paulo Portas, que na noite das presidenciais esteve no papel de comentador televisivo, tratou de puxar por Marcelo e declarou que, sendo o segundo Presidente reeleito com mais força, ele ganhou óbvio “espaço de manobra”. Mas, se não tiver direita, se a esquerda, mais partida e confusa, também mirrar, e sem querer blocos centrais, Marcelo Rebelo de Sousa sabe que se arrisca a ver esse espaço de manobra esfumar-se sem que Portugal desencalhe e sem chegar a ver a sua família política no poder. É verdade que, como ele próprio lembrou por estes dias, o seu mandato são cinco anos e ao Governo já sobram menos de três. Mas nada garante que depois deste ciclo venham tempos mais promissores no que toca a dar um salto da governação à bolina para voos mais arrojados.

O Chega é um berbicacho neste mandato do PR. Sem ele, pode não haver alternativa. Com ele, Marcelo seria o primeiro a levá-lo ao poder.

Marques Mendes, cúmplice de Marcelo noutras eras do PSD e atual conselheiro de Estado, tem chamado a atenção de que “o país pode caminhar a passos largos para a tempestade perfeita: não haver condições para governar à esquerda e à direita, regressando o espectro dos Governos de curta duração”. E, num artigo que publicou recentemente, não encontrou título mais sugestivo do que “Boa sorte, Presidente”. Por estas e por outras, o coro dos que pedem a Marcelo Rebelo de Sousa que encare a hipótese de um Governo de salvação nacional não para de crescer, e o recente exemplo de Itália, onde Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, aceitou o convite do Presidente Sergio Mattarella para liderar um Governo de emergência nacional, leva à pergunta: porque não pensar em algo semelhante para Portugal? Marcelo nem quer ouvir falar nisso. Pelo contrário, espera que sejam os partidos a encontrar soluções mais robustas para o país. E José Miguel Júdice, outro ex-cúmplice de Marcelo nos velhos tempos do PPD, aponta à sua reeleição um dilema difícil de resolver: “Como é que ele vai harmonizar quem votou nele para que ele mudasse [o centro direita] com quem votou nele para que ele não mudasse [os socialistas]?”

Marcelo não garante nada, nem a uns nem a outros. Apenas promete ser fiel aos seus princípios e causas de sempre. Mas foi sibilino na conversa com Ricardo Araújo Pereira ao explicar o segredo do seu ‘casamento’ com António Costa: “É uma relação institucional que pode ter momentos afetivos. Não é uma relação afetiva que pode ter momentos institucionais”, afirmou.

E é com este pragmatismo que aguardará expectante o eventual regresso de Pedro Passos Coelho, com quem se deu mal mas que nem por isso exclui das suas apostas para um mais promissor xadrez político. Se Passos não vier e Rio e Costa continuarem a ser os protagonistas dos dois lados da barricada, Marcelo nem deseja nem acredita em entendimentos ao centro. E, se Costa não for a futuras legislativas e Pedro Nuno Santos lhe suceder, puxando o PS para a esquerda, talvez uma maior polarização ajude a encontrar soluções maioritárias. Se acontecerem à direita, Marcelo aplaudirá, ainda que com o olho no Chega. E, se forem à esquerda, poderá sempre repetir a velha frase do seu amigo Guterres: “É a vida.”

Num caso ou noutro, se há coisa de que Marcelo Rebelo de Sousa não prescindirá é da sua invulgar relação com o povo. E do desprendimento pelo poder, que garante genuíno. Perguntado em campanha sobre de que é que sentirá falta quando deixar Belém, respondeu: “Não sentirei falta de nada de especial.” E, quando ainda andava às voltas com o tabu da recandidatura, chegou a dizer: “Aos 10 anos [de mandato], temo já estar um bocado gasto.” É verdade que corrigiu num ápice que isso “não aconteceu com os demais PR, que saíram jovens”. Mas o seu grande desafio não é nem manter a juventude nem continuar popular. Com o país a viver a segunda crise da década e com o xadrez partidário em mudança, o desafio de Marcelo é, para memória futura, ir muito além do Presidente selfie. Conseguirá?

