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quarta-feira, 3 de março de 2021

Desconfinamento: sem meta, a corrida cansa mais

Posted: 02 Mar 2021 04:12 AM PST

 


«No dia 8 de fevereiro, o investigador Carlos Antunes defendeu que as medidas de confinamento só deveriam ser aliviadas quando tivéssemos menos de dois mil casos diários médios, o risco de transmissão estivesse abaixo de 0,9 e a positividade andasse pelos 5%. Acrescentando que o ideal seria esperar por ter menos de três mil internados e 300 camas de cuidados intensivos ocupadas. No final de fevereiro, alterou as suas metas, reduzindo o número de camas em UCI para 242 e de internamentos para 1300. Talvez seguindo as posições de Manuel Carmo Gomes, Presidente da República usou critérios apenas ligeiramente diferentes, definido uma meta de 200 camas em cuidados intensivos, os internamentos abaixo de 1250 e taxa de incidência que ronde a média europeia.

Há tantas metas como cabeças e a COTEC Portugal e a Nova IMS definiram outras: 366 casos diários, 1500 internados, 240 camas em UCI. Segundo os próprios, era previsível que estes números fossem atingidos em meados de março, poucos dias depois do governo anunciar o seu plano de desconfinamento, com metas oficiais respetivas. Se assim for, será um caso em que um objetivo antes de o ser já tinha sido.

Sabemos que há muita incerteza sobre o vírus, mas a cacofonia de critérios não resulta disso. Resulta de um jogo sem regras, em que cada decisor vai escolhendo os especialistas que quer. Até porque o governo continua a não ter qualquer órgão científico de aconselhamento para o combate à pandemia. Tem as reuniões no Infarmed e as opiniões dispersas de especialistas.

Neste momento, a média a sete dias está abaixo de mil casos diários, tendo ficado ontem abaixo dos 400. Estamos abaixo da média europeia. O risco de transmissão está na casa dos 0,7 (o mais baixo desde o início da pandemia, mas com tendência para ligeira subida nos últimos dias, graças a um desconfinamento informal que a continuação do confinamento formal não impedirá) e a taxa de positividade está nos 5%. Os únicos fatores acima do que do que foi definido por Carlos Antunes são as camas ocupadas em cuidados intensivos (469) e os internamentos (2167), dados que evoluem com desfasamento temporal.

Não sei que critérios devo usar. Se os de Carlos Antunes, se os da NOVA e COTEC, se os do matemático João Buescu, se os de Marcelo Rebelo de Sousa. Não serão seguramente os meus, que nada sei do assunto.

Do que percebi, as 242 camas em cuidados intensivos, que tem sido apontado como o fator mais sensível, deverão resultar de declarações públicas de João Gouveia, que lidera a coordenação da resposta em medicina intensiva. Corresponde a 85% da ocupação reservada a covid, para manter o espaço “não covid”. Com sinceridade, não sei se faz sentido manter um país encerrado com base numa meta definida por um responsável por uma única especialidade, por mais relevante que ela seja nesta pandemia. Não digo que não, mas teria curiosidade em saber se uma equipa pluridisciplinar a assumiria desta forma. Quanto aos internamentos, imagino que se terá em conta o desfasamento com o número de novos casos. Ainda assim, não disputo nada disto.

Não contesto estes ou outros critérios, estas ou outras metas. Elas até poderiam ser regionais e ser regional o desconfinamento faseado. Podiam ser mais apertadas ou mais leves. O que contesto é não termos metas claras e até termos um Presidente sem funções executivas a definir as suas. E, ao fim de mês e meio de confinamento, dizer-se que as metas oficiais serão anunciadas daqui a nove dias. Entretanto, jornalistas e políticos usam as de várias instituições académicas e de vários investigadores.

O confronto não é entre os defensores de confinamentos e os defensores da abertura. Muito menos entre os defensores da economia e os da saúde pública. A haver, é entre os que pedem ponderação de vários fatores e critérios rigorosos para cada decisão e os que defendem que se continue a seguir as euforias e medos de cada momento. Reconhecemos todos que esse foi o erro do Natal. Corrigir esse erro não é cometer o erro oposto. Seria ter uma comissão científica e a definição de critérios objetivos para fasear o desconfinamento.

