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segunda-feira, 19 de abril de 2021

A dificuldade em ter uma vida decente

Posted: 18 Apr 2021 03:49 AM PDT



 

«É difícil vislumbrar algo mais grave — a pobreza. E, no entanto, a maior parte encolhe os ombros perante essa realidade. Ou continua a pensá-la através de associações clássicas, como se fosse só sinónimo de sem-abrigo, pessoas na penúria completa, empregados com salários miseráveis, desempregados duradouros, deficientes, doentes, idosos com baixas pensões ou pessoas e famílias em contextos de vulnerabilidade, que perante ocorrências imprevistas são atiradas para essa situação.

Esta semana foi comunicado mais um estudo (A Pobreza em Portugal – Trajectos e Quotidianos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos) que aborda o assunto e entre as diversas conclusões diz-se que uma boa parte das pessoas em posição de pobreza tende a relativizar essa disposição, como mecanismo de defesa psicológica, recorrendo a comparações com o seu próprio passado ou com outros em situações semelhantes. E há também, claramente, envolvido neste tipo de procedimento, a vergonha. E muitas vezes o sentimento de culpa. Uma acumulação de violências. É-se pobre. E é complexo falar disso.

O que nos pode conduzir para uma realidade paralela, mais difusa, menos clássica, não comprovada por nenhuma estatística, mas que se vai impondo e que a pandemia veio expor ainda mais. Ao lado desta pobreza de teor tradicional, emergem novas disposições, com cada vez mais pessoas vulneráveis no limiar de situações de grande desconforto. Não são pobres no sentido clássico, mas constituem uma massa seres humanos (precários ou com ordenados miserabilistas, ligados às mais diversas actividades, do ensino à comunicação ou serviços) incapazes de ter uma vida decente, escondendo-se tantas vezes atrás da cortina da vergonha social, sendo até encorajados entre os seus pares em não revelar a sua posição fragilizada. Contam ansiosamente os tostões para pagar a renda da casa, a saúde, a electricidade, a comida, a educação e a pensão dos filhos e nem sempre chega. Essa é a verdade: ter uma vida decente, sendo um cidadão modelar, com trabalho regular e honesto, sem ser uma actividade predadora, tornou-se numa genuína quimera.

E o mito perdura: que essa situação é apenas responsabilidade individual. Não trabalhou o suficiente, ou não foi perspicaz, ou foi gastador. Histórias. A meritocracia é um sofisma que convém aos que estão bem na vida do ponto de vista material, porque lhes reforça o seu suposto esforço e importância, mas nesse movimento esquece-se os que igualmente vigoraram, estudaram e têm valia, mas que apesar de trabalharem com brio não saem de uma espiral onde a mobilidade social vai sendo inexistente.

Vivemos no interior de um sistema socioeconómico falhado, onde a precariedade se naturalizou, incapaz de uma redistribuição de recursos eficaz, seja através de salários, ou das transferências do Estado, e ainda por cima culpabilizamos os que estão prostrados no chão ou fala-se com desdém da situação. O desapreço com que alguns discorrem sobre lógicas de protecção social diz muito de um país servil com os poderosos e altivo com os desprotegidos. Isso é que nos devia fazer corar de vergonha.

Os menos favorecidos não querem esmola, querem dignidade, e têm direito a ela. Vale a pena continuar a batalhar pela protecção social ou por um rendimento mínimo adequado que assegure uma existência decente para todos, mas, em simultâneo, quanto mais a própria ideia de pobreza se vai transformando e disseminando, é preciso revolver nas lógicas reprodutoras que provocam desequilíbrios e desigualdades gritantes. Há muita gente que não está interessada nisso. Mas sem isso nada de essencial mudará.»

