(No contexto deste artigo ver as recentes acusações de Rui Rio ao PS e à Maçonaria, aqui).
Tenho mais de quinze anos de exercício maçónico. No decurso desses quinze anos houve várias tentativas de ataque à Maçonaria. Que me lembre, nunca esses ataques foram desferidos num tempo em que o Poder fosse exercido pela Direita política. Tais ataques - e isto NÃO É UMA COINCIDÊNCIA - só surgiram quando o Partido Socialista exerceu o Poder.
Compreende-se! Tanto quanto me apercebo, a Maçonaria é maioritariamente constituída por republicanos e por defensores das soluções políticas que fazem gravitar o seu eixo ideológico em torno de um ideário de explícita Democracia Social, em todas as suas vertentes. São pouco expressivos numericamente os maçons que podem ser identificados como agentes de uma Direita política irrestrita. Ora, isto responde à questão do tempo e do modo.
A Direita ataca a Maçonaria porque quer atacar tudo o que, em seu entender, se mobiliza na defesa da atual solução governativa, interpretada por António Costa. Este é, pois, o tempo certo para atacar a Maçonaria.
Quanto ao modo, vai aproximadamente pelo mesmo caminho. Vem mesmo a calhar a redação de uma lei que sirva de ferrete aos mais decididos defensores da Democracia económica , social e ética. Esta lei vinha mesmo a calhar. Estabelecia a discriminação entre os maléficos servidores do Demo e os impolutos paladinos do Bem Público.
Claro que a lei não poderia colocar este opróbrio, vagamente antissemita, no "judaísmo maçónico" sem que o mesmo fosse feito à Opus Dei - que ficará parificada a uma espécie de Ku Klux Klan de má entranha, mas agora ao serviço de um projeto de domínio teocrático.
De tudo isto emergiria Rio como o grande campeão da política "descomprometida". É a natural sequência do seu empenho contra o mundo do futebol! Rio é uma espécie de político que se julga bem comportado, inodoro, incolor e insípido relativamente a tudo o que possa ser militantemente passional. Rio concordaria com a Lei Seca se vivesse no tempo de Al Capone, só para dizer que é abstémio.
Rio é a versão mansa do portuense sem Futebol Clube do Porto e do putanheiro sem puta declarada. Rio é uma espécie de contra-menino-Reboredo, por se supor demasiadamente Harry Potter. Claro que quando o Poder se escancara, Rio toma calores, ganha tesão e mete-se com a tal puta que diz repudiar: foi o que aconteceu nos Açores, quando meteu na cama dele o Chega! E então o Harry Potter converte-se na reciclagem infantil do ladrão de ninhos...
Dir-me-ão que serão outras as motivações do gajo do PAN. Mas com esse nem vou perder tempo. É apenas um idiota.
(Pronto, Miguel, lá te publico: certeiras e justas críticas ao Governo e ao Presidente. Mas como no tempo histórico não há rewind - e apesar de, em teoria, ser sempre possível fazer melhor -, ficamos todos sem saber se, outro qualquer Governo, o teria feito. Assim sendo, deixo-te um conselho: antecipa tu as "boas medidas" e manda email ao António Costa. Talvez assim ele passe a falhar menos...
Comentário da Estátua, 19/03/2021)
Se bem o li, no seu discurso de posse, Marcelo Rebelo de Sousa fez um sermão zangado aos que criticam a gestão da pandemia por parte do Governo e aos que procuram “bodes expiatórios” a quem assacar culpas pelo que correu e corre mal. Já antes, também avisara, solene, que não contassem com ele para desencadear ou alimentar “crises políticas”, a pretexto de alguns, incluindo eu próprio, se atreverem a dizer o que salta à vista de todos: que o actual Governo integra, em postos-chaves, notórios incompetentes na função e para o momento que atravessamos. Mas, que eu saiba, tal não é crime de lesa-majestade, nem, conforme nos repetem, a democracia ou o direito à crítica estão suspensos. E defender que o Governo se desembarace dos incompetentes, dos que só lá estão porque servem o partido e não o país, não é o mesmo que defender nem uma mudança de Governo, nem uma crise política: é defender que sejam chamados os melhores para enfrentar um momento de emergência nacional, sem olhar a cores políticas e a currículos partidários. Compreendo que o Presidente se queira manter na sua zona de conforto e de não conflito, na sua ponderada gestão dos timings de actuação que mais lhe convêm, mas, entretanto, há gente a morrer sem razão, há gente a perder o emprego, há empresas a falir, há portugueses desesperados e cansados de esperar. Não, Marcelo não tem razão nenhuma para nos pedir para continuar a ser pacientes, silenciosos e acomodados.