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Do inferno salvam-nos os políticos que nos fazem puros

Posted: 18 Feb 2021 03:55 AM PST

 


«Não faço ideia se o vice-almirante Gouveia e Melo é uma pessoa competente. Quem o conhece tem vindo a público dizer que sim e por agora isso chega-me. Apesar de, ao contrário do seu antecessor, não ter qualquer relação com o Serviço Nacional de Saúde, com qualquer questão relacionada com saúde pública e com a rede que será fundamental na segunda e terceira fases de vacinação, estou certo que as suas capacidades de comando, de gestão logística e de reação em ambiente de pressão lhe garantirão um bom desempenho das funções. Não farei com Gouveia e Melo o que foi feito com Francisco Ramos. Porque acredito que não podemos continuar a bombardear aqueles de quem dependemos para que isto corra bem.

Apesar de não duvidar da competência do novo responsável e de Gouveia e Melo ter ocupado o segundo lugar na task-force, estou inclinado para acreditar que a escolha foi essencialmente política. António Costa sabe que um militar não é um alvo da oposição, sobretudo da oposição de direita. Porque um militar não tem ambições políticas. Porque não está ligado a uma fação política a ser atacada. E porque a direita tem um fetiche com a competência das Forças Armadas, único serviço do Estado, para além das forças de segurança, a quem reconhece uma competência inata. Desmente-o Tancos e, mesmo que fiquemos só pelos últimos anos, não foi o único caso. As Forças Armadas sofrem de todos os problemas que sofre o Estado português, com a agravante da opacidade, que as tornam menos fáceis de escrutinar. É interessante verificar como, mesmo no caso do roubo das armas e do subsequente comportamento da PJ Militar, o principal alvo mediático (e da oposição) foram políticos, deixando praticamente de fora os primeiros responsáveis por tudo o que ali aconteceu.

Se tenho razão e a escolha do novo coordenador da task-force também teve como objetivo retirar pressão política e mediática sobre o grupo de trabalho, está a correr muito bem. “O vice-almirante discreto que vem meter em sentido o plano de vacinação”, titulou a revista “Visão”, num perfil do militar logo depois da sua nomeação. O título revela um toque latino-americano que põe os jornalistas, eles sim, em sentido quando em vez de um político têm um oficial superior pela frente.

Instalou-se uma ideia na comunicação social: que o seu papel se resume a fiscalizar o poder político. Há pouco interesse em relação o que se passa em todas as estruturas que não envolvam, de alguma forma, políticos. Seja no setor social (a não ser que haja um autarca envolvido), nas ordens profissionais ou nas empresas (a não ser que haja suspeitas de corrupção que envolvam políticos). Isto acontece por facilitismo, porque o conflito interno inerente à atividade política torna mais fácil chegar à informação. Por medo, porque incomodar o poder económico e corporativo acarreta muito maiores riscos. E pelo populismo convicto que se apoderou de alguns jornalistas.

Seguindo a mesma lógica, instalou-se uma narrativa sobre os casos de vacinação indevida que tenta resumir as fraudes à clientela partidárias. Não a nego e continuo a achar assombroso que tanta gente sem escrúpulos ainda não tenha percebido o que mudou no escrutínio público. Mas não preciso de me afastar da demissão de Francisco Ramos para mostrar como isto é falso: a gota de água que levou à sua saída terá sido a descoberta, pelo próprio, de que médicos usavam o Hospital da Cruz Vermelha para passar à frente. Basta recordar este caso ou o do Hospital da Luz, logo depois, para desmentir a ideia que resume a chico-espertice a uma casta política. A ideia dos políticos corruptos que passam à frente dos heróis da saúde é confortável, mas ignora uma cultura de favor e cunha que é transversal à sociedade portuguesa. Ela também é visível no meio hospitalar, seja público ou privado.

Vivemos num país desigual e é nas estruturas intermédias, sejam lares, hospitais, autarquias ou IPSS, que isso é mais evidente. Porque a proximidade é maior, o poder é mais direto e o controlo menos intenso. Este país desigual precisa de expiar os seus pecados e atrasos e reserva à classe política, que é apenas igual ao lugar de onde vem, o papel de repositório de todos os males. Os políticos personificam todos os nossos problemas e nós, pobres vítimas puras em atos e motivações, sofremos às suas mãos.