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Os três julgamentos de Sócrates. E uma sentença exemplar

 

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 16/04/2021)

Miguel Sousa Tavares

Desde que o sorteio determinou que, ao contrário da vontade justiceira de quase todos — incluindo do juiz Carlos Alexandre —, a instrução do Processo Marquês caberia a Ivo Rosa, desencadeou-se sobre este juiz a mais feroz campanha de desacreditação pessoal a que já assisti. E não apenas nos media que servem de caixa de ressonância ao DCIAP e ao Ministério Público (MP), mas nos próprios meios judiciais, com destaque para o Tribunal da Relação de Lisboa — o mais desprestigiado e manchado dos tribunais portugueses —, onde desembargadores, muito aquém tecnicamente de Ivo Rosa, se deleitaram em contrariar decisões instrumentais dele, fazendo-o, por vezes, em termos de deliberada e pública humilhação.

O ambiente estava, pois, preparado para que, ocorrendo qualquer outra decisão instrutória de Ivo Rosa que não aquela que o MP, os justiceiros dos media e a opinião pública há muito tinham estabelecido como a única aceitável, Ivo Rosa fosse levado ao cadafalso e erigido até em coveiro não só da justiça mas do próprio regime democrático. Não espanta que o faça a turbamulta dos abaixo-assinantes que acham que se pode sanear um juiz por petição popular, como nas ditaduras, ou os sectores da direita e extrema-direita que usam a corrupção como pretexto propagandístico e a incapacidade da justiça de ser eficaz e pronta como sinal da inviabilidade do sistema democrático. É uma agenda política que só os idiotas e os ingénuos não enxergam. O que me espanta é que gente que tinha obrigação de se guiar por outros padrões, menos imediatistas e menos histéricos, até mesmo gente com formação jurídica não tenha resistido também a cavalgar a onda populista em lugar de se dar ao trabalho de estudar com atenção o quadro jurídico em que se movimentou o juiz. Por todos, cito Marques Mendes e a sua frase de uma extrema gravidade: “Este juiz é um perigo à solta.”

Ora, este juiz produziu uma “sentença” exemplar. Mas, para melhor a compreender, é preciso notar que José Sócrates, de facto, estava e está a ser julgado em três planos diferentes, mas que, por via das funções que exerceu e no período em que as exerceu, se confundem no Processo Marquês: um julgamento político, um julgamento criminal e um julgamento ético.

No julgamento político (de que Ivo Rosa não se ocupou, nem se podia ocupar, no seu despacho instrutório), Sócrates era acusado de ter levado o país à ruína, e só por isso muitos gostavam de o ver na prisão. Concordo que a governação de Sócrates contribuiu para levar o país à ruína, mas entendo que é uma desculpa de má consciência colectiva sustentar que o fez sozinho, que foi a sua governação sozinha que acrescentou 60 ou 70 mil milhões à dívida do Estado. Aliás, quando o FMI é chamado por Sócrates, em 2011, não era apenas o Estado que estava falido, mas o país inteiro: famílias, empresas, bancos, tudo estava endividado por anos sucessivos em que, por muito que isso custe ouvir, de facto todos tinham vivido acima das suas possibilidades. Quanto ao endividamento público, o facto é que Sócrates, o despesista, foi reconduzido em eleições pelo mesmo povo que agora o acusa de ter arrui­nado o país, e, nessa altura, houve uma única voz que, em vão, chamou a atenção para o que se estava a passar: Manuela Ferreira Leite — que, sintomaticamente, perdeu as eleições e perdeu o PSD. E recordo que, quando, em 2009, Teixeira dos Santos, alarmado com o crescimento do défice e da dívida, quis puxar o travão, vieram “instruções superiores” de Bruxelas para fazer exactamente o contrário — o que conduziria ao colapso das finanças públicas de Portugal, Grécia, Espanha, Irlanda e Itália. E enfim, para quem já não se lembre, houve o célebre PEC IV, quando a nova orientação de Bruxelas passou a ser a inversa. Lembram-se o que era, na sua essência, o PEC IV, que Bruxelas já tinha aprovado? Era um plano justamente para tentar conter o caminho para o abismo, cortando na despesa pública, subindo alguns impostos e tentando assim evitar a chamada da troika. Votaram contra o CDS e o PSD, porque, chumbado o plano, caía o Governo e lhes cheirava a poder; e votaram contra o PCP e o BE, mesmo sabendo que estavam a abrir caminho à direita e à troika. A versão de Sócrates culpado único da ruína do país tem mais de catarse geral do que de verdade histórica.