Tivemos aqui, de um lado, dez milhões de cidadãos que, muito antes de quem os devia orientar, perceberam o perigo que aí vinha e voluntariamente fecharam-se em casa, inventaram novas formas de vida, de trabalho e de sobrevivência e, com isso, evitaram o colapso do serviço público de saúde, faz agora um ano. E tivemos, do outro lado, um Governo que começou por dizer que a pandemia nunca cá chegaria, depois que estávamos absolutamente preparados para ela, e, a seguir lançou o país em pânico porque não tinha camas, nem ventiladores, nem máscaras (que começou por declarar que não serviam para nada e acabou a agradecer às fábricas de têxteis que se reconverteram para as fabricar). Tivemos depois um país civil que, passada a primeira vaga da pandemia, lambeu as suas feridas e lançou-se à reconstrução de uma economia devastada e curada com pensos rápidos pelo Governo, enquanto este, incapaz de sufocar os surtos residuais de infecção na região de Lisboa e Vale do Tejo, por não tratar de montar uma rede de rastreio, liquidou a imagem do “milagre português”, tão louvado por Marcelo e, com isso, o Verão do turismo. E ao longo desse Verão de 2020, em que a ausência de turistas estrangeiros só foi minimizada pela presença dos portugueses, o Governo nada fez, durante três decisivos meses, para se preparar para a anunciada segunda vaga, preferindo esperar para ver se ela viria, de facto. E, quando veio, declarou-se espantado por ter chegado tão mais cedo e mais forte do que esperava. E entrámos então no infernal ciclo dos estados de emergência, ao sabor de indicadores sempre atrasados, de palpites de ocasião e de anunciadas certezas, logo contraditadas pelos mesmos uns dias depois, com a mesma certeza. E os portugueses sempre confiantes, obedientes, crédulos em quem decidia em seu nome. Entra Novembro, e com a iminência da chegada das vacinas e vários países a prepararem há meses a logística da sua aplicação, só então, e depois de interpelado de fora, é que o Governo se lembra de acordar para o assunto e nomear à pressa uma task force encabeçada por um socialista disponível, e repousa sobre o assunto, após convocar as televisões para filmarem a “sala de comando” da operação de vacinação. Mas, para espanto geral, descobre-se que o comandante da operação, um mês após entrar em funções e ter produzido uma série de declarações — grandiloquentes umas, assustadoras outras — havia aceitado desempenhar em acumulação o cargo de presidente do conselho de administração de um hospital privado. E que, mais umas semanas decorridas e invocando uma grave ocorrência ética nesse hospital, se demitia — mas não do hospital e sim da task force da vacinação. (Felizmente, foi substituído por alguém com menos ego e mais sentido de missão). E os portugueses sempre a assistir.
Veio o Natal e, por estritas razões de popularidade, o Governo decretou soltura geral — não apenas por quatro dias, mas até meados de Janeiro, quando tivesse ocasião de avaliar os resultados do seu gesto de conforto. Desconfiados, os portugueses ainda acorreram a fazer testes preventivos, em massa e por conta própria. Mas isso não evitou o desastre anunciado: quando o Governo quis, enfim, saber o resultado do seu aventureirismo, descobriu que Portugal era o pior país do mundo em número de casos e de mortes por rácio de habitantes e logo depois deparou-se com o espectáculo de terror de filas de ambulâncias à porta dos hospitais esperando horas para entregar doentes que não tinham onde ser recebidos: Manaus em Lisboa. Entrámos então em dois meses de severo confinamento, do qual só agora começamos timidamente a sair, com avisos solenes de que, se não nos portarmos bem, tudo voltará atrás.