Em Portugal, sofre o pobre que não conhece um médico, um advogado, um funcionário da autarquia, um diretor de uma escola lotada, alguém num lar sem vagas. E há uma minoria, muito mais alargada do que gostamos de admitir, que responsabiliza os políticos por tudo o que conhece ou pratica no seu quotidiano. Não se muda durante uma pandemia o que não se resolveu durante séculos.

O que aconteceu nos casos de vacinas indevidas resolve-se com a lei e a fiscalização possível num momento de emergência. Mas é um excelente espelho de tudo o que somos. E, ao contrário do que temos o hábito de pensar, não estamos sós no mundo. Só lá pomos quem nos dá jeito. Felizmente para o novo responsável pela task-force, os militares não cumprem essa função social de serem portadores da culpa coletiva. Os escândalos deixarão de ter a mesma centralidade. Já começaram a deixar. Porque se não tem político não tem interesse.»

Bem-vindos à engenharia climática!

 

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 19/02/2021)

António Guerreiro

Como Evitar um Desastre Climático é o título do último livro de Bill Gates, publicado simultaneamente em vários países (incluindo Portugal). A um “optimista global”, com projectos globais e riqueza global, deve corresponder um livro global com recepção global. Numa entrevista ao PÚBLICO (feita por Patrícia Carvalho e Pedro Rios) publicada na passada segunda-feira, o fundador da Microsoft reafirma que é preciso interromper o desastre climático iminente. Como bom optimista, Gates acredita que estamos a tempo de evitá-lo, eliminando as emissões de gases com efeito de estufa, conseguindo chegar ao nível zero das emissões de dióxido de carbono, sem no entanto “mudar o nível de vida dos países ricos”. Isso, diz ele, “não resolve as alterações climáticas”. E para encerrar o seu pensamento benemérito acrescenta que não se pode subtrair aos países pobres ou em vias de desenvolvimento o objectivo de chegar ao patamar dos países ricos. Como é que se consegue este resultado prodigioso? Através da inovação, diz este “optimista em relação à inovação”.

Para o cumprimento deste programa, o ecologista ecuménico Bill Gates evita qualquer palavra que evoque, nem que seja ao de leve, uma ecologia política. Sobretudo, nada de ecologia política, já que as mudanças necessárias reclamam outra coisa: as forças prometeicas da inovação tecnológica. Podem, pois, todos os poderes e decisores políticos estar descansados que pelo lado da mecenática Fundação Gates não há adversários nem inimigos a identificar e a combater, há apenas investimentos bilionários a fazer. E eles são, afinal, muitas vezes empresariais e lucrativos, embora cobertos pelo doce manto do Grande Mecenas.

Inovar, fazer, construir. Bill Gates é o exemplo extremo da categoria dos geo-construtivistas (sirvo-me de um conceito que o filósofo francês Frédéric Neyrat usa e desenvolve em La part incontructible de la Terra. Critique du géo-constructivisme). O seu optimismo emerge da convicção de que o que há a fazer para evitar um desastre ecológico é reciclar o projecto da modernidade científica, refazer o que foi mal feito com os instrumentos que a ciência e a ficção científica nos fornecem, reconstruir o que foi erradamente construído. Se os homens conquistaram o poder imenso de fazer mal à Terra, se esse superpoder até se tornou a força que determinou a entrada numa nova era geológica que dois cientistas, Paul Crutzer (falecido no mês passado) e Eugene Stoermer, baptizaram com o nome de Antropoceno, então também têm o poder de a reparar. Como? Através de projectos de geo-engenharia em grande escala.