Pelos seus enormes custos e a dificuldade de o prolongar no tempo, o confinamento não é a melhor forma de lidar com a pandemia. É a forma mais radical quando as outras falharam. E serve para preparar outras formas de o fazer. Porque não podemos confinar até a vacina nos garantir imunidade de grupo, temos mesmo de aprender a lidar com o vírus enquanto ele estiver entre nós. Testar e rastrear é a melhor forma, dizem os técnicos. Esse caminho está a ser preparado seriamente?

Não é só pelos efeitos que o confinamento tem na economia que ele não se pode prolongar por muito tempo, sobretudo num país pobre e desigual como o nosso. Não é só pelos efeitos para a saúde pública, com mortes associadas. Não é só pelos efeitos para a saúde mental. Não é só por ele ser pago de forma tremendamente desigual, fazendo dos mais pobres as principais vítimas. Não é só por ter efeitos estruturais nas crianças e jovens que se sentirão nas próximas décadas. É porque quanto mais tempo dura o confinamento mais desordenado e impactante tende a ser o desconfinamento. E “quanto mais tempo estiverem em confinamento, mais vão incumprir de uma forma encapotada”. É como uma mola que se empurra demasiado: quando a soltamos o salto é incontrolável. Sobretudo quando o confinamento leva, por falta de recursos e apoios, a situações sociais e económicas dramáticas. Por isso, espera-se que o governo pondere os riscos de prolongar o confinamento para lá do estritamente necessário. Para isso, precisávamos de saber com algum rigor o que é o necessário.

Num momento em que praticamente todos os indicadores estão abaixo do que foi informalmente definido como meta, estaremos à espera de dia 11 de março para saber quais são as metas oficiais e como se faz o desconfinamento. Compreendo o medo político de falhar. Mas como podemos ter a certeza que todos os valores são ponderados quando temos um Presidente que define metas como se governasse e um governo que adia a definição de metas oficiais para depois de grande parte delas serem atingidas? O improviso não é menos grave quando é cauteloso. Porque, se cada a dia a menos no confinamento pode custar vidas, cada dia a mais também se mede em tragédias tremendas»

Moedas vs. Medina: o futuro do PS contra o do PSD

por estatuadesal

(Vítor Matos, in Expresso Curto, 02/03/2021)

Bom dia!

Um dia, Zé Moedas, diretor do “Diário do Alentejo”, que era comunista, disse ao filho: “Não concordo contigo, mas luta por aquilo em que acreditas”. E o filho, nascido e criado naquela Beja parada, fez caminho nos estudos e depois nas empresas e a seguir no estrangeiro até ficar rico, digamos assim, para poder dedicar-se à política sem pensar no dia seguinte - nos antípodas do pai -, como militante do PSD e secretário de Estado da troika no Governo de Passos Coelho. Mas o voo mais alto estava para vir, nos cinco anos que passou como comissário europeu da Investigação, Ciência e Inovação. Agora, Carlos Moedas abdica de uma posição confortável na Gulbenkian para aceitar o desafio de Rui Rio e candidatar-se à Câmara de Lisboa. Devemos saber em breve, talvez hoje, o que tem para dizer o challenger do socialista Fernando Medina - também ele filho de dois comunistas que apesar de tudo se tornaram dissidentes do PCP e é de crer que também lhe dissessem para lutar por aquilo em que acreditava.

A política tem destas coisas, se Rui Rio andava com dificuldades em ter um trunfo viável que se pudesse apresentar para ganhar Lisboa, ele aí está: com esta jogada, o líder do PSD mostra instinto mas também cria um possível sucessor (quem sabe se futuro adversário) que ficará muito mais forte só pelo facto de ir a jogo, nem precisa de vencer. Se ganhar, claro, Moedas será promovido a herói laranja - como foi o próprio Rio em 2001 - e ficará o mais bem colocado sucessor na grelha de partida para uma presidência futura do PSD.