Mas, vejamos, onde é que nos portámos mal? Os portugueses aguentaram estes dois meses e tudo o resto sem manifestações de rua, sem desobediência civil organizada, como em quase todos os outros países da Europa e do mundo, sempre confiantes de que o Governo sabia o que estava a fazer e, mesmo quando manifestamente não foi o caso, sem terem sequer escutado um pedido de desculpas que lhes era devido. Milhares de empresas fecharam portas para sempre, outras viram perdidos anos de esforço, dezenas ou centenas de milhares de trabalhadores perderam os seus empregos, sem que o Estado lhes acorresse na dimensão em que outros países o fizeram porque passou anos a endividar-se quando o não devia. Centenas de milhares de crianças ficaram sequestradas em casa com os pais, privadas de um ano de infância, de ensino e de alegria. Dezenas de milhares de portugueses morreram antes de tempo porque o SNS suspendeu as consultas, os tratamentos e as cirurgias de todos os doentes não-covid durante quase um ano — apesar de tantos médicos e enfermeiros terem estado em casa sem fazer nada, enquanto os outros estavam, de facto, a tratar dos doentes covid e a dar o melhor de si, e apesar dos 900.000 dias de faltas ao serviço a mais do que em 2019 no SNS. E, por mais que o desmintam, descobrimos ainda que só temos 47% dos mais de 80 anos vacinados e um número irrisório dos com mais de 65 anos e patologias de risco associadas vacinados, porque, mesmo sabendo que somos dos países mais envelhecidos do mundo e que a vacina da Astrazeneca não fora testada em maiores de 65 anos e não era, pois, recomendada para eles, foi nessa que preferencialmente apostámos de entre os lotes comprados pela Comissão Europeia, porque era a mais barata e a que dava menos trabalho a armazenar e a distribuir. E, assim, em lugar de seguir o critério de vacinar preferencialmente para salvar vidas — o único critério eticamente aceitável e seguido pelos outros —, fomos assistindo a sucessivas justificações para adoptar outros critérios e vendo passar à frente dos que verdadeiramente estão ameaçados de morrer as habituais clientelas do Estado. Tudo junto, para chegarmos ao fim de 2020 com mais 10% de profissionais no SNS, tal como toda a gente reclamava, um aumento não calculado ainda de gastos acrescidos, mas uma diminuição tão acentuada da população portuguesa que, pela primeira vez em muitos anos, a idade mínima para a reforma, em lugar de subir, desceu: hoje, graças ao número brutal de mortos de 2020, os sobreviventes podem-se reformar mais cedo.
Marcelo não tem razão nenhuma para nos pedir para continuar a ser pacientes, silenciosos e acomodados
E os portugueses, senhor Presidente, devem continuar mudos e calados, como mudo e calado tem estado o Governo português, na sua função de presidir durante seis meses ao Conselho da União Europeia, perante o absoluto desnorte e descalabro que é o plano de vacinação europeu, cuja boa execução era, segundo garantiu o próprio primeiro-ministro, o ponto número 1 da agenda europeia neste seis meses?
Eu não pretendo ignorar — e já o escrevi várias vezes — quão difícil tem sido a tarefa de governar neste terrível último ano. Nenhum governo teve de enfrentar circunstâncias tão difíceis e imprevisíveis antes e, por isso, muitas hesitações e muitos erros são compreensíveis e aceitáveis. Mas se há coisa que não é possível dizer é que os portugueses não ajudaram o Governo. Mesmo quando muitos dos seus erros foram de pura soberba, de preconceito ideológico ou de manha propagandista. Para esses, eu acredito que já não vai haver mais paciência e mais contemplações por parte dos portugueses. É bom que o Governo e o Presidente estejam conscientes disso.
