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segunda-feira, 10 de maio de 2021

Vacinas: poia ser uma cimeira social, mas parece que não

Posted: 07 May 2021 03:32 AM PDT



 

«Aquele Land-Rover modificado que transportou o caixão do príncipe Filipe do Castelo de Windsor à Igreja é uma boa metáfora da Europa: é visualmente agradável, sem dúvida, mas aquela lentidão própria de um enterro torna-se exasperante quando há uma profunda crise nas mãos.

Joe Biden já tinha surpreendido bastante com a resposta económica à crise provocada pela Covid enquanto a Europa ainda anda a aprovar os Planos de Recuperação dos respectivos países e o comissário Dombrovski volta a ameaçar o regresso às metas do défice em 2023.

O anúncio do apoio da Administração Biden à suspensão temporária dos direitos das patentes das vacinas contra a Covid – como a Organização Mundial de Saúde, África do Sul, Índia, ex-primeiros-ministros como Gordon Brown têm vindo a pedir – é um passo de gigante no combate a um problema global. Ursula von der Leyen foi tímida a responder a Biden (a Europa iria discutir o assunto) mas Charles Michel foi mais incisivo sobre a bondade da proposta Biden e anunciou que o tema seria discutido na cimeira social do Porto, a jóia da presidência portuguesa.

Mas algum júbilo que o anúncio da administração Biden mais a abertura da Europa provocaram em parte da população global – nomeadamente em África – foi rapidamente arrefecido com o balde de água fria vindo da Alemanha: o motor europeu não está disponível para viabilizar a proposta. Com Merkel à distância e o seu veto antecipado, a oportunidade da cimeira do Porto ser, efectivamente, uma cimeira profundamente social parece comprometida, o que é lamentável. A falta de acesso a vacinas nos países mais pobres é um problema de direitos humanos e os tratados admitem que em situação de calamidade como a que vivemos a suspensão das patentes seja possível. Mas também é um problema para a livre circulação dos “ricos”, coisa que Joe Biden percebeu mas o seu interlocutor telefónico na Europa (que não é von der Leyen nem Michel mas por enquanto ainda é Angela Merkel) não.

Assim sendo, é natural que a declaração do Porto seja agradável – como o Land Rover do príncipe – mas não traga muito de novo. Pôr de pé o pilar europeu dos direitos sociais ou reagir à emergência sanitária global será à velocidade óptima para um enterro.»

 

Onde é que precisamos de liberais e não os temos

Posted: 08 May 2021 03:55 AM PDT

 


«O país está a ficar cheio de “liberais”, do “liberalismo” da moda. A palavra “liberdade” está a ser capturada pela direita mais radical. Confortável nas sondagens, a esquerda do PS, como o centro do PSD, perde todos os dias o debate ideológico. O BE está demasiado mole e autocentrado e o PCP preso num gueto verbal, ambos consideravelmente ineficazes face à crescente agressividade da direita. O único partido com dinamismo político e eleitoral é o Chega. O centro, centro-esquerda e centro-direita está errático e pouco afirmativo. As asneiras acumulam-se em todas as áreas que são de não direita. Em modo tribal, a agressividade dá frutos. A seu tempo, o conforto nas sondagens diminuirá. Aproximam-se tempos de mudança e o número de cegos que não querem ver é cada vez maior.

Falta muito a gente da liberdade, sem aspas, que reaja a todo o caminho que se está a fazer debaixo dos nossos pés. Faltam liberais sem aspas à esquerda e à direita, capazes de serem firmes em defesa da liberdade, muito duros na sua firmeza, mas moderados na acção. E uma das razões por que isso acontece é por medo. Ninguém quer ser alvo da avalanche de insultos, dos processos de intenção, das ameaças que hoje pululam nas redes sociais e nas caixas de comentários. Não sabem onde está tudo isto? Eu digo-lhes onde está.

A fronda populista varre a prudência de pensar duas vezes e, pouco a pouco, a fragilidade crescente dos partidos políticos fá-los soçobrar aos princípios para responder à avalanche populista. O efeito mais pernicioso de casos como o de Sócrates-Ivo Rosa é criar, em nome da luta contra a corrupção, uma deriva autoritária e liberticida. A Justiça é numa sociedade democrática um pilar do Estado, é um dos poderes fundamentais na sua autonomia e independência, como o poder legislativo e executivo. A doutrina da separação dos poderes não retira o exercício dos diferentes poderes do âmbito do Estado, nem impede por si só a sua perversão e contaminação – ou seja, a dependência do poder político é uma possibilidade e um risco, mesmo sem se mudarem normas e procedimentos. E tudo aquilo que permitimos agora na convicção de que não haverá abusos pode amanhã ser usado de forma abusiva e persecutória.