Na sua última crónica no Diário de Notícias, intitulada Os Donos Disto TudoViriato Soromenho-Marques, com o seu reconhecido saber nestas matérias (em que é também, entre nós, pioneiro), relatava uma experiência que terá lugar em Junho, na cidade sueca de Kiruna, dando início à realização de um projecto de geo-engenharia (ou, como prefere a Academia das Ciências dos Estados Unidos, de “intervenção climática”). Esse programa, informa-nos Viriato Soromenho-Marques, é financiado por Bill Gates, um dos “donos disto tudo”. Com esse projecto, “designado pelo acrónimo SCoPEx, que pode ser traduzido para português como ‘experiência de perturbação estratosférica controlada’ (...) o que se pretende é disseminar partículas não tóxicas de carbono de cálcio (CaCO3) para avaliar a sua capacidade de diminuir a radiação solar (...), tentando deste modo indirecto contrariar o processo do aquecimento global” (explica V. S.-M.;). Um mundo regido por este espírito da engenharia climática (que, de resto, já Paul Crutzer tinha inaugurado com um célebre artigo de 2006, onde propunha que se injectasse enxofre na estratosfera para aumentar o poder reflector) é um mundo de pesadelo, até no plano geo-político, porque não prevê os efeitos secundários e involuntários nem tem em conta as diversidades locais: é um projecto de globalização climática, em que a Terra seria dotada de um termostato globalmente regulado pelos geo-construtivistas que transformam o nosso planeta numa máquina que pode ser pilotada por quem tem um poder absoluto. Com o seu optimismo sinistro de feição filantrópica, Bill Gates cauciona um grito triunfante para ser ouvido em todos os cantos desta nossa nave posta nos eixos: Welcome to the climate engineering!

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A guerra colonial nunca existiu (nem a ditadura)

Posted: 17 Feb 2021 04:03 AM PST

 


«A morte de Marcelino da Mata, um comando negro do Exército português que lutou ao lado do colonizador, teve homenagem de Estado. O Presidente da República, o chefe de Estado-Maior General e o chefe do Estado-Maior do Exército foram ao funeral. O ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, mandou uma mensagem à Lusa: “O ministro da Defesa Nacional lamenta o falecimento e expressa o justo reconhecimento ao tenente-coronel Marcelino da Mata, um dos militares mais condecorados de sempre, pela dedicação e empenho depositados ao serviço do Exército português e de Portugal.” O ministro da Defesa, que ainda não era nascido quando começou a guerra colonial, faz agora 60 anos, nem repara que ao escrever aquilo está tão simplesmente a reconhecer as condecorações da ditadura e o “empenho” – que segundo Vasco Lourenço envolveu crimes de guerra – de um militar numa guerra injusta, que enviou para o matadouro um enorme contingente de jovens portugueses e nos tornou alvo de várias condenações da ONU. Imaginem o ministro da Defesa alemão a homenagear a “dedicação” e prestar o “justo reconhecimento” aos comandos nazis. Ia parecer um bocado esquisito, não era? Aqui em Portugal, como a guerra colonial, os crimes de guerra e os massacres nunca existiram, não faz mal. Além de que, ao contrário do imperialismo nazi, o império português era um “bom” império.

O PSD entregou um voto de pesar em que enaltece “a excelsa bravura” e o “exemplar heroísmo”. O CDS quer um dia de luto nacional. O meu amigo João Miguel Tavares diz que “a democracia portuguesa criou história oficial e entrincheirou-se nela”, só que vai ao ponto errado: essa história oficial que, para além das comendas da ditadura, ainda deu mais uma a Marcelino da Mata em 1994, passa por ignorar os massacres, como aqui escreveu Manuel Loff, os crimes de guerra, esquecer a história real e inventar uma mitologia do colonialismo agradável e da ausência de racismo. Há, decerto, nos jornais por estes dias mais referências às agressões a Marcelino da Mata no quartel do Ralis em 1975 do que às agressões que ele e os seus homens fizeram durante a guerra colonial – e isto diz muito de um povo que prefere esquecer que existiu guerra colonial, ditadura, presos políticos, torturadores, funcionários da polícia política, denunciantes. Como optámos (na verdade, os alemães fizeram o mesmo, exceptuando as altas patentes) por integrar o velho regime no novo regime, o esquecimento acabou por ser a via aceitável para o convívio possível. Mas o esquecimento não é digno de um povo adulto. E 60 anos depois do princípio da guerra, era bom trocarmos umas ideias sobre o assunto.»