2 É bastante provinciana esta obsessão que tantos estrangeiros — e os portugueses, particularmente — têm em se preocuparem com a questão da Monarquia britânica. Não vejo os ingleses interessados em ocuparem-se dos sistemas constitucionais dos outros países e, aliás, como escreveu um inglês, o Reino Unido é, de facto, uma República, cujo Chefe de Estado é chamado de Rainha mas que detém menos poderes do que qualquer Presidente da República, em qualquer lugar do mundo. E, por alguma razão, ou várias, os ingleses dão-se bem com o sistema. Neste triste caso dos Duques de Sussex, trata-se apenas de mais uma tentativa dos americanos de conseguirem injectar algum royal glamour no seu republicaníssimo sistema constitucional. Wallis Simpson foi um tiro pela culatra, Grace Kelly um wrong target de uma Princesa fabricada pelas revistas sociais de um suposto Principado cujo Chefe de Estado é o Presidente da República Francesa. E esta patética Meghan (que eu só descobri que era negra porque ela e Oprah fizeram disso o chamariz da entrevista, à boleia do “Black Lives Matter”) é, patentemente, uma arrivista de ocasião, que afirma ter fugido de Inglaterra para escapar aos tablóides e se entrega, numa entrevista combinada ao detalhe, nas mãos do expoente máximo do jornalismo tablóide. “Oh!”, “Uau!”, “What?”, dizia Oprah, arregalando os olhos de estudado espanto, enquanto deixava por fazer as perguntas essenciais: de que viviam os duques, actualmente? De que se ocupavam, além das fraldas do Archie e da capoeira da sua casa de Santa Barbara? E a pobre Meghan tinha querido suicidar-se porque um tablóide tinha escrito que ela pusera a cunhada em lágrimas por causa de uns ramos de flores e a “Instituição” recusara prestar-lhe “apoio psicológico”? E alguém da “firma” manifestara preocupação ao Harry sobre “quão escuro” seria o Archie, mas o Harry (entretanto autorizado por elas a juntar-se à entrevista) não podia dizer quem fora e isso bastou a Oprah para ter o seu “caso”? Um caso que, dizem, é suficiente para abalar uma Monarquia cuja Rainha há mais de 50 anos preside a uma Commonwealth onde 70% dos seus pares são visivelmente escuros e nunca daí veio problema algum — até à Meghan entrar em jogo. Oh, God save the Queen!
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
«Nem todos os portugueses partilham o sentimento de hiperidentidade que o Eduardo Lourenço elogiou na passagem da ditadura para a democracia. A crítica histórica é sentida por alguns como um atentado ao ser coletivo, enquanto a crítica literária, inclusive de autores que se distinguiram pelo julgamento corrosivo do seu mundo contemporâneo, como Eça de Queirós, levanta imediatamente um coro de protesto. O património literário ou histórico não é uma relíquia; Eça ironizou sobre o tema. Existe uma hipersensibilidade negativa que não parece espontânea, faz parte do jogo político mais recente.
A crítica é inerente ao devir de uma nação, não existe nem pode existir uma visão uniforme do que somos hoje e do que fomos no passado. Qualquer país é atravessado por divisões sociais com interesses divergentes e mesmo antagónicos, que se refletem em visões conflituosas do passado e do presente. É dessa dinâmica que se faz uma nação enquanto dimensão coletiva de um povo com património linguístico e cultural multidirecional, em permanente construção e reconstrução.
Quando organizei com o Diogo Ramada Curto o livro A memória da nação (1991), a ideia era justamente compreender as múltiplas dimensões de um devir histórico modelado por relações de poder em constante negociação, direitos contra privilégios, regimes de propriedade, formas religiosas e configurações culturais que contribuíram para formas plurais de identidade. Esse projeto era inspirado por três autores, Pierre Nora, que publicara os Lugares de memória, um vasto estudo coletivo do património francês como marca identitária, Alphonse Dupront, interessado na história do mito da cruzada e na fabricação do sentimento nacional, e Eric Hobsbawm, o historiador inglês mais influente do século XX, que estudou processos de invenção do passado. Embora a dimensão de classe social e de construção histórica estivessem presentes, a dimensão de género e a dimensão étnica ou racial não estavam assimiladas.
A diferença entre memória histórica, baseada na análise crítica do passado, e a memória coletiva, necessariamente plural, em permanente mudança em função das realidades do presente, que impõem reorganizações e amnésias na perceção do passado, ficou contudo clara. Existem intersecções entre a memória histórica e a memória coletiva, pois as políticas da memória desenvolvidas pelos poderes públicos procuram celebrar acontecimentos e erigir monumentos que consagrem os fundamentos dos respetivos regimes.