Estas coisas que a política tem exigem sempre prudência, e Fernando Medina não podia imaginar que lhe ia sair um touro de 500 quilos na arena - foi o que em 1989 disse António Pinto Leite a Marcelo Rebelo de Sousa quando lhe saiu Jorge Sampaio na rifa. Agora terá de arregaçar as mangas e mostrar o que vale no seu próprio terreno. Se perder, perde a mais importante câmara do país que já deu um Presidente da República e um primeiro-ministro ao PS, mas perde também as possibilidades de um dia poder liderar o partido. Se ganhar (sobretudo se não mirrar mais) continua tudo em aberto, caso um dia um dia queira aparecer como alternativa da ala esquerda de Pedro Nuno Santos e o PS tiver de voltar à zona central onde quase sempre esteve.

Com estes dois homens em competição, pode ser que a campanha seja verdadeiramente interessante, até porque ambos tiveram de pensar “cidade” por dever de funções nos últimos tempos. Há dois anos, quando ainda estava na Europa, o comissário Carlos Moedas fez um discurso em Portugal a dizer: "Hoje, quando vinha para cá, passei pela Avenida da Liberdade, e pensei 'o que será daqui a dez anos a Avenida da Liberdade?'. O futuro é sempre diferente daquilo que nós pensamos." São esses dois futuros em confronto que queremos ver a competir em outubro. O teste será decisivo para ambos, para Lisboa, que só tem a ganhar com o elevar da fasquia e já agora para os dois partidos também.

Na sua coluna diária no site do Expresso, o Daniel Oliveira escreveu ontem uma análise do que está em causa na capital, que vale a pena ler e que começa assim: “Há uma semana assinaria o epitáfio de Rui Rio Tudo indicava a desgraça: as sondagens, o crescimento dos partidos à sua direita e o fantasma de Passos Coelho. Mas é capaz de ter sido o sopro de Passos Coelho no seu pescoço que fez Rui Rio tirar Moedas da cartola. (...) As autárquicas podem ser a salvação de Rio. Mas um fantasma do passado pode ser substituído por outro do futuro. Se Moedas ganhasse Lisboa estaria bem colocado para liderar o PSD.” Agora vamos ao resto.

OUTRAS NOTÍCIAS

E o resto é o principal, aquilo que nos tem preenchido ou esvaziado as vidas e que nos mudou tudo, infelizmente para milhares de famílias tem sido uma tragédia, faz hoje um ano desde a primeira infeção por covid em Portugal. E desde então já morreram 16.351 pessoas no nosso país com o novo coronavírus, podia debitar por aqui muitos números, mas este chega para nos pôr a pensar. “Cansa-me o cansaço de estar sempre cansada”, lê-se num destes 28 depoimentos recolhidos e escritos pela Marta Gonçalves para assinalar este momento de fazer balanços: “Um cansaço perigoso, traiçoeiro: num dos casos este cansaço estava a matar e a própria pessoa nem se apercebeu”.

Numa abordagem mais imediata, ficamos a saber que já só há 14 concelhos com risco muito elevado e apenas três com risco extremamente elevado, ou seja, o confinamento está a dar resultados. Noutra mais de fundo, vale a pena olhar para trás e ler este trabalho da Liliana Valente sobre “um ano a governar em aflição” e que foi publicado na última edição em papel do Expresso e que nos conta os bastidores do Governo na gestão da pandemia durante o último ano.

Marcelo Rebelo de Sousa, que se tem assumido como “supremo responsável” por tudo o que se tem passado na pandemia, também fez questão de assinalar um ano de infeções com uma mensagem publicada no site da presidência, onde elogia os profissionais de saúde, o SNS e os privados, mas não deixa de mostrar os dois lados da moeda e de mandar mais um recado ao Governo: “O país foi-se ajustando à pandemia, umas vezes mais proativamente outras, infelizmente, mais reativamente." O Presidente da República tem insistido numa regulamentação do ruído, mas valerá a pena legislar apenas para o confinamento? A lei do ruído será revista “mais cedo ou mais tarde”, diz ao Expresso o presidente da associação ambiental Zero.

E será que a redução de casos positivos identificados oficialmente está a descer muito porque Portugal está a testar pouco? “Não”, diz um especialista ouvido pelo Expresso e que esteve há uma semana na Assembleia da República. Também pode ouvir aqui o Expresso da manhã, moderado pelo Paulo Baldaia e com os comentários do David Dinis e do Daniel Oliveira, sobre quem afinal é que manda neste segundo ano de pandemia: Marcelo ou Costa? É ouvir.