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

A Guerra Colonial ainda não acabou?

 

por estatuadesal

(Vasco Lourenço, in Público, 19/07/2018)

A promoção de Marcelino da Mata, a existir, constituirá uma enorme vergonha para o Portugal de Abril.


(Publico este artigo de Vasco Lourenço de Julho de 2018, na sequência das honras de Estado prestadas a Marcelino da Mata. Sim, Vasco Lourenço, a vergonha para o Portugal de Abril que já antecipavas em 2018 consumou-se agora com as honrarias prestadas por Marcelo e pelo Ministro da Defesa no funeral do defunto.

Comentário da Estátua de Sal, 17/02/2021)


A História das Nações e o posicionamento dos respectivos povos, perante os diversos acontecimentos do seu percurso colectivo, tem relações que nem sempre são consensuais, acontecendo muitas vezes que o entendimento dos factos é mais fruto das circunstâncias de quando é formulado do que propriamente resultado de um “sentir a Pátria”.

Não são poucas as situações em que o entendimento de acções praticadas varia consoante as épocas e as modas prevalecentes. Nem sempre o “politicamente correcto” é entendido da mesma maneira, havendo mesmo situações onde o que ontem foi incensado hoje é proscrito. E vice-versa, como é natural. Aliás, sabe-se bem que o herói de hoje pode ser o traidor de amanhã, como o inverso também acontece.

Nestes dias assistimos à enorme polémica sobre a questão dos Descobrimentos e da Escravatura (com o respectivo tráfico de escravos).

As conjunturas levam-nos a denegrir o que outrora foi incensado, só porque pode parecer mais “in”, pode dar-nos mais votos, especialmente dos que votam mais influenciados pelo populismo, pelas modas de ocasião, do que pelo discernimento e compreensão.

Não vou aqui tratar deste tema – não é que o mesmo me não interesse e sobre ele não tenha posição –, mas irei tratar especificamente a questão da Guerra Colonial, de que Portugal foi um dos principais protagonistas, durante 13 anos (entre 1961 e 1974).

Durante esses anos, longos anos, os portugueses lutaram, mataram e morreram em três “teatros de operações”, em Angola, na Guiné e em Moçambique.

Aí se envolveram um milhão de portugueses, oriundos de todo o então território nacional, aí morreram mais de dez mil “soldados e marinheiros”, daí regressaram várias dezenas de milhares de deficientes (mentais e físicos), aí se viveram enormes dramas, mas também algumas alegrias, fruto das derrotas e das vitórias parciais que se obtiveram. Aí se constituíram autênticos heróis, habilmente explorados pelo regime fascista-colonialista, mas aí se cometeram igualmente autênticos crimes de guerra.

É da natureza da guerra, não gosto de condenar os que cometeram exageros, pois costumo afirmar que o exagero está na própria existência da guerra, não dos que, fruto das circunstâncias, os cometem.

Estou à vontade, pois fiz a guerra na Guiné, vivi momentos bem difíceis e até dramáticos, mas tive a sorte de não me envolver em nenhuma acção de que mais tarde me viesse a envergonhar.

Há que clarificar, contudo, que distingo bem os exageros que a própria dinâmica da guerra provoca e os exageros que nenhuma guerra deveria provocar.

Partindo do princípio de que os objectivos não podem justificar todos os meios – nem mesmo nas guerras –, esses exageros só acontecem devido ao mau carácter dos seus autores. A sua má formação ética e moral não resiste ao ambiente da guerra e faz surgir os seus instintos assassinos...

Foi pelo facto de nessa altura os crimes de guerra não serem tão condenados como posteriormente o vieram a ser, que muitos dos actos praticados na Guerra Colonial aqui tratada viriam a ser escondidos através de condecorações por bravura e heroicidade.

Tivemos, é certo, os massacres de Wiriamu em Moçambique, que criaram fortes engulhos ao regime de Salazar/Caetano, mas a censura, por um lado, e os tempos de então, por outro, mantiveram os crimes cometidos num quase anonimato total.