Dou muitas vezes como exemplo a intromissão na liberdade individual por meios informáticos, feita em nome da eficácia, que nos parece inocente agora, mas cria todos os instrumentos para poder ser usada contra as liberdades. Digo muitas vezes que uma nova PIDE que acedesse às bases de dados das Finanças, aos pagamentos do Multibanco, aos trajectos da Via Verde, aos metadados dos telemóveis podia saber tudo sobre qualquer cidadão. Se uma autoridade legítima o precisa de fazer para perseguir uma actividade criminosa, e se o fizer sob controlo judicial, muito bem. Tudo o resto, muito mal.

Não estou a falar de abstracções. Já houve jornais que pagavam informação a pessoas do fisco com acesso aos dados para fazerem “investigações”. Já houve magistrados que foram para além da lei para fazerem “pesca de arrasto” para encontrarem culpados, mesmo que não houvesse qualquer indício de actividade criminosa. Há legislação que implica a violação do segredo profissional dos advogados face aos seus clientes com considerável indiferença destes. O fisco viola a privacidade dos cidadãos obrigando as facturas a terem não apenas o montante da transacção, mas discriminação, por exemplo, dos títulos dos livros que se compra numa livraria. Há tentativas de “acrescentar”, sempre em nome da eficácia, dados suplementares ao cartão de cidadão. A aplicação Stay Away Covid apoiada pelo Governo implicava a violação de dados pessoais e não é líquido que os novos “passaportes” com dados sanitários também não o façam.

A inversão do ónus da prova, para que agora há um clamor populista, a que quem de direito responde tibiamente, é um instrumento persecutório e de abuso nas mãos do Estado. O enriquecimento “ilícito”, se o é, deve ser provado pela Justiça, pelo Estado. Dê-se aos magistrados e às polícias todos os instrumentos necessários para essa prova, mas não se crie uma situação em que seja o próprio a ter de provar a sua inocência. O furor legítimo contra a corrupção não deve dar às mãos do Estado instrumentos potenciais para todos os abusos. Hoje parece que será contra o “ilícito” do enriquecimento, mas amanhã pode ser para qualquer um, para vinganças políticas, para abater adv.ersários. Dado o instrumento, destruído o princípio, o abuso é só uma questão de tempo.

Aqui é que precisamos de liberais e eles nos faltam. Muitos, aliás, dos “liberais” dos dias de hoje são indiferentes a estas liberdades e, para atacarem aquilo a que chamam a “corrupção do socialismo”, estão dispostos a dar ao Estado enormes poderes. Eu, que me dou bem com o honroso nome de liberal, na tradição de Garrett e de Herculano, ou da minha terra, o Porto, não estou disposto a dar ao Estado o direito de me obrigar a provar a minha inocência. É, se quiserem, uma posição humanista sobre a natureza humana, deixando o pecado original para os crentes, mas não para a democracia.»

Cuidar da coisa pública

Posted: 09 May 2021 03:36 AM PDT

 


«Insultuoso. Obsceno. Inaceitável. Inadequado. Vergonhoso. Os adjetivos variam, mas todos coincidem na condenação generalizada do prémio de 1,86 milhões de euros atribuído à equipa de gestão do Novo Banco. Conhecido, além do mais, na semana em que a auditoria do Tribunal de Contas apontou falhas ao processo de venda e ao acompanhamento do financiamento público.

A novela Novo Banco fornece lições infindáveis, mas vale a pena alargar o olhar e tentar compreender a cultura que justifica o facto de, pelo segundo ano consecutivo, um banco a receber ajudas do Estado distribuir prémios tão avultados de gestão. A mesma cultura que em empresas privadas permite comissões e prémios chorudos mesmo quando a gestão é danosa e os resultados negativos, com a diferença crucial de que no primeiro caso há verbas públicas envolvidas, e no segundo um problema que cabe aos empresários ou acionistas assumir.

É esta mesma cultura que explica uma certa passividade perante a corrupção, a aceitação de que condenados em crimes próprios do exercício de cargos públicos voltem a candidatar-se, a ineficiência ou falta de transparência na contratação pública, ou ainda as falhas na avaliação e capacitação da Função Pública. Uma cultura, no fundo, de falta de exigência, e que mostra pouco respeito pelo rigor, pelos resultados e pelos princípios e valores que orientam a gestão de recursos por definição limitados.