A semana arrancou com uma mudança um tanto inesperada na estratégia da Comissão Europeia quanto ao já famoso 'certificado de vacinação’. Depois de semanas de ressalvas e reservas face à hipótese de introduzir esta espécie de passaporte, Ursula von der Leyen anunciou esta segunda-feira, logo pela manhã, que Bruxelas vai avançar com uma proposta legislativa para a criação de um ‘digital green pass for travel’. Este documento poderá incluir informações como o resultado de testes à covid-19, provas de imunidade ou comprobatórios de vacinação. O vice- presidente da Comissão Europeia, Margaritis Schinas, assegurou ontem que “não é uma discriminação; é a criação de um sistema comum para assegurar a mobilidade segura dos cidadãos europeus”. Mas nem todos concordam. Estados-membros como a Bélgica vieram já dizer que a vacinação não pode comprometer a liberdade de circulação na UE ou pôr em causa o princípio europeu de não-discriminação. A proposta de Bruxelas será conhecida em detalhe a 17 de Março e promete não ser pacífica.

Por falar em liberdade de circulação e documentação europeia relativa à pandemia, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras deteve, este domingo, no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, três cidadãos portadores de documentação falsa sobre a realização de testes de covid-19. Dois deles foram detetados na partida de um voo com destino à República da Irlanda, e outro para a Áustria.

O PCP comemora 100 anos esta semana, o que faz de um partido marxista-leninista a organização mais antiga presente na democracia portuguesa. Como as instituições antigas têm as suas liturgias, os comunistas farão hoje às 11h, em simultâneo, uma romaria aos lugares dos seus mártires por todo o país: pelas vítimas do Tarrafal no cemitério do Alto de São João; em Alcântara, por José Dias Coelho, assassinado pela PIDE em 1961; em Baleizão, no monumento com a foice e o martelo onde Catarina Eufémia foi assassinada pela GNR em 1954; e na Estrada de Bucelas, perto do local onde Alfredo Diniz (Alex) foi morto em 1945. Ontem, Jerónimo de Sousa falou da sua vida mais do que do partido numa entrevista a Miguel Sousa Tavares na TVI: Em meia hora, o homem que há 17 anos lidera o PCP lembrou memórias da guerra, da entrada na política do mundo operário para a bancada da Assembleia Constituinte e ainda do atual estado das relações com o Governo do PS.

Quem continua a detetar falhas e limitações que "fragilizam a monitorização da informação" é o Tribunal de Contas, no seu segundo relatório sobre a execução orçamental das medidas de resposta à covid-19.

E se o Benfica andava há quatro jogos a sofrer com outras falhas e as limitações, ontem o clube da Luz regressou finalmente às vitórias com um golo de Seferovic e outro de Pizzi, frente ao Rio Ave. Mais otimista que nas últimas semanas, Jorge Jesus disse que "a equipa sabe que está a respirar, a meter a cabeça fora. São estas vitórias que nos alimentam e dão confiança".

Lá fora, em França, a notícia de um ex-presidente preso num país onde a extrema-direita está cada vez mais forte nas sondagens: Nicolas Sarkozy, inquilino do Eliseu entre 2007 e 2012, foi condenado ontem a três anos de prisão, dois de pena suspensa e um de prisão domiciliária efetiva com pulseira eletrónica. Não vai para os calabouços, mas não serão as férias mais agradáveis… O ex-chefe de Estado francês foi condenado por ter tentato obter informação junto de um magistrado de forma ilegal, em 2014, no contexto de um processo jurídico em que estava envolvido, oferecendo-lhe um lugar em troca. Sarkozy ainda será julgado de novo no final de mês, noutro processo relacionado com a sua campanha para as eleições presidenciais de 2012, que perdeu para o socialista François Hollande. 

terça-feira, 2 de março de 2021

A geopolítica da vacina

Posted: 01 Mar 2021 03:48 AM PST



 

«O processo de vacinação em curso é o passaporte para o início da recuperação das economias, progressivamente aliviadas de confinamentos e socialmente normalizadas. Dizem os especialistas que ultrapassada a emergência pandémica e o período de vigilância sanitária, cuja mistura ainda nos angustia, passaremos a conviver com o vírus de forma endémica, habituada e sazonal.

