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quinta-feira, 20 de maio de 2021

 

Os militares não saem do quartel por procuração

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 18/05/2021)

Daniel Oliveira

Ouvir os militares sobre a reforma das Forças Armadas não é negociar. Se a questão é a política de defesa, ela não tem de ser negociada com os seus executores. Se são os direitos e deveres das cúpulas militares, os generais não têm direitos sindicais. Os militares na reserva têm direito a tomar posições. Mas, depois da dissolução do Conselho da Revolução, os militares voltaram para os quartéis. E os que estão fora não representam os que estão dentro. Eanes é uma referência moral de sempre. Outros ex-presidentes tomaram posições. Mas ele fê-lo pela corporação, subjugando o estatuto que deve preservar – ex-presidente – ao do que lhe está abaixo –ex-chefe militar, qualidade a que se reduziu numa carta assinada com camaradas.


Nada sei sobre política de defesa. Mas sei uma coisa: tenham a dimensão, as funções e a orgânica que tiverem, as Forças Armadas estão subordinadas ao poder político e, por serem armadas, os militares (sobretudo os oficiais superiores) têm a sua capacidade de intervenção política muitíssimo limitada. Sou insuspeito de simpatia por Macron, mas a petição política assinada por 75 mil militares no ativo, em França, é um aviso: qualquer envolvimento de militares no jogo político deve ser cortado pela raiz, sem apelo nem agravo. A tibieza dos eleitos nesta matéria, perante os perigos que a democracia vive, será paga bem caro.

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Da mesma forma que não se admite indisciplina dentro da caserna, não se admite indisciplina perante o poder legítimo, sufragado pelo povo. A exceção é a recusa de cumprir ordens que ofendam os valores mais básicos da Constituição da República. E mesmo isso tem uma latitude mínima. Não tenho, nesta matéria, qualquer tolerância: quem tem armas não faz política, quem faz política não tem armas. E quem quiser fazer política deve sair das Forças Armadas. O tempo dos generais-políticos já passou.

Nada disto impede que os militares sejam ouvidos na reforma das Forças Armadas. Eles são os que melhor conhecem o sector e têm seguramente muito com que contribuir. Mas ouvir não é negociar. Porque se a questão é a política de defesa, ela não tem de ser negociada com os seus executores. Serve os interesses do Estado, não os interesses dos militares. Se a questão são os direitos e deveres das cúpulas militares, os generais não têm direitos sindicais. O Estado dá-lhes ordens, não as negoceia. Assim como eles fazem com aqueles que lhes devem obediência. Querem as coisas de forma diferente? Vão para a vida civil, onde a forma de agir quotidiana é diferente: negoceiam com quem lhes dá ordens e com quem as recebe.

Como disse, não tenho opinião sobre a reforma das Forças Armadas. Acho natural que se oiçam os envolvidos, esperando que não se sucumba à doença nacional que impede qualquer reforma: o corporativismo. À ideia que o Estado serve, antes de tudo, os seus servidores. À esquerda, esse corporativismo é tolerado em relação a sindicatos da Função Pública ou aos professores, confundindo os legítimos interesses dos trabalhadores do Estado com a defesa do Estado Social – que nem sempre coincidem. À direita, esse corporativismo é tolerado em relação às ordens profissionais ou aos polícias, confundindo os legítimos interesses de grupos profissionais com a defesa dos interesses nacionais – que nem sempre coincidem. Não é inocente o que cada área política privilegia. Tem a ver com as funções do Estado que mais valoriza.

Mas quando chegamos aos militares as coisas mudam de figura. Aí, qualquer movimentação corporativa é intolerável. Incluindo as que se fazem por procuração. Os militares na reserva têm todo o direito a tomar posições. Já não estão sujeitos à disciplina militar. Mas temos de assumir uma de duas coisas: ou não representam posições de militares no ativo e são irrelevantes para o debate em causa.; ou representam, e as suas posições em representação de outros são uma manifestação de indisciplina com a qual não se pode compactuar. Depois da dissolução do Conselho da Revolução, os militares voltaram para os quartéis. E os que estão fora dos quartéis não representam os que estão lá dentro.