O conflito em torno das comemorações do centenário do Infante D. Henrique em 1960, que deixou traços no Padrão dos Descobrimentos e no arranjo da Praça do Império, opôs uma visão da história baseada na religião e nos homens providenciais, clara apropriação salazarista do passado, a uma visão da história baseada na dimensão coletiva da emigração em massa (um milhão e meio até ao início do século XIX, numa população que variou de um a três milhões), onde os interesses económicos e comerciais desempenharam um papel decisivo, sem esquecer a religião. A visão elitista do salazarismo, que bem cuidou dos interesses dos ricos, como assinalou Eduardo Lourenço, está expressa na fonte da Praça do Império, com os brasões de armas das casas nobres que teriam feito a expansão portuguesa. Nunca defendi a demolição destes monumentos por duas razões: o Padrão dos Descobrimentos foi objeto de um bom trabalho de adaptação, memorialização e atualização de programa, enquanto a fonte deve lá ficar como testemunho de um regime ditatorial e elitista que não pode inspirar ninguém com a cabeça no século XXI. Não falo sequer da proposta de restauro dos jardins kitsch com a heráldica colonial, é simplesmente ofensiva dos países africanos e asiáticos com quem devemos ter boas relações.
O projeto de 1991, que recusava a apropriação da linguagem da nação pela extrema-direita nostálgica, que eu distingo da direita liberal, precisa de ser atualizado. Nos últimos 30 anos Portugal aprofundou a sua relação com a União Europeia, embora a economia tenha registado uma relativa estagnação desde os anos 2000, agravada pela crise financeira de 2008 e pela crise da covid-19 em 2020. Esta relativa estagnação tem suscitado tensões numa população que criou expectativas de uma vida melhor que não têm sido satisfeitas. A desigualdade económica e social entre ricos e pobres, que se atenuou até ao final dos anos de 2000, aumenta de novo, com a apropriação de boa parte da riqueza por 1% da população mais rica. A emigração tem tido altos e baixos, mas em relação ao total da população Portugal tem uma das taxas mais elevadas de saídas acumuladas. Por fim, a imigração, que teve um pico com a independência dos PALOP, continua a fluir para cobrir as necessidades de trabalho agrícola que não atraem os portugueses, responder a condições políticas insuportáveis noutros países, e aproveitar as novas oportunidades de Visa Gold e impostos preferenciais para reformados estrangeiros.
Embora não existam estatísticas sobre a nova realidade racial da população portuguesa, é evidente que o impacto de duas gerações de imigrantes com diferentes origens exige um esforço de integração. A memória histórica das realidades da nossa própria emigração multicontinental pode ajudar. O debate em torno do racismo não pode ser varrido como um problema artificial, tornando equivalentes racistas e antirracistas, manobra maliciosa de naturalização e justificação da discriminação. Acusar de fratura da identidade nacional a denúncia do racismo é uma tentativa de calar os que sofrem e estão do lado da lei. Os últimos estudos económicos sobre discriminação racial, como o de Heather McGhee em relação aos Estados Unidos, certamente com problema mais fundo, mostram a importância de políticas de desenvolvimento integradas.
Todos conhecemos as sondagens europeias mais recentes que indicam 60% da população portuguesa com opiniões racistas. A minha definição de racismo envolve duas componentes, preconceito contra descendência étnica combinado com ação discriminatória. A maioria da população não está envolvida na discriminação de minorias, mas o problema deve ser tratado com toda a seriedade, pois existem crimes racistas regulares, como o assassinato recente de Bruno Candé, os constantes ataques físicos e verbais a dirigentes associativos e jogadores de futebol, as pichagens insultuosas nas paredes de associações e escolas, a interrupção de sessões escolares com mensagens racistas. As crianças devem ser protegidas de traumatismos que ficam para a vida.
As sondagens revelam, antes de mais, a ignorância da norma antirracista que prevalece no mundo desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, a qual influenciou a nossa constituição e legislação penal, baseadas na noção de dignidade e igualdade de todos os seres humanos. Trata-se de uma falha clamorosa de educação cívica para a qual o Conselho de Educação já alertou e que exige ação do ministro responsável.»
De suspeitas de abusos sexuais trata a Justiça, não a HBO. Mas o alvo já é a obra de Woody Allen. Vimos isto com Polanski e Kazan. Polanski pagará ou não pelos seus crimes, Allen continuará a defender o seu nome, Kazan terá vivido com os seus fantasmas. Eu não tenho de pagar por eles, ficando sujeito a uma lista de obras que não posso ver, ler ou ouvir. Sinto o vento do moralismo pelas costas. Nenhum poeta maldito resistiria uma manifestação de ativistas munidos de um manual literário de boas-maneiras.
