«O doutor Samuel Johnson terá declarado um dia que era capaz de abstinência, mas nunca de moderação. Uma análise que podia bem ser feita a propósito dos portugueses: o modo ciclotímico como coletivamente reagimos à pandemia e gerimos o confinamento aparenta alternar entre o excesso e a abstinência, tocando ao de leve na moderação.
Em curtas semanas, o espírito do tempo passou de um quotidiano em que quase parecia que a covid tinha desaparecido para um confinamento radical, que depois se transformou num consenso em torno da necessidade de uma métrica clara da qual passariam a depender todas as decisões. Este consenso logo evoluiu para um debate sobre o desconfinamento. Talvez a moderação que nos faltou no passado recente seja útil no momento atual.
Não se pense, no entanto, que esta inclinação para excessos é uma versão atual da frase atribuída a Júlio César sobre o povo que, nos confins da Ibéria, não se governava, nem se deixava governar. A questão não é de índole cultural, é antes política e institucional. E, na verdade, não precisamos de um calendário, mas, sim, de critérios claros.
A ideia de que era possível ‘governar pelos números’ ganhou tração após a penúltima reunião no Infarmed. Por momentos, parecia que estava a emergir um consenso na sociedade portuguesa sobre a necessidade de identificar uma bateria de indicadores que possibilitasse alguma despolitização das decisões quanto ao ritmo e escolhas do desconfinamento. Um consenso que, como muitos outros, se desfez em ar à primeira oportunidade.
Porventura o motivo principal para este rápido processo de rarefação reside no facto de a tal bateria de indicadores não ter surgido. A questão gera perplexidade a quem observa à distância: se se foi tornando claro que há variáveis cruciais para a gestão do confinamento, qual o motivo para que as decisões não se baseiem na variação desses indicadores? Se o que deve informar as decisões é a variação no índice de transmissibilidade (o tal Rt de que, entretanto, todos já ouvimos falar), os níveis de testagem e o rácio de positividade, bem como a pressão sobre o SNS, medida através da taxa de ocupação de camas em UCI, por que motivo não se trabalhou num quadro de bordo que cruze estas dimensões com a evolução da vacinação, a capacidade de rastreio e a propagação de novas variantes? Entre cientistas e decisores políticos, devíamos ter tido uma resposta pública a estas dúvidas.
Até porque a sociedade portuguesa vai fazendo o que pode — como revela, por exemplo, a forma como o tema da prioridade à educação foi ganhando o espaço que, desafortunadamente, não teve no primeiro confinamento. O que talvez sirva para revelar que, afinal, este povo não só se deixa governar como até ajuda a que a governação obtenha melhor desempenho.»
Ciclicamente, há uns espíritos desocupados da esquerda pronta-a-consumir que se dedicam a escarafunchar a História de Portugal a pretexto da depuração racista e de um ajuste de contas extemporâneo com o passado colonial, como se alguém lhes tivesse deixado em herança a missão de o resgatar e limpar de todas as impurezas. Esquecem-se, ou ignoram, que a História não pode ser julgada pelos padrões éticos contemporâneos nem pelo comportamento de cada país ou sociedade visto isoladamente, fora do contexto da época. E esquecem-se, ou ignoram — ou pior, assumem, sabendo — que esse é o caminho mais rápido e inevitável para tornar inviável qualquer discussão séria, reduzindo-a a um debate sem sombra de grandeza ou finalidade, apenas contaminado por preconceitos ideológicos, onde uma esquerda arrogante e ignorante julga poder obter ganho de causa pela simples ameaça de excomunhão alheia. Mas onde apenas consegue fazer ressuscitar das catacumbas uma ultradireita nacionalista e igualmente ignorante e facciosa, saudosa de um Império que foi muito mais a nossa ruína grandiosa e pretexto para uma longa ditadura do que o orgulho pátrio que nos vendiam. E eis como os extremos se tocam e mutuamente vão envenenando o ar que respiramos.