O julgamento criminal de José Sócrates era, assim, o único de que agora se devia ocupar o despacho de pronúncia. Não sendo tecnicamente um julgamento, funcionou, de facto, como um julgamento em primeira instância e foi eloquente para que muitos, que tenham estado atentos e de boa-fé, possam ter percebido, finalmente, o fundamento das acusações. Em suma, o MP assentou toda a fase investigatória e toda a acusação em duas presunções: todo o património de Carlos Santos Silva — o dinheiro que transferiu da Suíça, a casa de Paris, etc. — era, de facto, de José Sócrates; e, sendo de Sócrates, só podia ter-lhe advindo de corrupção. A partir daqui, o MP prendeu Sócrates, Santos Silva e o motorista José Perna; prendeu para investigar. E pôs-se à procura dos corruptores, pelo chamado método de “pesca de arrasto” (a certa altura, o “Correio da Manhã” noticiou que todos os negócios entre o Estado e privados durante os anos de governação de Sócrates estavam sob suspeita do MP). Finalmente, fixou-se em três — Vale do Lobo, Grupo Lena e PT/BES —, e à roda de cada um deles elaborou as tais construções a que Ivo Rosa chamou “fantasiosas”, seguramente sedutoras e tentadoras (sobretudo para quem se atreveu a tentar fazer o julgamento de todo o regime num só processo), mas que tinham todas elas um pequeno problema: total ausência de provas, directas ou indirectas, e até mesmo de indícios de crime suficientemente fortes para justificarem uma ida a julgamento. Quem se tenha dado ao trabalho de ler, ainda que ao de leve, as mais de 4000 páginas da acusação, verificou que ali não havia uma confissão, um testemunho, uma escuta, um documento, um papel que pudesse sustentar qualquer uma das teses do MP, a não ser a “convicção” de Paulo Azevedo de que a OPA da Sonae à PT falhou não porque uma maioria de accionistas achasse o preço barato mas porque Sócrates estava a soldo do BES (apesar de não ter usado a golden share do Estado para votar contra a OPA) e o testemunho comprado de Helder Bataglia (a quem antes o MP conferira o estatuto de bandido internacional), cuja falta de credibilidade Ivo Rosa demonstrou facilmente.

Assim, chamado a julgar segundo a lei e a sua consciência, como está estabelecido, o juiz começou por verificar que todos os crimes de corrupção estavam prescritos, conforme parece ser o caso, e os outros caíam por lhes serem dependentes e instrumentais. Se tivesse ficado por aí, teria sido mau para todas as partes. Porém, ele deu-se ao trabalho de analisar a substância das acusações, mesmo que isso não vie­sse a ter resultados jurídicos práticos. O que disse foi: “Mesmo que os crimes não estivessem prescritos, eu não levaria estes arguidos a julgamento, porque não há indícios de que tenham praticado os crimes de que são acusados.” É a sua opinião, que explicou porquê, fundamentadamente e tendo considerado não apenas os argumentos de uma parte mas de ambas. Pode estar errado, e certamente que haverá opiniões diferentes, mas cumpriu o seu papel de juiz.

Restava, enfim, o julgamento ético de José Sócrates, e foi aqui que Ivo Rosa surpreendeu tudo e todos. Ele podia ter ignorado a questão, visto que os tribunais não julgam a ética, mas o direito. Ou podia, como muitos juízes fazem, não ter condenado por razões éticas, mas ter dado um sermão de moral ao arguido. Mas Ivo Rosa foi por um terceiro caminho. Começou por contabilizar o que Sócrates recebeu de Santos Silva, em dinheiro e em espécie, quando e depois de ser PM: 1,8 milhões, e não apenas os 600 mil que ambos reconheciam. E, depois, disse o que todos pensamos: não tendo sido provado nem indiciado que o dinheiro do amigo fosse seu, também não acreditava que o dinheiro que ele lhe deu fosse apenas empréstimos; não acreditava que, para lho pedir, tivesse Sócrates de recorrer a intermediários e de falar de “livros”, “fotocópias”, “envelopes” ou outras palavras de código; não acreditava que ele fosse arrendatário e pagasse renda pela casa de Paris; não acreditava que a sua mãe tivesse um milhão de contos em notas guardado em casa, etc., etc. É minha convicção, disse o juiz, que o senhor foi corrompido pelo seu amigo, durante anos e a troco da sua influência como PM. Esse crime está prescrito, mas não os de branqueamento de capitais e falsificação de documentos. E, por esses, responderá em juízo.