Tenho uma enorme admiração pelo ex-Presidente Ramalho Eanes. Ela não é, como acontece com alguns, recente. É de sempre. Considero-o uma referência moral para o país. Não a que se autoproclama, como faz Cavaco Silva. Mas a que se torna evidente pelo exemplo, sem que seja precisa uma palavra do próprio que a sublinhe. Foi, por isso, com tristeza que vi associar o seu nome aos de praticamente todos os ex-Chefes de Estado Maior dos três ramos das Forças Armadas desde o 25 de Abril contra o reforço do CEMGFA. Não por discordar da sua posição – não tenho posição sobre o assunto. Nem sequer por discordar que militares na reserva tentem representar militares no ativo, contornando a neutralidade política das Forças Armadas, do que discordo. Mas porque Ramalho Eanes é, antes de qualquer coisa, ex-Presidente. Todas as suas posições públicas são com esse estatuto, que se sobrepõe, por lhe ser superior, ao de ex-militar. Aliás, acho que devíamos importar o hábito norte-americano de chamar “presidente” aos ex-presidentes.

Eanes teve e mantém uma postura cívica exemplar. Como qualquer pessoa, tem as suas pequenas manchas. Duas, o que é nada em alguém que teve tantas responsabilidades. Uma foi a construção de um partido político (o PRD) a partir de Belém. Outra será esta, talvez ditada pela camaradagem. Que põe o atual Presidente da República numa situação muito delicada numa área em que tem poderes especiais. Não seria grave se Eanes o fizesse pelo país – outros ex-presidentes tomaram posições públicas muitas vezes e Cavaco Silva fê-lo mais uma vez sobre este tema. Mas Eanes fá-lo, queira ou não, pela corporação, subjugando o estatuto que mais deve preservar – o de ex-presidente – ao do que lhe está abaixo – o de ex-chefe militar, qualidade a que expressamente se reduziu numa carta coletiva assinada com camaradas.

O conflito israelo-palestiniano e nós

Posted: 17 May 2021 03:55 AM PDT



 

«Como começou o atual conflito israelo-palestiniano? Foi quando palestinianos de Jerusalém oriental protestaram contra o despejo de famílias árabes do bairro de Sheikh Jarrah, onde há disputas imobiliárias entre judeus e muçulmanos? Terá sido quando colonos israelistas e moradores do bairro predominantemente palestiniano, mutuamente acirrados por essa disputa, se agrediram? Ou quando o governo israelita enviou milhares de polícias para a Mesquita de Al Aqsa no último dia do Ramadão? Ou quando os islamistas do Hamas, que governam em Gaza, lançaram mísseis sobre Jerusalém em retaliação contra essa ocupação? Ou quando o exército israelita respondeu com ataques de artilharia pesada e a destruição de edifícios, incluindo sedes de organizações de media? Ou quando, e se, e por aí além, até ao infinito?

Na verdade, há muito que já passou a ser mais esclarecedor considerar o conflito israelo-palestiniano como uma crise latente permanente que pode passar do lume brando ao lume alto dependendo da conjuntura política. Deslocando a grelha de leituras das causas próximas para a conjuntura política, as coisas passam a ser mais legíveis, porque passamos a ter uma ideia mais clara de a quem interessa cada agudizar da crise. Ora, o que estava a acontecer quando a atual ronda de conflitos começou é que Benjamin Netanyahu, acossado por inúmeras acusações e processos de corrupção, e agarrado ao poder nestes últimos tempos por uma série de estratagemas cada vez mais rebuscados, estava a pontos de ter de ceder o cargo de primeiro-ministro. E o que aconteceu a seguir é que o recrudescimento do conflito tornou clara a impossiblidade de formar uma coligação alternativa para tirar Netanyahu do poder, tal era a heterogeneidade de pontos de vista entre a oposição assim que o centro do debate deixou de ser a corrupção de Netanyahu para ser a questão de como reagir perante o conflito.