De repente, caiu-nos em cima um Blitz de ajuste de contas com o Império, o colonialismo e as guerras coloniais, totalmente desfasado de circunstância e real importância, não se desse o caso de ambos os lados não encontrarem outra forma de fazerem prova de vida: a extrema-esquerda porque já não consegue inventar mais causas fracturantes; a extrema-direita porque nunca encontrou outras causas tão emotivas. Três coisas lhes serviram de pretexto: os arranjos florais dos jardins da Praça do Império, datados de uma Exposição Floral de 1961; a morte do Torre e Espada Marcelino da Mata, ex-comando nativo na Guiné; e uma estapafúrdia declaração de um deputado e ex-governante socialista, defendendo, num dia em que se esqueceu de tomar os calmantes, entre outras luminosas considerações, o derrube do Padrão dos Descobrimentos, esse símbolo do nosso colonialismo. OK, se tem de ser, vamos então a isso.
Sobre os jardins de Belém e os seus arranjos, outrora florais e entretanto desaparecidos, confesso não ter opinião nessa palpitante querela. Adoro jardins e adoro flores, mas se elas representam os distritos do antigo Império ou os símbolos dos clubes da 1ª Liga, é-me indiferente: confio no vereador Sá Fernandes, que tem obra feita em Lisboa, para se ocupar do assunto.
Sobre Marcelino da Mata, herói ou vilão, a questão é bastante mais séria e só quem viu ou viveu a guerra de perto saberá como todas as guerras são feias e como o são particularmente as guerras de guerrilha e de contraguerrilha. Os que estavam lá no mato idos daqui, tantas vezes borrados de medo daquele inimigo que lhes levava vantagem em conhecimento do terreno e técnicas de combate, mil vezes devem ter agradecido aos Marcelinos da Mata que lhes salvaram a vida, indo aonde eles não eram capazes de ir e não se preocupando então em saber, certamente, que métodos de contraguerrilha eles utilizavam. Da mesma maneira que não o perguntavam sobre as unidades de “Flechas”, da PIDE, que no mato faziam o trabalho sujo a favor da tropa portuguesa. Como não se preocuparam os 26 prisioneiros portugueses resgatados das masmorras de Sekou Touré, em Conacri, pelos comandos que Marcelino da Mata integrava, em saber se aquela operação era legal ou ilegal. Por isso, a pergunta se Marcelino da Mata foi herói ou criminoso de guerra não faz sentido: obviamente, foi ambas as coisas. O que faz sentido, já que querem remexer na História, é perguntar porque deixámos para trás, abandonados à sua sorte, os combatentes guineenses que tinham combatido ao nosso lado e que o novo poder do PAIGC se comprometera a integrar nas forças armadas do novo país independente, mas que acabaram, ou na miséria, ou fuzilados sumariamente. Ou perguntar três coisas ao coronel Vasco Lourenço, que arrolou agora como prova dos crimes de Marcelino da Mata (“facto” depois reproduzido por vários outros, como Daniel Oliveira, na última edição deste jornal) uma conversa a que terá assistido no “gabinete de um major”, em que Marcelino da Mata, regressado de uma operação, contou como entrara numa aldeia, atirara granadas para dentro das palhotas e, quando as mulheres e crianças saíram, fuzilou-as a todas: quem era esse major? Porque razão, ele, Vasco Lourenço, testemunha da confissão de um massacre desconhecido mas igual em gravidade ao de Wiriyamu, em Moçambique, se limitou a “retirar-se, incomodado”, em lugar de cumprir o seu dever de oficial e de homem de denunciar aquilo que tinha testemunhado? E porque só falou disso agora, depois de 50 anos de silêncio, e quando o suposto autor do massacre já cá não estava para, eventualmente, o contradizer?
Ah, e vamos às estátuas, aos “monumentos coloniais”. Mas, primeiro, deixem-me autobiografar-me no assunto. A seu tempo, que é o que interessa, fui, lúcida e convictamente, um opositor da guerra colonial e do tal Império — sobre o qual nunca tive dúvidas de que era, além de absurdamente tardio e inviável no tempo, profundamente iníquo e imoral para os povos colonizados e fonte de enganadora prosperidade do país, quando, de facto, só era benefício de muitíssimo poucos, o qual pagávamos com o sacrifício de vidas, de liberdade e da nossa integração no espaço europeu de prosperidade e justiça social. E, por isso, se sempre olhei com compreensão e respeito todos aqueles que, por opção, por profissão ou por falta de possibilidade de escolha, combateram nas guerras do Ultramar, também sempre respeitei e admirei os que, por convicção apenas, escolheram não combater numa guerra que não aceitavam e viveram no exílio vidas bem mais difíceis do que o discurso primário da direita imagina. Tantos anos passados, não mudei nada do que então pensava. Mas estou em paz com o assunto, com uns e com outros, e com a História — a nossa. Que, como todas as outras, teve momentos miseráveis e momentos grandiosos.