A duração disto é uma incógnita, o que não desmerece os entretantos. E, nestes, há muito em jogo: a vacina transformou-se num instrumento de poder, influência, prestígio e posicionamento estratégico. Se quiserem, deu origem a autênticas superpotências da saúde pública, dando à diplomacia da vacina um cunho que pode ir da salvação gloriosa de terceiros à chantagem por vantagens políticas. Será assim a natureza humana: é na desgraça que se revela.

Na última reunião do G7 falou-se muito em falência moral no auxílio à vacinação dos países mais pobres, através da iniciativa multilateral Covax, mas os milhões anunciados de Washington a Bruxelas não preencheram apenas falhas coordenadas na consciência ocidental, responderam diretamente à competição entre quem chega primeiro a África, à América Latina ou ao Sudeste Asiático. O investimento anunciado tem um carácter geopolítico evidente e sinaliza três variáveis de uma suposta abordagem comum: reforçar os recursos e a capacidade de coordenação da Organização Mundial da Saúde; articular uma estratégia euro-atlântica alargada a Japão, Índia, Coreia do Sul e Austrália; e arrepiar caminho perante o avanço da China na diplomacia da vacina. O passo lógico seguinte será envolver o G20 já na cimeira de Roma sobre saúde global, marcada para maio, capaz assim de exponenciar o investimento num tão desejado "bem comum", embora refém dos gigantes da indústria farmacêutica, o que acaba por ser uma contradição nos termos e que está na base da absoluta disfuncionalidade entre expectativas criadas pelos governos, incapacidade produtiva da fileira industrial e descrédito da OMS como plataforma agregadora. Olhar o copo meio cheio, como gosto de fazer, leva-me a acreditar que esta trilogia pode ainda ser alinhável e corrigida, sobretudo porque o investimento feito na investigação e na produção da vacina, nomeadamente o que a União Europeia disponibilizou, legitima uma reivindicação justa pela partilha temporária da patente, para não mencionar o imperioso cumprimento dos contratos. Essa massificação produtiva, não necessariamente em solo europeu, é a chave para o desanuviamento acelerado das economias e para a normalização da vida pública. Por isso é que trazer a Índia a bordo é importante, quer do ponto de vista da capacidade agregadora quer dos equilíbrios à passada chinesa.

Tradicionalmente, mais de metade da produção de vacinas no mundo tem ali lugar e, no caso da covid, só o Serum Institute of India produz dois milhões e meio de doses por dia. É daqui que vêm as 600 mil doses da AstraZeneca que acabam de chegar ao Gana, o primeiro país a recebê-las através da Covax, ou as 200 mil destinadas a capacetes azuis da ONU, numa operação brilhante de soft power. Mas as ambições de Nova Deli não se ficam por aqui e têm na política de prioridade à vizinhança um claro foco estratégico. Por exemplo, no Nepal, onde está a aproveitar algum espaço dado por Pequim na atual crise política, acelerando a chegada da vacina ao regime de Katmandu. O mesmo acontece na Birmânia, no Sri Lanka, nas Maldivas e no Afeganistão. Já a China, através das várias vacinas produzidas e aprovadas internamente, já as colocou no Paquistão, no Camboja, na Serra Leoa, no Zimbabué, nos Emirados, no Chile, no México, na Turquia e no Brasil, tentando recuperar assim, no caso da relação com Islamabad, de um quadro de crescente desalinhamento provocado por projetos polémicos incluídos na Belt and Road Initiative. Desta forma, a vacina tanto pode servir para Pequim ganhar vantagem económica nalgumas relações bilaterais, como para melhorar a reputação junto de relevantes opiniões públicas, facilitando a pegada comercial e o volume de investimentos em grandes infraestruturas logísticas, como as que estão projetadas para o Paquistão.