E eis como a retumbante e inevitável vitória de Sócrates sobre o Ministério Público se transformou numa inesperada e humilhante derrota às mãos do juiz que diziam feito com ele.

Completamente sozinho, trabalhando em silêncio e em segredo, como não é habitual, ostracizado pelos seus pares, perseguido pela imprensa justiceira e pelos chacais à solta nas redes sociais, Ivo Rosa prestou um inestimável serviço à Justiça e ao Estado de Direito. Podem agora afadigar-se em destruir o seu trabalho até não ficar pedra sobre pedra, arrastar durante anos ou décadas a Operação Marquês nos tribunais até já ninguém se lembrar que questão lateral é que se discute, podem não querer ver as lições gritantes que se deveriam tirar desde já da forma como tudo foi conduzido desde o princípio e podem linchar o juiz na praça pública ou queimá-lo subtilmente em fogo lento corporativo. Mas nada apagará o serviço que ele prestou ao país.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

“Operação Marquês”: o julgamento do sistema judicial

 

por estatuadesal

(Boaventura Sousa Santos e Conceição Gomes in Público, 15/04/2021)

O processo Operação Marquês coloca a justiça e o Estado de direito numa encruzilhada dramática, da qual, enquanto sociedade, temos que sair bem. As elites do poder judicial e do poder político têm que estar à altura e não nos podem falhar. Mas, nós, sociedade, instituições académicas, meios de comunicação social, também não podemos falhar o escrutínio democrático e o papel de aprofundar e não estilhaçar o Estado de direito. Em nenhum dos campos pode haver desistência.


O processo Operação Marquês destinava-se a ser o processo que iria testar os alicerces do Estado de direito e em que a justiça mais arriscaria a sua legitimidade social e política. Exigia-se, por isso, que o poder político e o poder judicial compreendessem que todos os holofotes (benignos, malignos, construtivos, destrutivos do Estado de direito) iriam incidir sobre ele. Lamentavelmente, não compreenderam. E assim explodem com estrondo muitas das fragilidades do funcionamento da justiça e da sociedade. Num momento em que forças da extrema-direita, ou por esta arrastadas, pretendem criar um ambiente de pânico moral e institucional conducente a uma crise política, é imperioso que nos interroguemos serenamente e nos mobilizemos democraticamente em redor dos temas fundamentais.

O primeiro é que as ineficiências e as perplexidades da ação da justiça não podem colocar em causa pilares fundamentais do Estado de direito, como a independência e a autonomia dos juízes. Em democracia, as decisões dos tribunais, além da avaliação pela via do recurso, devem ser criticamente escrutinadas pela sociedade no seu conjunto. Mas são totalmente inaceitáveis abaixo-assinados e outras atitudes persecutórias contra juízes por tomarem decisões que não agradam a determinados grupos. Os juízes de instrução têm um papel de enorme relevância na salvaguarda de direitos, liberdades e garantias. E, todos os dias, nos tribunais portugueses, esses juízes tomam decisões que contrariam despachos e requerimentos do Ministério Público. Muitas delas, designadamente em criminalidade económica grave, já ditaram o fim de muitas acusações. E nunca, como agora, tal clamor persecutório se levantou. O que se procura é enfraquecer a democracia e descredibilizar a justiça. E o poder judicial tem obrigação de rejeitar inequivocamente a ideia de que deve ser “justiceiro” em determinado caso concreto.