Quem não ousa sonhar ou compreender proíbe a memória dos que se atreveram. Têm medo de livros, de relatos, de estátuas, de museus. Para, no fim, acharem que ganharam a batalha contra a História. Pobres idiotas!
Mais tarde, já o Império era apenas uma saudade para uns e uma sombra para outros, tive ocasião de estudar detalhadamente e de escrever sobre um desses momentos miseráveis: o trabalho escravo nas roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe, que descobri então, para espanto meu, durara até meados dos anos 50 do século XX: quase cem anos depois de termos abolido oficialmente a escravatura. Mas também descobri, 30 anos depois da independência, que São Tomé e Príncipe era um país falhado, como o são, com excepção de Cabo Verde, todos os que descolonizámos — e essa é, afinal, a pior herança que deixámos e o pior desmentido à nossa invocada “missão civilizacional” de 500 anos. Naquele país, liberto das amarras coloniais, com condições naturais únicas para ser um pequeno paraíso no Atlântico, tudo era mal gerido, tudo tinha sido destruído: as roças, todas as infraestruturas, os inúmeros hospitais que havíamos deixado (cada roça tinha o seu), desbaratadas ou metidas ao bolso dos governantes as generosas ajudas externas, e só numa coisa, aparentemente, se revelava o orgulho nacional: nas estátuas decapitadas dos navegadores portugueses que haviam descoberto as ilhas e que jaziam no terraço do antigo forte português, transformado em Museu da Resistência, ou coisa assim. E, então, ali me quedei sozinho, em silenciosa homenagem a João de Santarém e Pero Escobar, que em 1470 tinham cometido o crime, pelo qual depois as suas estátuas haviam sido decapitadas, de descobrirem aquelas ilhas desabitadas, no longínquo ano de 1470.
E o mesmo fiz diante do forte do Príncipe da Beira, na fronteira do Acre com a Amazónia — um dos sete fortes que o marquês de Pombal mandou construir ao longo da fronteira do Amazonas e aos quais o Brasil ficou a dever esse imenso território que hoje tão mal trata. Ali, diante das muralhas em granito de Portugal, cujas pedras atravessaram um oceano, subiram o rio Amazonas e foram depois carregadas até ao forte e empilhadas para formarem um quadrado de cem metros de lado, mais uma vez fiquei em silêncio porque não havia palavras que servissem. E nesse momento, tentando imaginar o que aqueles portugueses do século XVIII teriam suportado naquela empreitada, quantos teriam morrido de exaustão, de febres, de mordeduras de cobras ou de ataques dos índios — ou apenas de saudades — lembrando-me do que Joaquim Nabuco, o maior historiador brasileiro, disse (“nenhuma empreitada dos portugueses no mundo se compara à colonização da Amazónia”), li, e nunca mais esqueci, o que está escrito no frontispício da entrada do forte: “É vontade de El-Rei. Faça-se.” Assinado: Luís de Albuquerque, governador.
E o mesmo farei se um dia for a tempo de ainda contemplar a estátua de Gaspar Corte-Real, que a comunidade lusa ofereceu ao Canadá em 1965 e que está colocada em St. Johns, na Província de Terra Nova e Labrador, de braços cruzados, contemplando o oceano que o trouxe desde os Açores, a sua terra natal. Não sei a que propósito ou despropósito, na sequência do movimento “Black Lives Matter”, parece que a estátua simboliza agora “uma narrativa colonialista, eurocêntrica e de supremacia branca”. E o curioso é que o autor desta frase é um professor universitário de Toronto, encarregado dos “Estudos luso-canadianos” e de origem e nome português — uma espécie de Ascenso Simões norte-atlântico. Porém, a verdadeira história é outra: Gaspar Corte-Real era o filho mais novo de João Vaz Corte-Real, descobridor e explorador da costa norte-americana, do rio Hudson ao Labrador, em 1472, 20 anos antes de Colombo ter chegado à América. Em 1501, o seu filho Gaspar voltou a explorar a Terra Nova (Newfoundland) e o Labrador, desaparecendo sem nunca mais ser visto. E no ano seguinte, o seu irmão Miguel partiu à sua procura, na que então chamavam “a terra dos Corte-Reais”, e desapareceu também para sempre. E, sempre à vela, muito antes de o primeiro canadiano ter pisado a terra a que hoje chamam sua e de onde correram com todos os índios que puderam, os portugueses continuaram até aos anos 60 do século XX a saciar ali a sua sede de aventura e a sua fome de bacalhau. Pois que derrubem a estátua, só lhes fica bem!