Ainda só vi três episódios de “Allen v. Farrow”. O meu tempo é escasso e não sei se vou continuar. Se aquilo fosse jornalismo, teria muito para dizer. Não cumpriria os mínimos. Tem uma tese, uma acusação e testemunhas para sustentar essa tese e essa acusação. Alguns testemunhos até são poderosos. Mas recorre frequentemente à manipulação emocional e visual. E não ouve – ou desacredita quando refere – qualquer testemunho que se entreponha entre a tese e os factos. Sem qualquer opinião sobre este tema, detesto ser manipulado de forma tão grosseira.
Para quem veja a série, vale a pena temperar com a leitura este texto do The Guardian, que trata o documentário como trabalho de Relações Públicas e ativismo. Ou outro, de Moses Farrow, um dos filhos adotivos de Mia Farrow. Para se perceber como um outro documentário, de sentido inverso, poderia ser feito. Um dos problemas de quem não gosta do bom jornalismo é que ele lida com a contradição e a dúvida, que excita a inteligência e o espírito crítico, mas estraga uma história escorreita. Sendo um documentário, há maior liberdade na tomada de partido. Mas estando perante uma gravíssima acusação de abuso sexual de menores, restam-me todas as dúvidas éticas sobre este exercício de condenação televisionada.
Não tenho qualquer convicção sobre a inocência ou culpa de Woody Allen. Sou do tempo em que estas coisas se entregavam à Justiça e aos instrumentos de recurso e confronto, não à HBO. Nesta matéria, não há #MeToo, com tribunais plenários e pena de suspensão imediata da vida pública a partir de acusações de alguém, que me faça recuar. Porque sei de muitos linchamentos feitos na História em nome dos melhores valores.
Mas o debate que se instalou já tem como alvo a obra de Woody Allen. Já vimos isto com Roman Polanski. A tentativa de banir coletivamente uma obra é um ato de prepotência sobre os outros, que a querem fruir. A relação com a arte não é coletivamente determinada, não é democrática. A que conta, é antes de tudo entre o indivíduo e a obra.
Sobre a última obra de Polanski, o que tenho a dizer é que achei “J’accuse” um trabalho competente. Ele queria que o víssemos como um Dreyfus injustiçado? É indiferente. Assim como foi indiferente se Elia Kazan procurava o perdão por ter sido um delator durante o macarthismo quando realizou “Há Lodo no Cais” (“On the Waterfront”). Continua a ser uma das mais extraordinárias obras primas do cinema, na minha humilde opinião. Como ser humano, Kazan merece-me desprezo e até tive dúvidas quando lhe deram o Óscar de carreira, tendo em conta que a sua se salvou destruindo a de outros. Mas, felizmente aquele filme sobreviveu ao desprezo que ele me merece. E combaterei sem hesitação quem me queira impedir de o ver. Polanski pagará ou não pelos seus crimes, Allen continuará a defender justa ou injustamente o seu nome, Kazan terá vivido com os seus fantasmas e culpas. Eu não tenho de pagar nada por eles, ficando sujeito a uma lista de obras que não posso ver, ler ou ouvir.
Woody Allen até podia ser um serial killer. Nenhuma obra de arte é beliscada pela conduta moral, cívica, política, criminal ou pessoal do seu autor. Vale por si ou não vale. Podemos ter sobressaltos morais com uma obra, o que até a pode tornar mais estimulante. Mas ela não perde nada pelos pecados do autor. A obra tem uma vida própria, uma moral própria, pecados que são só dela e que só por eles deve responder.
O documentário entrega-se, aliás, a um exercício especialmente perverso, que parece querer justificar um movimento censório: encontrar nos filmes uma tentativa de naturalizar o abuso de menores. Indo ao seu fascínio doentio, nunca visto em homens de meia idade, por raparigas de 17 ou 18 anos. A perversidade deste exercício é a de passar a obra, e não apenas o autor, para o banco dos réus. Uma perversidade que levaria à saída das bancas de “Lolita” ou do maravilhoso texto de Luiz Pacheco – “A Comunidade”. Sendo que Pacheco manteve mesmo uma relação amorosa com uma menor e é também disso que fala no texto.
