(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 03/05/2021)
(Daniel, desta vez só posso mesmo bater palmas. Excelente texto, atual, assertivo e panfletário. Dar-lhe-ia vinte valores sem qualquer hesitação. Estátua de Sal, 03/05/2021)
Os direitos que o trabalhador conquistou, e que lhe garantiram um século de liberdade crescente, são apresentados como uma prisão. A competição entre “empreendedores” miseráveis é o seu motor ideológico. E as plataformas tecnológicas, que permitem que se trabalhem 12 horas por dia, 7 dias por semana, ao ritmo do século XIX, para tirar menos de mil euros por mês, são o futuro proposto. Sem proteção na doença, férias, licenças, contratos, horário. O mundo proposto pelos vendedores das maravilhas da escravatura “empreendedora” é tão velho como o que reprimiu a manifestação de Chicago, a 1 de maio de 1886.
Um mundo mudou radicalmente nos últimos 135 anos, desde que a reprimida manifestação em Chicago exigiu a jornada de oito horas diárias. E, apesar das mudanças tecnológicas que deveriam ter libertado tempo para nós, ainda se trabalham 40,2 horas por semana na próspera e desenvolvida União Europeia – 40,8, em Portugal –, se incluirmos horas extraordinárias. Se é verdade que nestes 135 anos, os trabalhadores (agora conhecidos por “colaboradores”, para sublinhar a ausência de vínculos) conquistaram férias pagas, a semana inglesa, o direito à greve, a licença de parto e de doença, a reforma na velhice ou a negociação coletiva, as últimas três décadas foram de retrocesso.
Não há nada mais idiota do que a fé acrítica no desenvolvimento tecnológico. A fé “progressista” na tecnologia substitui a máquina por Deus. Não é a tecnologia que determina que a prosperidade será para todos. Também não é ela que reforça os instrumentos de exploração. É o poder de cada um determinar o uso que será dado a essa tecnologia. É a política. Se os trabalhadores perderam a sua capacidade de defesa e de reivindicação, se deixaram de determinar de forma organizada e consciente as políticas públicas, a tecnologia será usada para os explorar um pouco mais, contribuindo para concentrar as suas vantagens nas mãos de poucos. Se tivessem essa capacidade, ela poderia libertá-los de trabalho alienado e oferecer a todos mais tempo livre com mais rendimento. A tecnologia reforça as tendências que já existem na sociedade. É a política, e não a tecnologia, que decide quem ganha e quem perde com cada desenvolvimento tecnológico.
Assim como é a política que determinará se a generalização do teletrabalho – com enormes riscos para a saúde mental e para as relações sociais – servirá para transferir mais custos do empregador para o assalariado e atomizar e isolar ainda mais os trabalhadores, fragilizando-os; ou se permitirá uma maior autonomia e ganho de tempo para mais pessoas. Na opção pelo teletrabalho, não está inscrita nenhuma das coisas. Mas está inscrita, na relação de poder que hoje existe, a primeira via.
As últimas três décadas resultara num enorme recuo em direitos laborais. Não se tratou de retirar da lei laboral os direitos e garantias que nela constavam, o que também aconteceu. Tratou-se de criar uma realidade paralela que é justificada com o “excesso de rigidez” das leis de trabalho, eufemismo para “excesso de direitos” dos trabalhadores. Ou com a globalização e mudanças tecnológicas, como se o uso a dar a uma e outra coisa estivesse pré-determinado. Um discurso a que foi associada a ética do empreendedorismo: quem aceitar ser um escravo será mais livre. Porque os direitos que o trabalhador conquistou, e que lhe garantiram um século de liberdade crescente – contrato, horário de trabalho, salário, direito a férias e a segurança –, são apresentados como uma prisão que o impede de ser tão rico como aquele para quem trabalha. Os sonhos que se sabem frustrados à partida, alimentados por competição entre “empreendedores” miseráveis, são o motor ideológico da perda de todos os direitos conquistados durante um século.