A Rússia é outra potência muito ativa neste tabuleiro. As suas três vacinas chegaram atempadamente ao Egito, à Argélia, à Argentina, à Venezuela, à Bolívia, ao México ou ao Irão, intrometendo-se ainda na coordenação europeia através da Hungria. Dizem algumas sondagens que é elevado o sentimento russo antivacinação e que isso pode estar na base da internacionalização rápida imposta pelo Kremlin. É uma hipótese, mas que não deve criar ilusões: Moscovo também está com tudo na corrida para ver quem chega com a vacina primeiro. Sabe que isso significa espaço político conquistado nos países-alvo, além de criar relação com a sociedade ajudada e trazer de volta vantagens intemporais em regiões estratégicas como o Médio Oriente e a Europa. Veja-se ainda o comportamento de Israel, ou melhor, do primeiro-ministro Netanyahu em campanha para as legislativas de março, que defendia a exportação de vacinas para países que já tivessem reconhecido ou estivessem em vias de reconhecer Jerusalém como capital, ou privando de quantidades generosas as populações palestinianas, ou ainda usando a vacina para conseguir a libertação de cidadãos em território sírio. A diplomacia da vacina carrega consigo uma dose ideológica cavalar, não uma mera beneficência pela saúde de terceiros.

Se quisermos olhar para a competitividade destas dinâmicas com a benevolência dos ingénuos, apenas porque se trata de uma vacina, estamos a falhar no ângulo que prevalece para explicar a pressa em produzir, distribuir e marcar território.

E sendo este eminentemente geopolítico, é preciso saber interpretá-lo e agir em conformidade, alinhando decisões políticas, maximizando recursos e usando o poder agregado de forma rápida e eficaz. O pós-covid joga-se agora.»

A irreversível descolonização de mentalidades

Posted: 28 Feb 2021 03:51 AM PST

 


«Sou do tempo do lixo nas praias tolerado. Das touradas enaltecidas como um grande espectáculo. Do fumar nos aviões como sinal de requinte. Do casamento gay proibido. E do mito do país bom colonizador e integrador.

São apenas alguns exemplos. Outros haveria. No meu tempo de vida tenho vindo a assistir a mudanças profundas na forma como olhamos as questões ambientais. As touradas, com mais ou menos ruído, amanhã ou daqui a uns anos, irão acabar. O fumar em aviões provoca sorrisos hoje. Pessoas do mesmo sexo podem casar. A descolonização política já aconteceu. Falta cumprir-se a difícil descolonização de mentalidades.

Ela está em marcha há anos. É um processo, como todas as mudanças, com fases de avanços e recuos, adormecimentos e efervescências, durante muitos anos remetida para circuitos académicos, educacionais ou culturais, e agora também presente no espaço público como um todo.

As camadas de discussão variam muito — às vezes parecendo muito amadurecida na voz de alguns actores, mas na maior parte das vezes, embrionária, porque só agora está a chegar a alguns sectores da população. Uma coisa parece certa. Não existe, neste momento, forma de fugir ao debate sobre a colonização e o pós-colonialismo, e todas as estruturas racistas que daí emergiram.

E ele é irreversível até porque muito já mudou. É daí que surgem parte das polémicas com a linguagem e os símbolos. Não se trata de mudar o nome das coisas ou de apagar o passado e a história, mas de renomear a transformações já desencadeadas, pela revelação de outras lembranças que foram sendo ocultadas ao longo do tempo ao abrigo das representações dominantes.

Nos últimos dias, a propósito da petição para a deportação de Mamadou Ba, do voto de pesar no parlamento português pela morte de Marcelino da Mata ou da polémica em torno do Padrão dos Descobrimentos trazido por Ascenso Simões, foi isso em grande medida que se verificou. O que surpreende no meio disto tudo é a quantidade de auto-intitulados “moderados” que insistem em falsas simetrias, como se fosse possível comparar quem passa o tempo a reafirmar um discurso nacionalista, que vai facilmente buscar pontas soltas às representações oficiais supostamente neutras (do Estado, do ensino ou dos rituais quotidianos), com quem põe em causa essas narrativas hegemónicas, adicionando-lhe outras camadas de entendimento e quebrando pactos de silêncio sobre vidas violentadas, revisitando memórias para a sua reconstrução.

Acredito que isso acontece por razões diversas. Alguns porque se sentem postos em causa nos seus privilégios, baseados nas desigualdades estruturais, no tocante à classe, género ou raça, até porque está tudo ligado: colonização, opressão e exploração. Esses revelam-se até mais obstinados do que nunca, na sua rejeição da história, sentindo-se ameaçados. Mas também é justo dizer que outros simplesmente não tiveram condições para entender na plenitude o que está a acontecer.