Do outro lado da barricada, o Hamas é inimigo de Netanyahu mas, na prática, o seu aliado objetivo. Pois a ambos interessa ter agora o conflito em lume alto de forma a tornar impossível o aparecimento daquilo que mais temem: a emergência de uma maioria israelo-palestiniana cansada da violência e disposta a dar base social de apoio a uma solução de paz. O conflito sem-início-nem-fim é o que mais serve àqueles que fundam o seu poder numa obsessão absolutista de uma terra do mar-ao-rio desprovida de judeus, ou de árabes, conforme o lado.

Está a funcionar, no sentido em que por este caminho todas as outras soluções acabarão por se tornar inviáveis. Neste momento, a “solução de dois Estados” está inviabilizada pela existência de mais de duzentos colonatos israelitas, entre oficiais e não-oficiais — mas todos ilegais do ponto de vista do direito internacional — em território palestiniano. Por outro lado, a solução de apenas um estado, mas com direitos democráticos iguais para todos os seus habitantes, independentes de etnia ou religião, torna-se inviável pelo acirrar da violência comunitária em momentos como os que estamos a viver.

Se a solução de dois Estados se torna inviável, e a solução de um Estado democrático nunca chega a tornar-se viável, quem ganha são os irredentistas e quem perdem são as vítimas de ambos os lados — mas muito desproporcionadamente palestinianas — que são meros peões da estratégia de poder dos líderes autoritários de um lado e do outro. A verdade é que a Palestina, ainda antes de ser um Estado de pleno direito, já tem um enclave teocrático na Faixa de Gaza dominada pelo Hamas. E Israel cada vez menos pode brandir as suas credenciais de democracia liberal quando Netanyahu tão claramente se inspira no exercício de poder de outros autoritários “iliberais” e cristaliza na prática a ideia de Israel como um estado confessional e, por consequência, de apartheid.

De dentro, em suma, não vem solução — porque as partes interessadas mais extremistas não deixam. Isso não é novidade em zonas de conflito intra-comunitário; assim foi durante largas décadas na Irlanda do Norte.

A solução poderia estar na pressão de fora, dos Estados Unidos, da União Europeia, da Liga Árabe, do Conselho de Segurança da ONU. Reconhecer o estado da Palestina seria a maneira de forçar a solução de dois Estados e confrontar o Hamas com a impossibilidade do seu delírio de Estado teocrático do Jordão ao Mediterrâneo. Parar de legitimar a farsa com que Netanyahu se agarra ao poder seria a forma de obrigar Israel a escolher entre a democracia e o apartheid e, quem sabe, abrir assim a possibilidade de um Estado de direitos iguais para todos os seus cidadãos.

Numa saída ou na outra há-de estar a solução, e nós deveríamos fazer parte dela ao pressionar os nossos governos. O que não se pode é aceitar esta situação em que são vítimas de corruptos e autoritários as gentes comuns e as possibilidades de alguma paz naquela terra.»

Rui Tavares 

segunda-feira, 17 de maio de 2021


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A ponta do icebergue

Posted: 14 May 2021 03:58 AM PDT

 


«Com o levantamento da cerca sanitária, a situação em Odemira tenderá a sair da agenda. O problema de fundo, contudo, persistirá. Mesmo se fosse possível resolver todos os casos de abuso no trabalho ou até eventuais situações de escravatura laboral e de tráfico de pessoas, o crescimento para lá do razoável da agricultura intensiva continuaria a colocar uma pressão incomportável sobre o território.

Há dias, o Presidente da República afirmava que “a sociedade prefere ver a ponta do icebergue em lugar de discutir a parte fundamental, as condições sociais”. A questão é essa, mas, na verdade, não é essa. Em Odemira, os problemas sociais persistirão, a menos que se repense o equilíbrio entre a aposta necessária numa agricultura mais moderna e um território que é um recurso ambiental de valor inestimável. Nos últimos tempos, esta relação desequilibrou-se, provocando problemas sociais.

Não é possível um concelho com cerca de 25 mil habitantes, com serviços públicos escassos e um parque habitacional subdimensionado albergar uma população migrante que se estima superar os 10 mil trabalhadores sazonais e tenderá a crescer muito. Em abstrato, até se podia pensar em fazer de Odemira um grande parque agrícola, mas numa região atravessada por um parque natural seria um absurdo e uma ameaça ao património ambiental.