Claro que a conduta política ou moral de determinado autor pode determinar a sua obra. As ideias abjetas de Céline não estão apenas na sua vida, estão na sua obra. A obra de Leni Riefenstahl é em grande parte propaganda nazi. Nada nos impede de ter uma opinião política ou moral sobre as suas obras. Mas é sobre a obra, independente de quem seja o seu autor. E mesmo o julgamento moral das obras deve ser cuidadoso. A liberdade artística é única porque lhe conferimos a amplitude que nos permite questionar tudo. É nela que ultrapassamos todos os limites. É com ela que, coletivamente, fazemos perguntas a que ainda não podemos responder. Isso acontece graças à exposição, umas vezes autobiográficas outras não, das angústias pessoais dos autores. Por vezes monstruosas.
Como me recordou um amigo, não é por acaso que Polanski volta permanentemente ao confinamento no espaço, a que está condenado há anos: em “O Deus da Carnificina” ou “The Ghost Writer”, por exemplo. Mas isso é a relação do criador com a criatura. Para nós, interessa a criatura. E mal seria que a puníssemos pelos pecados do criador. Podemos julgá-la, mas isso não leva ao seu silenciamento. Levará, quando muito, à revolta, ao sofrimento perante a obra, a um confronto individual com o que temos pela frente. Nunca à censura. Mesmo os apelos para notas introdutórias, com avisos morais, me deixam arrepiado. Um livro ou um filme podem precisar de contexto para serem compreendidos, o que não costuma ser bom sinal. Não precisam, quando se dirigem a adultos, de “parental advisory”.
Tenho pouca paciência para a conversa sobre a “cancel culture”. Entrámos naquela fase em que se mistura tudo e usa-se a expressão “cancelamento” para deslegitimar qualquer crítica a uma obra de arte, a um político, a um texto de opinião. Estes debates transformaram-se numa charada de vitimizações mútuas. Os que aplaudiram a prisão de Pablo Hasél sentem-se asfixiados pelo cancelamento viral, os que exigem liberdade para Pablo Hasél hesitam em ser intransigentes com a liberdade artística de suspeitos de abusos sexuais. Não há nada de novo nisto. Nem à esquerda, nem à direita. O inferno é a palavra do outro.
Para mim, o princípio em relação à produção artística é relativamente simples: todos temos direito a ler, ouvir e ver o que entendemos; todos temos o direito a criticar violentamente o que lemos, ouvimos e vemos (apesar de não gostar dessa estética e dessa ética, até temos o direito de queimar livros, se forem nossos); todos temos o direito a não ler, a não ouvir e a não ver o que não queremos e pelas razões que quisermos; ninguém tem o direito a tentar, de alguma forma, impedir que outros leiam, oiçam e vejam o que querem. Os limites são os que existem na lei e muito poucos se aplicam à arte. A única coisa ilegítima na arte é cometer um crime para a produzir.
Apesar de não cair na esparrela da conversa do “cancelamento”, que tenta misturar todos os debates para anular a critica contrária, sinto os ventos do moralismo pelas costas. E sei que se os puritanos fossem bem sucedidos, nada sobreviveria. Nenhum poeta maldito resistiria a uma manifestação de ativistas munidos de um manual literário de boas-maneiras.
Interessa-me tanto o caso de Dylan Farrow como qualquer outro caso de abuso sexual de menores, de alienação parental (que o documentário tenta negar que exista, sequer) ou seja o que for que esteja em causa. Muito, pelo drama concreto e pela lei. Nada, do ponto de vista artístico e cultural. Nada do que tenha ou não acontecido naquele sótão tem alguma coisa a ver com “Annie Hall”, “Manhattan”, “Zelig”, “Rosa Púrpura do Cairo”, “Manhattan” ou “Ana e as Suas Irmãs”. Para quem julgue que desculpo Allen por algum fascínio artístico, gosto de muitos filmes dele, mas nenhum está nos meus vinte preferidos. Até acho que, a dada altura, encontrou uma fórmula e durante algum tempo viveu disso. Nisso, a sua obra merece um julgamento moral severo. No resto, é ele o julgado. Nos tribunais, que é onde os países onde vigora o Estado de Direito fazem os julgamentos.
«Um vírus mortal assolou o mundo, por volta de 1910, sendo responsável por epidemias que se tornaram eventos comuns, principalmente nas cidades, durante os meses de verão, deixando milhares de crianças e adultos paralíticos.