Quem não sabe construir, destrói o que outros construíram. Quem não tem história para contar, apaga os sinais do que outros escreveram. Quem não ousa sonhar ou compreender proíbe a memória dos que se atreveram. Têm medo de livros, de relatos, de estátuas, de museus. E, tal como Estaline, hão-de acabar a apagar os personagens incómodos das fotografias. Para, no fim, acharem que ganharam a batalha contra a História. Pobres idiotas!
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
«O “cancelamento” de figuras públicas por causa de opiniões consideradas menos corretas é muito popular nos Estados Unidos. Ondas de julgadores usam as redes sociais e o espaço público para banirem alguém por alguma coisa que disse ou defendeu, obrigando-o a ceder, a mudar de posição ou a fingir que mudou. Ou a calar-se. A conversa é mais difícil do que parece. Qualquer pessoa tem o direito a reagir a uma opinião que lhe desagrada ou repugna. A democracia vive disso. Quando isso passa a ser viral os efeitos podem ser devastadores. E, no entanto, cada um dos que reage não faz mais do que usar a sua liberdade de expressão. Cabe-lhe distinguir se participa num linchamento que serve para criar medo de falar ou num debate livre com contraditório.
Também não é indiferente a função da pessoa que é contestada. Se for alguém que ocupa um cargo de relevância política, o escrutínio das suas opiniões é inerente à sua função. Exigir que as pessoas não avaliem as suas opiniões é querer amputar a democracia de conteúdo. Os políticos não são meros gestores. O que pensam e dizem conta. É o que mais conta, aliás.
Para se vitimizarem, sectores mais conservadores da nossa sociedade importaram de forma bastante amplificada as dores das vítimas da cultura de cancelamento nos EUA. Mas basta passear pelas redes sociais para perceber como o debate é um pouco deslocado. Sim, há uma cultura de trincheira que se instalou em todo o lado, onde a persuasão foi substituída pelo julgamento, a opinião livre pelo tribalismo e o argumento pelo insulto. À esquerda e à direita. Mas, tirando em alguns nichos no Twitter e alguns artigos de jornais, o “politicamente correto” é um produto gourmet de consumo limitado em Portugal. Mesmo na Academia, é quase irrelevante. Se há madraças políticas neste país, são as faculdades de economia, onde pontos de vista ideológicos são impostos como se de ciência exata se tratasse. Ainda recentemente tivemos sinais da dificuldade que essas faculdades têm em ver o seu nome associado à livre expressão do pluralismo.
Na semana passada, os mártires do “politicamente correto”, com posição hegemónica no espaço de opinião, dedicaram-se a rasgar as vestes por causa do escrutínio a posições que o novo presidente do Tribunal Constitucional deixou escritas sobre assuntos de relevância constitucional. Não escrevi sobre o tema porque nem ele me aquece muito nem, no início, achei que um artigo escrito há onze anos tivesse relevância suficiente. Quando todos os artigos surgiram ficou evidente um padrão de opinião. Legitima e livre, mas nem por isso irrelevante quando tem relação com o cargo que o jurista agora ocupa. Respeitar a liberdade de expressão não é tornar as opiniões inconsequentes. Isso é, aliás, desrespeitá-la. Quando são públicas e se relacionam com a função num determinado cargo público, devem ser debatidas e escrutinadas.
Enquanto as supostas vítimas do “politicamente correto” se queixam de qualquer crítica feita em qualquer rede social, sem qualquer consequência que não seja a legítima manifestação de discordância de cada um, acontecem coisas realmente graves neste país. Verdadeiras tentativas de cancelamento, mas em versão musculada.
Trinta mil pessoas assinaram uma petição, que levarão ao Parlamento, propondo a deportação de um cidadão português por ter chamado criminoso de guerra a Marcelino da Mata. A contestação é esta afirmação é legítima e livre, a consequência que propoem é reveladora. Não sei quantos xenófobos haverá em Portugal. Mas trinta mil já são seguros. Porque quem acha que um português que nasceu noutro país merece pena diferente pelo uso da sua liberdade de opinião do que quem nasceu em Portugal assume-se sem margem para dúvidas como xenófobo. Acha que há cidadãos de segunda, com liberdades de segunda e opiniões de segunda, dependendo do lugar onde nasceram.