E o absurdo nasce também da resolução do Conselho de Ministros aprovada há dois anos e que enquadra a exploração agrícola nos 12 mil hectares do perímetro de rega do Mira. Uma resolução que se propunha promover uma solução temporária para o alojamento (os muito propalados contentores) e fixar a área passível de ser ocupada por estruturas de cobertura.

De acordo com a resolução, 40% dos 12 mil ha podiam ser dedicados à exploração em estruturas cobertas. Ou seja, com esta decisão, é possível ter 4800 ha de agricultura em estruturas cobertas. Em 2013, estas estruturas ocupavam cerca de 400 ha, atualmente ocupam 1600 ha, e o ritmo de crescimento anda em redor de 15% ao ano. Neste momento, são necessários mais de 10 mil trabalhadores, imagine-se quando atingirmos os 4800 ha permitidos. Uma situação social ingerível.

É neste contexto que surpreende a interpretação que o ministro do Ambiente fez da resolução em vigor. Segundo Matos Fernandes, “a área de estufas não pode ter mais de 40% da parcela de cada propriedade”. Em que é que ficamos? Afinal, são 40% de cada parcela ou, como era o entendimento até aqui, 40% da área do perímetro de rega do Mira? Se for levada a sério a declaração do ministro, quase todas as explorações com estas estruturas criadas após 2019 são ilegais, pois ocupam muito mais do que 40% das parcelas onde se inserem. Ou os vários organismos da Administração Pública se entendem e o Governo clarifica a sua posição ou brevemente o país será confrontado com um icebergue na sua totalidade. Não será por falta de aviso.»


Dinis de Almeida – Morreu um indómito Capitão de Abril

por estatuadesal

(Major Mário Tomé, in Facebook, 16/05/2021)

Morreu o Dinis de Almeida. O capitão Dinis de Almeida, oficialmente Coronel de Artilharia Dinis de Almeida.

Se há capitães de Abril que durante a situação revolucionária, vulgo PREC, estiveram sempre no olho do furacão, Dinis de Almeida foi um deles. Direi, mesmo, dos primeiros de entre eles.

Ao Dinis de Almeida se deve, pela sua coragem e ponderação revolucionárias, que a contrarevolução ensaiada por Spínola e spinolistas não tivesse terminado em tragédia no ataque covarde ao RALIS em 11 de Março de 1975 pelos paraquedistas às ordens do comandante do Corpo de Paraquedista, coronel Rafael Durão.

Ao Dinis de Almeida se deve que a miserável demonstração de despotismo “maoísta” na tortura a Marcelino da Mata por MRPP’s infiltrados no seu quartel, o RAL 1, tivesse consequências mais funestas.

Ao Dinis de Almeida se deve uma intervenção sempre atempada na dissuasão de atos contrarrevolucionários ou de atos ditos revolucionários na região e na cidade de Lisboa.

Dinis de Almeida pertenceu desde os primeiros instantes ao núcleo duro do Movimento dos Capitães, integrou os principais centros de decisão do Movimento dos Capitães (depois MFA numa decisão que já prognosticava cedência à hierarquia derrotada) quer na vertente de mobilização, quer nas de planeamento e de ação.

Com Otelo e Vasco Gonçalves foi alvo das mais imbecis e brutais calúnias por parte dos que, civis e militares, mesmo que rendidos a uma revolução que lhes trocou as voltas, tiveram sempre no pensamento e no coração um 25 de Novembro que haveria de chegar.

O seu carácter e verticalidade ética assim como o seu desassombro na defesa do que considerava justo e de acordo com os objetivos que desencadearam a Revolução de Abril – o fim da guerra colonial, a defesa da liberdade e responder aos superiores interesses populares - marcaram todo seu empenhamento radical no Movimento e na Revolução.

Tive, ainda jovem capitão empenhado na guerra colonial, a grande honra de comandar o Alferes Dinis de Almeida na minha Companhia de Cavalaria 1601, no Niassa, onde foi colocado para se iniciar na condução prática da guerra de contraguerrilha. Um grande profissional e um grande revolucionário. Como eu, aprendeu o suficiente para acabar com ela.