O segundo tema é o de que as debilidades sistémicas, patentes neste caso, não podem ser resolvidas por via da “fulanização” da justiça. Há muito que está instalada na opinião pública a perceção de bipolaridade do Tribunal Central de Instrução Criminal, com dois juízes com leituras do seu papel na instrução criminal diametralmente opostas: um em quase permanente conflito com o Ministério Público e outro muito próximo deste. Essa perceção é corrosiva do Estado de direito, com os cidadãos a encararem a ida dos processos a este tribunal como uma espécie de lotaria. Os órgãos de governo do judiciário têm a obrigação de estar atentos a estes fenómenos, que não são inéditos nos nossos tribunais, e encontrar soluções organizacionais. Tais soluções, além de terem respaldo legal e constitucional, devem ser democraticamente escrutináveis. Em caso algum podem permitir a suspeição de que são feitas em função do “estilo” de determinado juiz.

O terceiro tema diz respeito à relação entre hipermediatização da justiça e confiança social. Na Operação Marquês, a mediatização da justiça atingiu níveis nunca antes alcançados. Desde a detenção do ex-primeiro-ministro, quase transmitida em direto pelas televisões, até às constantes violações do segredo de justiça e do direito à presunção da inocência, todo o processo se foi desenrolando na praça pública e aí foi julgado. Se a mobilização mediática permite a instrumentalização da opinião pública, também coloca a justiça sob maior escrutínio e pressão. E se esta continuar a conviver com a ideia de que pode promover ou aceitar a mediatização para disfarçar fracassos, ineficiências ou despreparos, será alvo fácil de instrumentalização por parte dos poderosos grupos que dominam a comunicação social.

O quarto tema diz respeito a uma “velha” fragilidade do funcionamento da justiça, a ineficácia da ação do Ministério Público. Há muito que se discute entre nós a qualidade, a robustez e a eficiência das acusações nos processos de criminalidade económica complexa. Evidenciam-se sobretudo três problemas: a deficiente articulação entre polícias e Ministério Público; falta de formação específica: a colocação dos atores judiciais nesses organismos deve ser precedida de formação especializada, como a formação inicial não foi orientada para estes casos, a formação contínua deve ser obrigatória; falta de visão estratégica da investigação, o que permite a insistência em megaprocessos e provas de baixa robustez ou de “arrasto”.

Apesar de estes problemas serem reconhecidos e de serem proclamadas orientações para os resolver, aí está, diante dos nossos olhos, o mesmo padrão de investigação, com a criação de megaprocessos, provas frágeis, nulas, na sede de tudo acusar e julgar. A Procuradoria-Geral da República tem de impor todas as mudanças organizacionais necessárias para que se crie um padrão de eficiência e de eficácia na investigação a este tipo de criminalidade, de modo a que, em prazos razoáveis, haja arquivamento ou acusação sólida e fundamentada. Aliás, é importante lembrar que o Ministério Público tem experiência de sucesso, com a constituição de equipas fortes, capazes de imprimir uma grande dinâmica, coesão, celeridade e eficácia à investigação.

O quinto tema, também ele “velho”, é a morosidade judicial. É dramático percebermos que o sistema de justiça e, em particular, o Ministério Público, tenha endogeneizado a morosidade e a ineficiência e conviva bem com ela. O quadro jurídico é conhecido, são igualmente conhecidas as dificuldades de obtenção de prova neste tipo de criminalidade, bem como as demoras e, por vezes, a falta de cooperação de instituições nacionais e internacionais. Essas condições afetam as investigações em todos os países. Daí que a estratégia de investigação seja crucial. No caso Marquês, a pronúncia veio confirmar a solidez dos indícios de crimes graves de branqueamento de capitais. A ação da justiça não pode ser criar megaprocessos (quiçá para deleite dos investigadores), com milhares de páginas, que obviamente irão tornar impossível qualquer decisão célere. A justiça criminal tem um propósito: acusar ou arquivar, condenar ou inocentar, mas tem que o fazer em tempo útil e razoável. A morosidade destes processos põe fatalmente em causa a credibilidade e legitimação social da justiça.