Cuidar melhor da coisa pública é uma tarefa que deve mobilizar-nos a todos os que pagamos impostos. Faz sentido o sobressalto cívico e debate público, mas a mudança só se consegue com mais do que isso. Não basta o voto quando há eleições ou considerar que os nossos direitos democráticos se esgotam na urna. Desde acompanhar reuniões de assembleias municipais e executivos camarários a olhar para a contratação, participar em consultas públicas, promover petições, são muitos os mecanismos à disposição dos cidadãos. É de todos a tarefa de promover a mudança que queremos ver em quem gere ou utiliza recursos públicos.»

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Viver à fome

Posted: 30 Apr 2021 03:38 AM PDT

 


«Se o pobre tivesse silêncio de corrupto, o país indignar-se-ia em alvoroço persistente, haveria debates parlamentares e diretos nas TV, livros brancos, verdes, brancos, haveria planos nacionais e acordos de regime, haveria ação política movida a protesto cívico, mas a mobilização raspa mais vezes a cabeça do fósforo contra as vergonhas do que a favor das convicções. E nisto vergonhas não há. Porque o silêncio do pobre não zanga nem se zanga. O pobre não tem sindicato, partido, nem voz. Como escreveu Raul Brandão, que tirou esse degredo do segredo, os pobres “têm a alma cheia e não sabem falar”. Nem os demais ouvir o seu silêncio.

Eles, os pobres, são dois milhões de nós, mais ou menos centena de milhar conforme a recessão geral. Uma vez por ano, um rácio do INE é notícia do dia à noite já esquecida. Outras vezes, como agora, um estudo arranca um “isto não pode ser!” e depois continua a ser. Os outros oito milhões submergem a consciência nas suas próprias carências, sobretudo se além de não ouvirem o silêncio do pobre não virem a sua invisibilidade. É melhor não sujar o olhar, é melhor ver números, é melhor ver apenas, como também escreveu Brandão, “os pobres que não pedem”.

Agora é o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e só não lê quem não quer. Ler que há pobres com contrato de trabalho, que há pobres com trabalhos precários, que pobres crianças que serão pais de pobres, que há velhos pobres e não os há mais porque há pensões. A raiz não está na preguiça, como os ignorantes gostam de estalar, está nos salários baixos e nas pensões baixas que eles geram. O país lamenta e pede “mais, mas não de mais, se não os gajos não trabalham”. É uma farsa: metade dos pobres trabalha, com contrato ou sem ele. O “vai trabalhar, malandro” é para os privilegiados, para os que deviam trabalhar para acabar com a pobreza dos outros, mas os outros estão longe ou são invisíveis ou silentes e nós deixamos do lado de fora do quarto o aviso “não incomode por favor”. Condoemo-nos mas não é connosco, é com o Governo, e cada Governo culpará o anterior e remeterá o próximo.

No discurso desta semana no Capitólio, Joe Biden anunciou um plano para cortar metade da pobreza infantil nos EUA e associou as medidas ao aumento do salário mínimo. Em Portugal, o aumento do salário mínimo tem efeitos colaterais adversos, como o esmagamento das faixas salariais, mas é das melhores medidas que o Governo tem promovido. Mais, até, do que as medidas avulsas em tempo de pandemia, que transformou todos os ministérios em Ministérios da Segurança Social.

Não basta. Se há coisa que o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos mostra é que um país que não cresce há duas décadas não pode se não fabricar pobres; que o dispositivo de medidas sociais disponíveis (do RSI ao Complemento Social para Idosos) tem de ser revisto, na formatação e condições de acesso; e que os pobres não se queixam nem se revoltam, resignam-se de trabalho em trabalho até serem substituídos pelo futuro da automação e da Inteligência Artificial. Artificialmente inteligentes somos nós se consentirmos este país pobre, desigual, excludente. Com os nossos apoios sociais não se morre de fome, mas com esta economia vive-se de fome. Só a sociedade pode dar voz à boca do pobre, para que a política se mova. Ou então não, ou então voltamos para a semana e falamos do silêncio do corrupto, também é bom tema e sempre cria vergonha.»

Escola, eu te detesto!