Dinis de Almeida deixou-nos o mais importante acervo documental relativo à conspiração, à execução e desenvolvimento da revolução de Abril: «Ascensão, Apogeu e Queda do MFA», 2 volumes, e «Origens e Evolução do Movimento dos Capitães» ambas as obras das Edições Sociais.

Tchau camarada. Muito te ficámos a dever.

 

Co-gestão das áreas protegidas: a demagogia e a incompetência de pôr a raposa a guardar o galinheiro

Posted: 15 May 2021 03:48 AM PDT



 

«Já aqui há uns dois meses, numa Carta Aberta em Defesa do Estuário do Tejo, um grupo de velhos ambientalistas e académicos apontava também o dedo à anunciada pretensão de entregar a co-gestão dos parques naturais às autarquias. Aí está ela agora, com pompa e circunstância, em jeito de propaganda eleitoral. Poderia pensar-se que o primeiro-ministro, assoberbado primeiro com a luta contra pandemia – que, admite-se, com altos e baixos, apesar de tudo, não tem corrido muito mal – e depois a presidência da UE, que também se desenrola em plano positivo, teria deixado alguns ministérios em roda livre, tais têm sido as asneiras colossais com que nos brindam quase semanalmente. Mas neste caso das políticas fundamentais de médio e longo prazo para a sustentabilidade do território, que são as agro-florestais e as ambientais, António Costa é pessoalmente responsável e não corrige a trajectória. Foi ele, quando era ministro da Administração Interna e com o apoio do ministro da Agricultura de então (um dos piores, se não o pior, ministro da Agricultura que já existiram em Portugal), que deu a primeira machadada nos serviços florestais — os calamitosos fogos florestais que se seguiram, tendo por fim como ex-líbris a destruição do pinhal de Leiria, são a melhor prova do fracasso dessa política. Hoje há menos fogos porque já há muito menos matas para arder, de resto nada mudou na orgânica do Estado nesses domínios.

Quando, há várias décadas, se iniciou a política de conservação como pilar fundamental da política de ambiente, a pedra-de-toque foi a criação da grande Rede Nacional de Áreas Protegidas (AP), como os Parques Naturais e as Reservas Naturais, e a sua orgânica inspirou-se na experiência internacional dessa matéria e também na necessidade de ter um forte sentido pedagógico institucional, pois em Portugal não havia tradição de criar aquelas categorias de gestão do território.

Os grandes parques e as grandes reservas possuíam um director, um conselho geral e uma comissão científica.

O director era escolhido entre técnicos com especial sensibilidade para desempenhar o cargo, independentemente da sua filiação partidária: era o tempo em que, naquela democracia jovem, tudo parecia possível, sério e democrático. Mas quando as comissões concelhias e distritais dos principais partidos passaram a influenciar a escolha do director a favor dos seus boys, começou a ruir a eficácia e a independência das AP. Houve directores de grande categoria, e posso recordar Antunes Dias à frente das reservas naturais do estuário do Tejo e do Sado, Maia Barbosa à frente do Parque da Arrábida, no Alvão e em Montesinho Robert Moura e Dionísio Gonçalves, Maria João Botelho nas serras d’Aire e Candeeiros, Rui Correia em S. Mamede e, na ria Formosa, Fausto Nascimento e Nuno Lecoq.

Mas a grande inovação das AP repousava no seu conselho geral, onde estavam representadas as autarquias (câmaras e juntas de freguesia), os diversos serviços regionais e as ONG: reunia-se regularmente e ali se debatiam os problemas da AP. A pouco e pouco, o seu dinamismo era tal que impressionou e criou ciúmes ao poder central; houve então um secretário de Estado que afirmou que “os parques tinham força a mais” — queria dizer que se decidiam muitas intervenções e assumiam-se compromissos sobretudo com a participação activa das autarquias e das populações, sem o “beneplácito régio”. Então, vieram uns “iluminados” dum Governo socialista e acabaram com aquela orgânica, instituindo a que, degradando-se ano após ano, chegou aos nossos dias.