Comparar o escrutínio, absolutamente natural em democracia, de posições sobre matérias constitucionais de um presidente do Tribunal Constitucional aos apelos de deportação por delito de opinião é um insulto à nossa inteligência. Defender a liberdade de expressão não é defender a indiferença perante a opinião. É defender que o escrutínio se faz dentro das regras democráticas.
Na mesma semana, André Ventura espalhou um vídeo de uma aula à distância, captado ilegalmente, para acicatar o ódio dos seus apoiantes contra um professor devidamente identificado, sem qualquer instrumento de defesa, que referiu uns factos que ele acha que não podem ser referidos nas aulas. Apesar de tudo, não nos podemos queixar. Por cá, ainda não se prendem rappers pelo conteúdo das suas músicas.
Há uma total dessintonia entre a vitimização de um sector político da sociedade e o seu comportamento. Perante qualquer critica, queixam-se do cancelamento e da censura do “politicamente correto”. Mas para os que se atrevem a confrontar as suas posições exigem processos disciplinares e deportações. O objetivo da vitimização militante e da intimidação agressiva é o mesmo: ficarem a falar sozinhos. Foi sempre o que fizeram na História. Até chegarem ao poder e usarem meios mais eficazes. Não é que nos escondam ao que vêm. A deportação é, como foi no passado, o mais simpático que têm para oferecer.»
«A morte de Marcelino da Mata veio relançar o debate sobre a guerra colonial. Na verdade, ele nunca deixou de aqui estar. O facto de se manter uma amnésia induzida sobre este acontecimento histórico faz com que ele regresse sucessivamente, e de formas nem sempre expectáveis.
A guerra é uma recordação difícil. Decorreu no quadro de uma ditadura que fez um forte investimento na legitimação ideológica da sua presença colonial, ao mesmo tempo que censurava a opinião e prendia opositores. Não se consegue entender a longevidade da guerra sem se ter isso em mente. Como não se pode perceber a mudança introduzida na sequência do 25 de abril, marca fundacional do regime democrático, sem se remeter para a guerra e, mais concretamente, para o papel que tiveram os militares do MFA – e os movimentos de libertação – na queda do Estado Novo e no fim do colonialismo.
Só isto bastaria para tornar problemáticas as palavras do PR e do ministro da Defesa na sequência da morte de Marcelino da Mata, bem como o teor do voto de pesar no Parlamento. A natureza burocrática do texto é um sintoma das suas omissões: ao remeter no abstrato para a “coragem e bravura individual” do comando, esquece a tradução concreta de certos atos macabros, que o próprio fez em várias entrevistas, e que configurarão crimes de guerra. O argumento formalista, que consiste no elenco das condecorações, omite que foram dadas por um regime cujo derrube, justamente no quadro de uma derrota política na guerra, é a razão da democracia que temos. Inadvertidamente ou não, tratou-se de uma reencenação da heroicidade colonialista do Estado Novo, tingida de silêncios sobre atos que em alguns casos (a Operação Mar Verde é um exemplo) mereceram explícita condenação das Nações Unidas.
Não é correto dizer, como se ouviu por estes dias, que na Guiné se cometeram atrocidades “dos dois lados”. Essa equivalência não só ilide o contexto colonial em que a guerra se processa, como não resiste à prova histórica. Não quero transformar este texto num cortejo de horrores, mas já existe muita informação – inclusive testemunhos de ex-combatentes – que comprova isso mesmo. Basta querer conhecer. Por outro lado, e se é verdade que a guerra é a guerra, também não é certo considerar que todos aqueles que nela participaram se regiam pela mesma bitola ou tiveram os mesmos comportamentos. Boa parte dos ex-combatentes foram levados para África para combater numa guerra da qual tentaram sair ilesos. Por causa dela, vários deles sofrem, ainda hoje, sequelas físicas e psicológicas, por vezes estendidas às suas famílias, e vão morrendo sem grande atenção pública. Também por isso, a guerra é uma recordação difícil.