Foi a descoberta, em 1952-55, da vacina, por Jonas Salk, que reduziu a incidência da doença de centenas de milhares de casos para menos de um milhar por ano e, no início dos anos sessenta, Albert Sabin, médico polaco, descobriu uma vacina oral, as célebres gotinhas, que ainda hoje fazem parte do plano de vacinação e que quase conseguiu eliminar a poliomielite em todo o mundo. Este médico renunciou aos direitos de patente, o que facilitou a utilização da vacina em todo o Mundo.
Nessa altura trabalhava-se em nome da ciência e da humanidade.
Certamente, os CEO (Chief Executive Officer) das multinacionais farmacêuticas diriam agora “que a investigação de novos fármacos é muito dispendiosa e com a existência das patentes podem recuperar os custos e continuar a inovar”.
A investigação é de facto muito cara. Contudo, as grandes empresas farmacêuticas deixaram há muito de fazer investigação e compram-na às universidades ou empresas mais pequenas.
Foi o que se passou com as vacinas contra a covid-19, com a agravante que a investigação foi paga com dinheiros públicos.
O problema é que a Big Pharma não quer só recuperar os custos da investigação, mas alcançar grandes lucros a curto prazo.
Os CEO contestam e afirmam que fixam o preço tendo em conta o “valor” que os seus produtos têm, um grande valor terapêutico, e salvam muitas vidas, e é por isso que têm de ser caros.
Interrogamo-nos assim: quanto é que custa uma vida? Todas as outras medidas realizadas nos hospitais, no ambulatório e na saúde pública, até mesmo a oferta da água potável, também salvam vidas e o seu preço não é inflacionado.
As empresas aumentam os preços das suas mercadorias convertendo-as em produtos financeiros para especulação nos mercados.
Os maiores acionistas de muitas das grandes empresas farmacêuticas, que são empresas de investimento, geram ativos importantes como os fundos de pensões, a dívida pública, os patrimónios pessoais, etc., com valores várias vezes superiores ao nosso PIB.
No meu entender, a isto se deve os preços dos medicamentos e a proteção das patentes por oito a 12 anos.
Se não mudarmos este modelo não vamos usufruir das inovações terapêuticas no futuro próximo, como agora os países mais pobres não irão receber suficientes vacinas contra a covid-19.
O monopólio das patentes é muito bom para as empresas, mas muito mau para os serviços de saúde.
A afirmação de políticos e comentadores mediáticos de que a União Europeia devia ter pago mais às grandes empresas farmacêuticas com a frase “o barato sai caro" é, sem dúvida, uma inversão de valores. Estes deveriam, sim, defender as propostas da OMS de suspensão das patentes.
Segundo as Nações Unidas, “milhões de pessoas são deixadas para trás quando se trata do acesso aos medicamentos e tecnologias que podem assegurar a sua saúde e bem-estar. O fracasso em reduzir os preços dos medicamentos patenteados está a dar como resultado que a milhões de pessoas se lhes negue o tratamento para salvar a sua vida em doenças como a sida, tuberculose, malaria, hepatites virais, doenças não contagiosas e doenças raras (High Level Panel, 2015)”. Impõem-se exigir, pelo menos, a suspensão das patentes durante a pandemia.
Numa carta dirigida ao governo, em novembro passado, a Associação de Médicos pelo Direito à Saúde (AMPDS) associou-se a mais de 370 organizações internacionais exigindo a limitação da atribuição de patentes sobre as vacinas e medicamentos para a covid-19, tendo em conta os seus valores de defesa intransigente do direito à saúde, como um direito humano fundamental e da dignidade profissional dos médicos.
No entanto, vários governos, entre os quais os dos Estados Unidos, Japão e outros países ricos, votaram contra a suspensão das patentes das vacinas para a covid-19 durante a pandemia, numa reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Sendo as vacinas e os medicamentos um bem público, de carácter universal, instamos o nosso governo para que vote um plano de suspensão das patentes nas vacinas contra o SARS-CoV-2, na próxima reunião da OMC.
Igualmente, alertamos para a necessidade de uma cobertura universal da vacina, não deixando para trás uma grande parte da população dos países pobres, de acordo com as posições da União Europeia e das Nações Unidas, particularmente a da Organização Mundial da Saúde.»