Não é fácil pormo-nos em causa, individualmente ou colectivamente. No entanto, neste caso, existem razões para optimismo. A descolonização de mentalidades vai mesmo acontecer, por entre tensões, retrocessos, incompreensões e alguns excessos. Não só por isso, mas também porque hoje existe nitidamente uma nova geração que está disponível para lidar com os traumas coloniais, a história violenta do colonialismo, o racismo e a sua articulação com outras sujeições, abrindo brechas por entre a negação, o mito do bom colonizador e o romantismo do país integrador. Somos cada vez mais.»

segunda-feira, 1 de março de 2021

O nosso futuro ontem

 


por estatuadesal

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 27/02/2021)

No dia 20 de fevereiro completaram-se vinte anos sobre o falecimento no New Hampshire da professora Donella Meadows (1941-2001). O seu nome está associado a uma obra que mudou a vida de muita gente da minha geração, o famoso relatório sobre os Limites do Crescimento (1972) apresentado ao Clube de Roma por uma equipa de investigadores do Massachusetts Institute of Technology.

O livro foi um extraordinário sucesso. Publicado no mesmo ano em que se realizou a primeira conferência das Nações Unidas sobre Ambiente Humano, em Estocolmo, foi traduzido em 29 idiomas e venderam-se nove milhões de exemplares. Logo em 1973, pela mão das Publicações Dom Quixote, surgiu a edição portuguesa. O sentido de oportunidade para a tradução do livro ficou certamente a dever-se ao pioneirismo de José Correia da Cunha, à altura presidente da Comissão Nacional do Ambiente, a primeira entidade responsável em Portugal pela política pública de ambiente, fundada em junho de 1971.

Ao contrário dos estudos prospetivos da década de 1960, nomeadamente da autoria de personalidades como Herman Kahn, fundados num otimismo tecnológico inabalável, a obra de que Donella Meadows foi uma das responsáveis continha uma visão lúcida sobre os riscos do futuro, incluindo os aspetos sombrios que hoje fazem parte da nossa normalidade. Escrito no final dos "trinta gloriosos anos" de crescimento económico exponencial, um ano antes da crise petrolífera ativada pela Guerra do Yom Kippur (outubro de 1973), Limites do Crescimento procurou traçar cenários para um século (horizonte temporal que mais tarde seria seguido nos estudos no âmbito do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas - IPCC).

Donella foi uma pioneira na inovação científica. O estudo de 1972 utilizava pela primeira vez numa escala planetária, fora do campo estratégico e militar, a moderníssima metodologia prospetiva desenvolvida pelas ciências e tecnologias da informação. Donella e os seus colegas criaram um "modelo mundial" composto pela combinação dinâmica entre cinco fatores fundamentais: população, produção alimentar, utilização de recursos naturais não renováveis, industrialização e poluição. As conclusões eram claras: se a humanidade continuasse a seguir pela via do crescimento exponencial irresponsável, dentro de cem anos (em 2070) a nossa civilização atingiria uma situação de colapso irreparável.

Em 1972, não existia ainda o conceito de "desenvolvimento sustentável" (proposto pela primeira vez pelo IUCN em 1980 e popularizado a partir do Relatório Brundtland, em 1987). O conceito alternativo ao do crescimento exponencial a que Donella recorreu foi o de "equilíbrio global".

Muitos dos adversários de Donella vão acusá-la de defender um modelo de "crescimento zero", quando, na verdade, a ideia de um equilíbrio global se aproxima muito mais da proposta de "estado estacionário", avançada por John Stuart Mill em 1848, que é hoje repercutida nos muitos autores que, em face da catástrofe ambiental e climática em curso, defendem a urgência de concentrar o crescimento nas componentes imateriais e qualitativas da condição humana, de baixa ou nula pegada ecológica.

Donella, com a sua inteligência e bondade, viajou a um futuro inóspito para o podermos evitar.

Contudo, como sugeriu o nosso Almada Negreiros, entre as palavras que querem salvar a humanidade e os atos que a podem salvar de facto, vai uma imensa e misteriosa distância.

Professor universitário