Há dois outros elementos a sublinhar. Em primeiro lugar, o corte com a ditadura fez-se instaurando um peculiar pacto de silêncio sobre a guerra, optando-se por não enfrentar um passado, então recentíssimo, no qual se haviam cometido as atrocidades típicas de uma guerra em solo colonial, com massacres de populações, tratamento brutal a prisioneiros e uma efetiva ligação entre o Exército, as tropas especiais e a PIDE/DGS. Em segundo lugar, esta violência incomoda porque entra em contradição com a narrativa lusotropicalista que o Estado Novo promoveu e que permanece fortemente enraizada na memória pública. Se Portugal não tinha colónias, se a presença em África foi ampla e amigavelmente acolhida pelas populações locais, como enquadrar a guerra neste discurso?
Com efeito, a guerra colonial foi o desfecho tardio de um império já anacrónico. É um dos capítulos desta vasta história europeia que, encerrada em termos políticos, vai teimando em manter-se viva como imaginário nacional e nas suas distintas reverberações sociais, de que o racismo é uma das suas faces mais visíveis. Foi com a consciência de que seria necessário enfrentar essa página da história que Macron encomendou um relatório para se fazer um inventário sobre a colonização e a guerra na Argélia. Na sua sequência, o conceituado historiador Benjamin Stora entregou, no mês passado, um conjunto de 22 recomendações ao Presidente francês, entre as quais se contam várias iniciativas memoriais conjuntas entre os dois países: de entre elas, o esclarecimento de alguns massacres e crimes cometidos; a abertura de arquivos e o impulso a investigação comum sobre este passado; a renovação dos programas escolares; a promoção de exposição e colóquios sobre a guerra nas suas múltiplas faces, incluindo a recusa da guerra, e sobre as independências africanas.
Como é óbvio, não advogo nenhuma cópia a papel químico do conjunto destas recomendações. A questão é outra: o que é que Portugal pretende fazer para enfrentar, de forma cabal, os persistentes silêncios sobre este passado?»
O PS e o PSD apresentaram em conjunto um voto de pesar por Marcelino da Mata. Passou algum tempo sobre a determinação de Mário Soares e o gesto de Sá Carneiro contra a guerra colonial, mas não tanto que possam ser esquecidos – ora, foi isso que os seus partidos fizeram. E fizeram-no de forma abjeta.
No dia 23 de janeiro de 1973 a Assembleia Nacional viveu uma sessão tumultuosa, coisa rara num fórum de partido único, tradicionalmente conformado à obediência à ditadura. O facto é que alguns deputados, os da chamada “ala liberal”, criticavam o regime, abandonadas as vãs esperanças na sua renovação, sobretudo depois de terem perdido a batalha por uma nova lei de imprensa, o momento da sua primeira desilusão. Mas foi o caso da Capela do Rato que constituiu a gota de água que transbordou. Três semanas depois da prisão de alguns dos participantes nessa reunião, o deputado Miller Guerra, médico, bastonário da Ordem, levantou-se para condenar a repressão daquele protesto contra a guerra colonial. Casal-Ribeiro, um dos tenores da ditadura, insurgiu-se - e contam as atas o que então se passou:
“O Sr. Casal-Ribeiro: – Eu estava a perguntar a V. Ex.ª se acha bem e se concorda que na Igreja, ou em qualquer outro sítio, se discutisse ou se discuta a legitimidade da presença de Portugal no Ultramar.
O Orador (Miller Guerra): – Ora aí está uma pergunta objetiva e concreta e a que eu respondo também objetiva e concretamente: Acho, sim senhor. Não só na Igreja, como em qualquer outra parte.”
A assembleia agitou-se, houve a devida berraria, mas Miller Guerra prosseguiu, era um homem corajoso. Uns dias depois deste confronto, Sá Carneiro renunciou ao mandato de deputado. Miller Guerra faria o mesmo no início de fevereiro.
Miller Guerra viria depois a aderir ao partido de Mário Soares que, no seu exílio, prosseguia uma campanha de condenação da guerra colonial, e foi deputado constituinte pelo PS. Sá Carneiro fundou e presidiu ao PSD. Houve portanto um tempo em que figuras de referência do PS e do PSD não se coibiam de recusar a guerra colonial e que o faziam com valentia.