Há um padrão a que a justiça nos habituou nestes casos: os fortes indícios da prática de vários crimes vão-se esfumando, na fase de instrução ou de julgamento, seguidos de enredos intermináveis, com frequência, até à prescrição. E há também que ter em conta as consequências financeiras. Basta ver o que está a acontecer com a proximidade de prescrição das contraordenações aplicadas a Ricardo Salgado. Nada que não tenha acontecido no passado. Recordemos a prescrição do processo que o Banco de Portugal moveu contra Jardim Gonçalves e que o ilibou do pagamento de uma coima de um milhão de euros. Que lições tiraram o poder judicial e o poder político de todos esses casos? Aparentemente, nenhumas.

O caso Marquês e o caso BES, na sequência de outros casos de ribalta mediática de criminalidade económica, confirmam um padrão de intervencionismo do Ministério Público: desassombro em face do poder político e financeiro seguido do anticlímax da “montanha pariu um rato”. Ninguém está acima da lei e, por isso, não pode esperar impunidade por ter poder e dinheiro. Esse é um ganho inestimável da nossa democracia. Mas está a perder-se sem investigações estrategicamente eficientes e eficazes.

Finalmente, o sexto tema é o de que as exigências feitas ao sistema de justiça não podem ocultar a enorme responsabilidade do poder político. Compete a este, nomeadamente, medidas e meios que fortaleçam a ação do judiciário e desenvolvimento de estratégias robustas de prevenção de práticas corruptivas. No que respeita a estas últimas: instituições de controlo e de supervisão eficientes e eficazes; desburocratização de procedimentos de controlo; leis que não permitam “fugas"; restauração da ética de serviço público; medidas que ponham fim à promiscuidade entre o poder político e o poder económico agravada pela vertigem neoliberal. 

O processo Operação Marquês coloca a justiça e o Estado de direito numa encruzilhada dramática, da qual, enquanto sociedade, temos que sair bem. As elites do poder judicial e do poder político têm que estar à altura e não nos podem falhar. Mas nós, sociedade, instituições académicas, meios de comunicação social, também não podemos falhar o escrutínio democrático e o papel de aprofundar e não estilhaçar o Estado de direito. Em nenhum dos campos pode haver desistência.

Coordenadores do Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Sócrates: porquê tanto ódio?

por estatuadesal

(Maria Antónia Palla, in Público, 15/04/2021)

(Este texto, escrito pela mãe de António Costa, remeteu-me para aquilo que considero ser das piores vilanias e primitivismo da natureza humana: apedrejar até à morte alguém caído em desgraça. Como no circo romano a turba quer ver sangue e urra o seu desagrado quando Imperador ergue o polegar e poupa a vida ao gladiador.

Mais deplorável ainda é ver que, muitos dos que mais querem esquartejar Sócrates, foram dos que mais lhe puxaram o lustro aos sapatos Vuitton e lhe poliram os botões dos fatos Armani quando ele teve poder.

Estátua de Sal, 15/04/2021)


Desde a sua chegada a Portugal, José Sócrates tem sido objecto de um tratamento impensável num país que recuperou a Democracia após meio século de ditadura.

Quando, no dia 21 de Novembro de 2014, José Sócrates desembarcou do avião que o trouxera de Paris e encontrou a polícia à sua espera, bem como os meios de comunicação social que haviam sido avisados da sua chegada, era fácil a qualquer observador concluir que o espectáculo estava montado.

O desenrolar da acção seguir-se-ia. O ex-primeiro-ministro ficou detido com o argumento de que a sua libertação comportava o perigo de fuga. Argumento bizarro, porque não parece lógico que alguém que pretenda fugir à justiça do seu país regresse a ele de livre vontade.

Até essa altura, eu não nutria especial simpatia por Sócrates. Daí ter aceite ser mandatária nacional da candidatura de João Soares a secretário-geral do PS, em 2005. O seu adversário era José Sócrates, que saiu vencedor com considerável vantagem.

Posteriormente, foi durante um seu Governo que, em 2006, foi encerrada a Caixa de Previdência dos Jornalistas, à qual, como presidente, dediquei dez anos da minha vida e que constituiu para a classe jornalística uma considerável perda, sem que o Sistema de Saúde em Portugal tenha retirado qualquer benefício dessa decisão.