Como teria sido, por exemplo, se o ataque a Conacri se verificasse hoje, com a prática de crimes que os portugueses invasores perpetraram na capital da Guiné-Conacri? A que condenações públicas internacionais assistiríamos, suportadas em enormes campanhas “publicitárias”!

O 25 de Abril de 1974 veio permitir a resolução do problema colonial, adaptando-se a posição portuguesa ao comum entendimento internacional, levando Portugal a reconhecer o direito de todos os povos à autodeterminação e independência.

Isso permitiu o acordo de cessar-fogo, o fim das hostilidades, o reconhecimento do nascimento de novos países e a transmissão do poder, de forma pacífica, para os responsáveis desses novos países de língua portuguesa. Portugal dignificou-se no seio da comunidade internacional, a guerra foi esconjurada, considerada ilegítima e maldita. E os heróis de ontem passaram a estar na sombra, procurando todos esquecer...

O sentimento de que os combatentes haviam cumprido o dever que o seu país, através do que os que detinham o poder (mesmo que ilegítimo e contestado) lhe impunham – naturalmente, “apoiado”, pelo facto dos autores da libertação (os Capitães de Abril) também terem feito a guerra, também serem combatentes –, permitiu uma transição pacífica da ditadura para a democracia e colocou entre parêntesis o próprio fenómeno da guerra.

E assim temos vivido, com a inserção dos combatentes, nomeadamente dos deficientes, na sociedade. Apesar de, de vez em quando, os saudosos da “outra senhora” deitarem as garras de fora, tentando instrumentalizar os combatentes para atitudes menos pacíficas.

O facto é que a sociedade portuguesa democratizou-se, adaptou-se às novas regras e a convivência entre todos tem sido um facto.

Por isso, não posso aceitar, e contesto veementemente, as sucessivas tentativas saudosistas do passado, dos ressabiados pela construção da democracia, dos que não aceitam a liberdade de todos e a igualdade de direitos dos antigos colonizadores e antigos colonizados, em trazerem à luz do dia fenómenos de todo em todo desactualizados, inoportunos e inaceitáveis.

Temos assistido a condecorações, passados mais de 40 anos, por actos que, em termos de guerra absoluta, até merecerão ser reconhecidos, mas que – hoje, passados todos estes anos – deveriam enterrar-se de vez. Continua, de facto, a haver quem não queira esquecer, nem permitir que os outros esqueçam, a Guerra Colonial.

Não vou desenterrar outros lamentáveis episódios de promoções e condecorações a que já assistimos. Venho é manifestar-me totalmente contrário, aqui acentuando o meu profundo protesto, contra a hipotética promoção, por distinção, do militar Marcelino da Mata – oriundo da Guiné-Bissau, com nacionalidade portuguesa, já promovido por distinção a capitão, graduado em tenente-coronel – a major.

Porquê?, pergunto. Para o graduarem em coronel ou, quem sabe, general? Para quê?

Porque acredito nos princípios de quem fez a proposta, creio que o senhor general Chefe de Estado-Maior do Exército não sabe dos crimes de guerra que o então sargento Marcelino da Mata praticou na Guiné, com especial relevo no referido ataque a Conacri (e não só, como afirmo na página 44 do meu livro Do Interior da Revolução).

Não quero acreditar, como não acredito, que os diversos responsáveis – ministro da Defesa Nacional, primeiro-ministro, Presidente da República – aprovem a decisão de o promover, se souberem bem o que aconteceu.

Como então, quando foram cometidos esses crimes de guerra (resultado da acção de autênticos assassinos) envergonharam muitos dos militares que deles tomaram conhecimento, esta promoção, a existir, constituirá uma enorme vergonha para o Portugal de Abril!

Por mim, para além de estar disponível para quaisquer esclarecimentos, faço sinceros votos para que se não façam mais quaisquer tentativas para justificar e legitimar uma guerra que, por mais anos que passem, se mostra cada vez mais inútil, ilegítima e injustificável.

Como, aliás, acontece com todas as guerras...!

Presidente da Associação 25 de Abril