O PS nunca foi um partido ambientalista e isso é estranho, porque a esquerda democrática é por natureza internacionalista e ecologista — como se vê na Europa. Tirando o professor Gomes Guerreiro, que era uma personalidade de excepção, alguém se lembra de responsáveis socialistas do Ambiente que tivessem deixado nome? E alguns podiam tê-lo feito, recordo Gomes Fernandes ou Humberto Rosa que, se tivessem encontrado outro suporte político e outra ambição dos seus governos, teriam deixado obra que se visse. As pessoas ligadas ao Ambiente recordam Gonçalo Ribeiro Telles, claro, Augusto Ferreira do Amaral, Francisco Sousa Tavares e, sem dúvida, Carlos Pimenta ou Macário Correia – lamentavelmente, do PS nem um!

Uma das decisivas motivações que os parques naturais exerciam junto das autarquias foi sempre explicar que o nome de “parque” não significava território especial para recreio. O recreio seria apenas recreio na Natureza, contido e respeitador.

Esta atitude do actual Ministério do Ambiente, onde declarada e ufanamente não há convicções ambientalistas, de entregar a co-gestão dos parques naturais às autarquias, com a concordância do primeiro-ministro, é uma atitude antes de mais demagógica, um lavar de mãos, uma desculpa pelo abandono a que as áreas protegidas têm estado sujeitas e será o princípio do descalabro do Sistema Nacional das Áreas Protegidas. Uma coisa era o que existia no antigo conselho geral, onde as autarquias estavam enquadradas pelas directrizes e limitações da política nacional de Ambiente, veiculadas pelo director, outra bem diferente é este progressivo aligeirar de responsabilidades.

Com a falta de credibilidade do Ministério do Ambiente em termos de garantia da sustentabilidade ambiental, para além de muita retórica e de distribuição de milhões de euros em todas as direcções (que calam muita contestação…), o descalabro do Sistema Nacional das Áreas Protegidas ai está: os parques e as reservas vivem hoje apenas do prestígio e dedicação de alguns técnicos que lá trabalham; mas, agora, dar a co-gestão dos parques às autarquias, onde sempre a pressão turística foi muito forte, é uma decisão lamentável. Eu e muitos ambientalistas sempre fomos municipalistas convictos, porque a autarquia local é historicamente a melhor e mais democrática base de gestão do território. Mas há leis e políticas nacionais, como as do Ambiente e Ordenamento do Território, que não devem ser municipalizadas, porque a Natureza não se rege por fronteiras administrativas. Este e outros governos anteriores não são capazes de entender… ou não lhes interessa. Tem de se envolver as autarquias e integrá-las na gestão das AP, como foi pensado desde o início, mas a direcção terá de ser especializada. E do Governo não há sinais de dar… a mão à palmatória. Empurra-se com a barriga para a frente…

Penso que só haveria uma solução: refazer a orgânica do Governo nas áreas fundamentais para a sustentabilidade do espaço biofísico — reconstruir um Ministério da Agricultura e Florestas que seja capaz de gerir globalmente a velha máxima romana do ager/saltus/silva; e um Ministério do Ambiente com gente de convicções e menos retórica, que encare as AP e, em especial, os parques e reservas naturais como “jóias da coroa”; parar esta asneira (depois de feita é difícil…) e repor as figuras do director e do conselho geral. Devido à ausência, durante anos e anos, dos apoios necessários para a concretização duma política de conservação, as AP entraram em descrédito; e agora pioram, ao atirar-se para as autarquias locais (que felizmente já têm muito com que se ocupar) a gestão desses territórios tão sensíveis, com a apetência para o recreio e o “turismo de Natureza” que deviam continuar sob rigoroso controle público do Estado, mas afastadas as actividades recreativas comerciais; esta decisão é não só demagogia, incompetência, como alguém já disse — é mesmo pôr a raposa a guardar o galinheiro —, e pode significar o fim do Sistema Nacional de Áreas Protegidas.

Perante a inércia do país, o estado a que chegámos!...»

Fernando Santos Pessoa