A denúncia da ditadura e da guerra não era para eles uma questão de opinião, uma espécie de jogo floral para ser apreciado em salões. Era uma questão essencial da democracia e do reconhecimento do seu próprio país. Quando Manuel Alegre, na Rádio Argel, condenava a guerra que tinha sofrido, era Portugal que se defendia da ditadura. Terá sido por isso que a democracia sempre reivindicou esta memória do processo que determinou o 25 de Abril. E houve quem não o esquecesse: como lembrou Manuel Loff, em 1992, quando o governo de Cavaco Silva aprovou um louvor ao inspetor-adjunto da PIDE Óscar Cardoso, “por serviços excecionais e relevantes” (Cardoso tinha sido o criador de um corpo africano de tropas especiais em Angola, e, mais tarde, organizou a defesa da sede da polícia política contra as forças armadas no 25 de Abril, tendo depois fugido para a Rodésia e África do Sul), o advogado Francisco Sousa Tavares, monárquico e antifascista, um dos que tinha ido para a porta do comando da polícia exigir a libertação dos presos da Capela do Rato, descreveu-o como “um insulto feito a Portugal e a cada um de nós”.
Chegados a 2021, o PS e o PSD apresentaram em conjunto um voto de pesar por Marcelino da Mata. Passou algum tempo sobre a determinação de Mário Soares e o gesto de Sá Carneiro contra a guerra colonial, mas não tanto que possam ser esquecidos – ora, foi isso que os seus partidos fizeram. E fizeram-no de forma abjeta: o texto da homenagem ao comando que combateu na Guiné usa três argumentos notáveis, que nunca foi ferido, que teve muitas medalhas e que assinou o telegrama dos oficiais spinolistas contestando o Congresso dos Combatentes do Ultramar em 1973, este para simular um laivo de antifascismo.
Para descer mais baixo, só faltaria explicitar o argumento displicente de muitos dos defensores da medalhação de Mata, o de que, tendo sido um criminoso de guerra, o que foi aliás confessado pelo próprio com gosto, teria sido também um herói. Sobre o mérito, Mário Cláudio, que foi ao tempo jurista no quartel-general de Bissau, conta que instruiu diversos processos-crime contra Mata, “pelo comportamento ilícito, e por vezes atrozmente delitual”, ou “de extrema gravidade”, e que estes terminaram sempre em arquivamento sumário, “por ordem superior sem rosto”, o que diz tudo. Talvez não imaginasse é que o PS e o PSD se juntam hoje para continuar a proceder a esse arquivamento sumário.
Parece razoavelmente óbvio que a agitação do CDS, primeiro, e do PSD, depois, precipitando-se para esta vertigem homenageante, tem unicamente que ver com a sua concorrência com o Chega, que naturalmente corre a ocupar o espaço da reivindicação da guerra colonial como glória nacional. Que isto contamine o PSD já é preocupante, considerando a traição a Sá Carneiro; que mobilize o PS, exceto alguns deputados que votaram contra e outros que se conseguiram abster, é um tremendo sinal dos tempos e não só do esquecimento de Mário Soares.
Mas o que este episódio também indica é que a História é aqui instrumentalizada como se tudo fosse indiferente, como se na guerra todos fossem criminosos de guerra, como se não houvesse lei. Ou que de noite todos os gatos são pardos e a bruma da memória tudo confunde, vítimas e criminosos irmanados numa trica perdida na selva. E isso tem consequências, pois determina o que será uma disputa permanente na nossa democracia, saber se a democracia tem justificação na corajosa recusa da guerra colonial e da opressão nacional, ou se, afinal, foi um abuso de militares cobardes que não queriam continuar a guerra dos Marcelinos da Mata e dos seus comandantes.
Naturalmente, há quem pense que se trata de uma mera questão institucional, cuja polémica durará um segundo. Esta atitude é perigosa. Se o ministro da Defesa, o Presidente e a maioria do Parlamento assim sugerem que isso da dignidade humana, das leis da guerra, da responsabilidade do Estado, das relações com os antigos territórios coloniais, hoje independentes, é tudo relativo à conveniência, Portugal fica diminuído. Haverá mesmo quem se lembre de que, perante um processo judicial que envolvia Manuel Vicente, dirigente angolano, houve autoridades nacionais que moveram mundos e fundos para resolver o “irritante” e fechar o assunto. Tratava-se de Angola (cuja justiça, aliás, agora investiga o mesmo Vicente por corrupção). Mas se for a Guiné e uma história de crimes de guerra, a coisa resolve-se com medalhas e uma homenagem no Parlamento português.