Não tinha, pois, qualquer razão pessoal que motivasse a minha mudança de opinião a respeito do ex-primeiro-ministro. Foi o meu conceito de liberdade e de justiça que, por imperativo de consciência, me levou a manifestar a José Sócrates a minha solidariedade.

Desde a sua chegada a Portugal, Sócrates tem sido objecto de um tratamento impensável num país que recuperou a Democracia após meio século de ditadura.

O período de prisão preventiva que lhe foi imposto ultrapassou o que era normalmente aplicado no antigo regime. O condicionamento de libertação mediante imposição de pulseira electrónica foi mero propósito de humilhação. Não contavam com a personalidade e a coragem de um homem que, ao vexame a que o queriam sujeitar, preferiu permanecer na prisão. O seu orgulho pessoal acabou por vencer a cobardia dos que pretenderam domesticá-lo.

Durante sete anos, lutou pelo que considera a sua verdade. Resistiu ao isolamento social. Enfrentou sucessivas campanhas de manipulação da opinião pública. Finalmente fez-se alguma justiça. E aí os seus adversários perderam a cabeça.Há alguns séculos atrás gritariam “Sócrates para a fogueira!”. Agora dizem-no de forma mais sofisticada. Mas queimam à mesma uma pessoa, destruindo o seu passado, infectando o seu presente, roubando-lhe o futuro

Nunca, na minha longa vida, assisti em directo a manifestações de ódios tão profundas como as que tenho observado através das televisões. Entrevistas, debates, só com pessoas da mesma opinião. O contraditório não existe. As regras mais primárias do jornalismo foram enterradas.

Há alguns séculos atrás gritariam “Sócrates para a fogueira!”. Agora dizem-no de forma mais sofisticada. Mas queimam à mesma uma pessoa, destruindo o seu passado, infectando o seu presente, roubando-lhe o futuro.

O que está, quem está por detrás desta demência? Até onde se irá parar? Detentores de um poder que julgam eterno, não lhes chega liquidar um homem. Atingem agora o juiz que cumpre o seu papel.

O juiz Ivo Rosa, na observância da lei, deu como prescrito o que tinha de ser prescrito. Sobre ele abatem-se já os gritos histéricos de jornalistas e comentadores de serviço, sedentos de popularidade, clamando contra a prescrição do crime, passado o limite do tempo de investigação.

Na opinião destes visionários do mal, todos nós, a partir de denúncia de um particular ou do próprio Estado, estaríamos sob a ameaça de prisão perpétua, acusados de crimes para os quais não se encontravam provas. A Ditadura chamou-lhe “medidas de segurança”.

Haverá melhor contributo para o regresso a um passado que sonhamos enterrado na História?

No dia 27 de Abril de 1974, quando me sentei em frente da minha velha máquina para contar aos leitores a Revolução que os meus olhos viram, bati o texto e acabei assim: “Agora que temos a liberdade, o que vamos fazer com ela?” Passaram 47 anos. Continuo à espera da resposta. Como os contestatários de Maio de 68, direi que “não sei o que quero, mas sei o que não quero”. De uma coisa estou certa: Justiça sem compaixão não é Justiça. 

Sócrates e a canalhice que acaba por ajudar o PS

Posted: 15 Apr 2021 03:35 AM PDT

 


«Acho normal que a TVI tenha decidido entrevistar José Sócrates. Acho que o próprio tem todo o direito a defender-se no espaço público, já que no espaço público tem sido acusado. Mas, como devem imaginar, não pretendo analisar a sua defesa. Já a fez na fase de instrução e, neste momento, em que todo o processo é público, é para aí que se remetem todos os factos. E para a decisão do juiz Ivo Rosa, bombo da festa da última semana, mas que, na minha opinião, até deixou José Sócrates mais próximo de uma condenação do que o trabalho do Ministério Público prometia.