As plataformas tecnológicas, que permitem que emigrantes e portugueses trabalhem 12 ou 14 horas por dia, sete dias por semana, ao ritmo do século XIX, para tirarem mil euros ou menos por mês, são o exemplo da nova escravatura. Já não são as margens do mercado de trabalho, como quase sempre foi o trabalho imigrante. São o futuro que nos é proposto a todos. Sem proteção na doença, sem férias, sem licenças, sem contratos, sem limites na jornada de trabalho. Como há 135 anos. Mas com a promessa que a um destes empreendedores escravizados pode sair a lotaria. A resistência a isto não são boicotes à utilização destas plataformas, é a organização dos trabalhadores. Como não se fez, na passagem do século XIX para o século XX, não consumido os produtos manufaturados, mas pela construção de sindicatos e por greves. O ator político não é o consumidor, é o trabalhador.
Do ponto de vista político, tudo isto é possível porque a esquerda tem medo de parecer conservadora e ultrapassada. Vai abandonando estas lutas que os que sempre se opuseram a todos os avanços sociais vendem como caducas e anacrónicas. E permite que o que há de mais mofo na sociedade se apresente como novidade. Apesar de usarem as novas tecnologia e a desregulação global como alibi e de se apresentarem com uma novilíngua pejada de eufemismos hipócritas, os vendedores das maravilhas da escravatura “empreendedora” não têm rigorosamente nada de novo ou moderno para oferecer. O mundo que propõem é tão velho e conservador como o mundo que reprimiu a manifestação de Chicago, a 1 de maio de 1886.
Claro que a perda de direitos leva a uma revolta. A estratégia de direcionar essa revolta para imigrantes ou minorias é tão velha que espanta que haja quem ande à procura de explicações para o seu reaparecimento. Sempre foi esse o papel da extrema-direita: escape do poder económico para que o descontentamento poupe os de cima. Nunca teve outra função e, por isso, nunca assustou a elite económica. Em momentos de esgotamento político, como aquele a que assistimos, sempre contou com o seu apoio e financiamento.
A outra estratégia é a de canalizar a frustração dos trabalhadores contra os que ainda tenham alguns direitos. Sejam os mais velhos, com contratos (era o que se fazia há uns anos, alimentando um confronto geracional que já não tem muito a dar porque os mais velhos também já perderam direitos), sejam os trabalhadores do Estado, que estando fora do mercado competitivo e tendo maior capacidade de defesa e de reivindicação, mantêm muitos direitos que deixaram de existir no setor privado. Perante a injustiça relativa (e real), é fácil convencer os que perderam direitos que o caminho é exigir que os outros também os percam, fazendo-os acreditar que são “patrões” (contribuintes) explorados em vez de exigirem o mesmo para si.
As duas estratégias resultam. Mesmo que, intuitivamente, os trabalhadores saibam que a sua vida não melhorará um milímetro por mandarem embora imigrantes que fazem o trabalho que mais ninguém quer, por tirarem apoios sociais aos mais pobres ou por reduzirem os direitos dos trabalhadores do Estado que também deveriam ser seus. Mas não havendo quem lhes proponha melhor, é o que resta.
Diz-se que o problema deste tempo é a radicalização. Não é verdade. A radicalização é retórica e geralmente carente de foco político. O problema da esquerda, que teve um papel central nas conquistas de direitos laborais e sociais no século XX, é ter perdido a sua radicalidade nestas áreas - transferiu-as para outras. E, com isso, permitiu que um discurso ideológico se vendesse como técnico e a exigência de justiça social passasse a ser vista como devaneio ideológico.
Não há, nunca houve, outra forma dos trabalhadores conquistarem alguma coisa que não lhe querem dar que não seja a perturbação da paz social e económica. Só perante ela a concertação e negociação social acontecem. Ninguém dá o que não é obrigado a dar. A questão é se o sindicalismo, ou aquilo a que a ele suceda, descobre novas formas (e novas propostas) para o conseguir. Adaptadas, como o foram os sindicatos nascidos com a industrialização, às modalidades de trabalho e exploração que despontam. Ou se continua a acantonar-se nos poucos a quem as antigas formas de luta ainda podem servir.
O conservadorismo da esquerda não está na defesa dos direitos e garantias laborais. Essa é a radicalidade mais modernizadora que podem oferecer. Está na utilização de instrumentos de luta e resistência que não se adaptaram a este tempo. E que tenderão a ser mais, e não menos, radicais. Claro que não apelo a qualquer tipo de violência. Apelo à imaginação e à subversão