 

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 30/04/2021)

António Guerreiro

Temos assistido, no nosso tempo, a “revisões” históricas e a uma aceitação mais ou menos consensual de que não é possível defender hoje comportamentos e ideias que faziam parte de códigos culturais, sociais e políticos do passado. O que é menos consensual é o modo de reparação das injustiças cometidas no passado e o modo de olhar retrospectivamente para outras épocas históricas (próximas ou longínquas) e para os seus protagonistas usando os utensílios mentais do presente.

Esta questão foi discutida e desenvolvida pelo historiador francês Lucien Febvre, num livro onde defendia que falar de um Rabelais ateu, apesar do fortíssimo pendor herético e muitas vezes obsceno da sua obra literária, era um anacronismo. Esse livro era não apenas uma refutação desse anacronismo, mas também um tratado de metodologia da investigação histórica.

O esclavagismo, o racismo, o anti-semitismo, a tutela e a violência exercida pelos homens sobre as mulheres, a discriminação e perseguição dos homossexuais e dos indivíduos transgénero, a pedofilia — tudo isto e muito mais tornou-se objecto de condenação veemente. Não quer dizer que, por exemplo, o racismo e o machismo tenham sido erradicados definitivamente. Longe disso, como sabemos muito bem. Mas já não podem contar, sem serem contestados, com os antigos discursos de legitimação. Já não fazem parte de uma “visão do mundo” naturalmente aceite. As revisões e reparações que daqui decorrem nem sempre têm sido isentas de violência e, certamente, de algumas injustiças. As revoluções, mesmo as que se dão no domínio das ideias e das mentalidades, nunca são movimentos pacíficos nem inteiramente controlados. Toda esta questão torna-se bastante mais controversa e cheia de equívocos quando se começa a exigir que até a literatura e a arte em geral estejam do lado do Bem e poupem aos leitores e espectadores ideias e atitudes que não devem hoje ser partilhadas na vida social e política.


Em tempo de reparações e de assumpção de injustiças colectivas, ainda ninguém veio reivindicar que seja reparado, ou pelo menos nomeado, o crime cometido sobre as crianças e adolescentes na escola de antigamente, quando as sevícias faziam parte dos métodos pedagógicos. Quem frequentou a escola ou os liceus nesse tempo (acho que o 25 de Abril constituiu, também aqui, uma cesura, mas não sei se foi imediata e generalizada) sabe bem que muitos professores tinham métodos sádicos e comportamento de carrascos. Não sou certamente o único que tem uma memória da escola primária como uma instituição de terror, um lugar a que sobrevivi a custo, mas que me deixou marcas que a memória reactiva com mais força à medida que o tempo passa. Percebo hoje que essa escola era profundamente medíocre (quando a frequentei tinha apenas uma muito vaga noção de que era odiosa) e, dela, havia os que se salvavam e os que submergiam (bem sei que estas palavras são uma ilegítima e perigosa citação, mas como deixar de ver essa escola como um “espaço concentracionário”?). Aí, a arbitrariedade era absoluta e os castigos infligidos às crianças eram semelhantes aos de uma colónia penal. Numa época em que não havia o controlo que há hoje e as crianças iam em grupo, a pé, para a escola, alguns “fugiam à escola” e ficavam escondidos, até à hora do regresso a casa, para escaparem à tortura. Recordo alguns nomes e rostos de colegas “fugitivos”, que depois tinham que enfrentar os pais; e que eram vistos como potenciais delinquentes e socialmente falhados. Recordo-os e interrogo-me se eles nunca pensaram em pedir contas pelo mal que lhes fizeram, por terem sido condenados ao falhanço por gente criminosa. Interrogo-me também se eles, já adultos, conseguiram cruzar-se com esses antigos professores sem os insultarem ou sentirem uma enorme aversão.

E pergunto: como foi possível, já depois de ter desaparecido este ambiente escolar, manter a complacência em relação a professores que foram agentes do terror? A pedofilia é um crime que não prescreve; uma escola que pratica a pedocriminalidade deveria ser julgada. Se os ditos professores agiam assim por obediência a uma concepção da escola e da pedagogia instauradas como ideologia do Estado, então o Estado devia, em algum momento, ter pedido desculpa às vítimas e assumir a responsabilidade que não poder ser pedida aos carrascos que tinha ao seu serviço. As vítimas, uma enorme multidão, têm direito, pelo menos, a uma pedido oficial de desculpa. Mesmo que em muitos os casos o mal cometido seja da ordem do irreparável.