O Sócrates que ontem vimos foi o Sócrates de sempre. E isso é, por si só, surpreendente. A mesma arrogância, a mesma agressividade, o mesmo animal feroz. Tendo em conta tudo o que lhe aconteceu, esta constância inquebrantável recorda o perfil narcísico de Sócrates. Isso e a ideia que continua a alimentar em torno de uma cabala política, especialmente difícil quando hoje somos liderados por um primeiro-ministro do seu antigo partido, com uma agenda política não muito diferente da sua.

É verdade que a defesa de José Sócrates fica mais fácil perante a insustentável leveza das acusações de corrupção concretas que o Ministério Público foi acumulando no processo. Mas é perante a sua relação com Carlos Santos Silva que fica evidente que estamos perante um mitómano. O mitómano não se limita a acreditar nas suas mentiras. Está absolutamente convicto que todos vão acreditar nelas. Faz, aliás, um exercício interessante: quando o juiz lhe dá razão na falta de indícios trata isso como um julgamento sobre os factos e não o que é: falta de indícios que cheguem para um julgamento. Quando o juiz decide que há indícios para ir a julgamento é só isso mesmo. A vitimização agressiva é uma arma típica dos manipuladores mais destemidos (veja-se André Ventura, por exemplo). Mas também ela foi facilitada pela Justiça. A sua prisão à chegada de Paris e transmitida pelas televisões, feita para investigar e não porque alguma coisa investigada fosse suficientemente sólida para o prender, ou todas as dúvidas sobre a escolha de Carlos Alexandre como juiz da fase de inquérito, facilitam-lhe a vida. E, independentemente de quem esteja a ser julgado, devem deixar-nos preocupados.

Mas a parte que me interessa da entrevista é outra. É a final. É a política, que não tem lugar nas salas de tribunal. É aquela em que falou do Partido Socialista. Essa, usando os seus próprios termos, é a canalhice suprema. Aqueles a quem omitiu as suas relações de dependência financeira são traidores. Aqueles a quem mentiu vezes sem conta, em pormenores da sua vida e dos seus negócios, são canalhas. O partido que usou para beneficiar com o poder quase lhe deve um pedido de desculpas. Sócrates é, na sua mitomania e megalomania, no seu narcisismo e amoralidade, incapaz de distinguir a vítima do agressor, o abusado do abusador. Ele é a vítima de todos aqueles de quem abusou. É credor de todos a quem deve um pedido de desculpas.

José Sócrates instrumentaliza todos os que dele se aproximam. Não hesita em recorrer à memória de Mário Soares, assim como não hesitou em usá-lo no fim da sua vida, colando um dos fundadores da democracia à sua vileza. Não hesita em atravessar o Atlântico para enganar mais uns, quando deste lado já não engana quase ninguém, pondo uma política honesta como Dilma Rousseff a dar caução a megalómana comparação com Lula da Silva, um homem que mudou radicalmente o Brasil. E a comparar a Operação Marquês, que irá a julgamento com as garantias que hoje se veem, com a Lava-Jato, que levou o juiz que julgou o ex-Presidente a ministro. Devia perguntar-se porque quase metade do Brasil apoia Lula e só meia dúzia de portugueses o apoiam a ele. Saberá disso?

José Sócrates não compreende, porque não tem consciência do que é aos olhos de quase todos, mas prestou ontem um grande serviço ao PS. E de todos, o que mais ganha, porque vai a votos brevemente e foi o especial visado, é Fernando Medina. Bem aborrecido terá ficado Carlos Moedas com este momento de campanha eleitoral. Sócrates não o sabe porque, sendo megalómano, acredita que os seus ataques ainda podem fazer estragos. Não faz ideia que é um ativo tóxico, o que não deixa de ser perturbante.

Nota: Maria Antónia Palla escreveu esta quinta-feira, no “Público”, um texto sobre José Sócrates que considero absurdo. Talvez seja inconveniente para António Costa, sobretudo num momento em que Sócrates lhe deu este bónus, e não acredito que a jornalista não tenha consciência desse risco. Mas Maria Antónia Palla é e sempre foi uma mulher livre, que nunca subalternizaria a sua posição aos interesses de homem nenhum, fosse pai, marido ou filho. Diz bem dela.»