Translate

sábado, 22 de maio de 2021

 Não nos distraiamos da pobreza

Posted: 21 May 2021 03:31 AM PDT

 


«O país distrai-se facilmente do que é importante e, sobretudo, do que não é perfumado e agradável. Vezes demais perguntamo-nos “como pôde isto acontecer?”. Fizemo-lo nos incêndios de 2017, fizemo-lo na morte de Ihor Homeniuk às mãos do Estado que o devia proteger, fizemo-lo diante do trabalho escravo e das condições de habitação inenarráveis dos imigrantes de Odemira. E, no entanto, tudo isto estava à vista, houve alertas convincentes, só não houve foi sentido de responsabilidade para lhes dar sequência.

Sobre a realidade da pobreza em Portugal também sabemos a sua dimensão e as suas causas principais. Também sobre ela há alertas sérios de quem conhece o dia a dia do mundo pobre em Portugal. Sucede que a pobreza não tem glamour e pô-la no centro tira brilho ao retrato tão apetecido de um país moderno, cheio de start ups e de 5G, etc. etc.

O algodão não engana: somos um país com mais de dois milhões de pobres. E seriam o dobro se não fosse a operação de prestações sociais que minoram esse alcance. Somos um país em que a principal causa de pobreza são os baixos salários. Sim, parte muito significativa daqueles dois milhões de pobres são gente empregada, mas cujo salário não chega para o sustento mínimo de si e da sua família, envolvendo somente os ingredientes básicos da vida como a alimentação, a saúde e a habitação. Somos um país em que pobreza e velhice vão de mãos dadas e em que, portanto, as baixíssimas pensões são a paga dada a uma vida inteira de trabalho e em que prestações como o Complemento Solidário para Idosos tem um alcance curto.

Sabemos disto tudo há muito tempo. Não nos é lícito distrairmo-nos desta fragilidade do país e desta injustiça instalada para com tanta da nossa gente. Distraímo-nos se continuarmos a achar que o combate à pobreza é um suplemento das políticas e não o centro de todas as políticas. Distraímo-nos se continuarmos a achar que o combate à pobreza é algo que se faz nas políticas sociais como um departamento à parte e não algo que se faz na política de saúde, na política de habitação, na política de transportes, na política de justiça, em todas as políticas. E que se faz avaliando previamente o impacto de cada lei e de cada decisão política sobre a produção, manutenção, agravamento ou diminuição da pobreza.

Distraímo-nos se acharmos que o anunciado pilar social da União Europeia, tão enaltecido na recente cimeira do Porto, trará enfim a pobreza para o centro das políticas europeias. Lembrem-se os distraídos que o tal pilar estava instituído desde 2017 e que foi necessária a pandemia para, 4 anos passados, ser finalmente ativado. Lembrem-se os distraídos que o Fundo Social Europeu, agora findo, tinha como desígnio oficial reduzir a pobreza na Europa em 20% e que, em vez disso, tivemos políticas de austeridade que, em nome da saúde das finanças públicas, a perpetuaram.

Um país distraído da sua pobreza e dos seus pobres é um país injusto e profundamente imaturo. Agora que a torneira dos milhões da Europa se vai de novo abrir, não nos distraiamos do essencial: o combate á pobreza tem de estar no centro da nossa vida coletiva.»

 O “incidente de Ceuta” e a vulnerabilidade da Europa

Posted: 20 May 2021 03:41 AM PDT

 


«A massa dos 8000 migrantes que atravessaram a fronteira espanhola de Ceuta é uma manobra de pressão sobre a Espanha e a Europa, pondo a nu a vulnerabilidade da sua política de fronteiras. Abre, disse o presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, uma “grave crise para a Espanha e para a Europa”. A ameaça migratória encobre neste caso uma manobra estratégica de Rabat.

A UE acordou com Marrocos uma política análoga à que estabeleceu com a Turquia há cinco anos: Ancara recebe avultados fundos em troca de servir de tampão aos milhões de refugiados no seu território e regiões vizinhas. Também Marrocos é um indispensável parceiro da Europa, e em especial da Espanha, no controlo dos fluxos migratórios e no âmbito da luta antiterrorismo.

O episódio de Ceuta surpreendeu Madrid e Bruxelas, porque confiavam na eficácia do dinheiro. Rabat recebe uma generosa assistência financeira para assegurar o fecho das fronteiras. Por que pôr em causa o vantajoso entendimento existente? Porque Rabat sabe que os europeus continuarão a precisar do tampão marroquino. O “incidente de Ceuta” revela outra coisa: os acordos deste tipo podem tornar-se numa perigosa arma de pressão política. Se os europeus contrariam os seus desígnios estratégicos, Marrocos ameaçará “abrir as comportas”. A mesma arma de pressão, ou chantagem, tem sido habilmente usada pela Turquia.

A questão do Sara

A manobra marroquina tem como pano de fundo o conflito do Sara Ocidental. O chefe da Frente Polisário, Brahim Gali, está hospitalizado em Espanha a ser tratado da covid-19. Foi uma decisão do governo espanhol: Madrid não apoia a Frente Polisário mas também não subscreve a política marroquina.

Em fins de Abril, Rabat suspendeu subitamente as patrulhas policiais e milhares de pessoas começaram a concentrar-se perto da linha fronteiriça perante a passividade das autoridades. Era um convite aberto ao “salto da fronteira”. A embaixadora de Marrocos em Madrid foi chamada a consultas em Rabat, deixando um sibilino aviso a propósito do caso Gali: “Há actos políticos que têm consequências que se devem assumir.”

Para lá da Espanha, Rabat quer pressionar a Europa. Em breve o Tribunal de Justiça da UE se deverá pronunciar sobre os recursos interpostos pelos advogados da Frente Polisário contra os acordos de pesca de 2019 entre Marrocos e a Comissão Europeia. A Frente pede a sua anulação por incluírem extensões da costa do Sara Ocidental. Uma sentença do mesmo tribunal, de 2016, considerou que Marrocos e o Sara Ocidental são entidades distintas.

O significado do “incidente de Ceuta” é puramente político. Não significa uma ameaça económica ou demográfica para a Espanha. De resto, os migrantes adultos (não os menores) estão a ser devolvidos a Marrocos, ao abrigo dos acordos entre os dois países.

“A entrada irregular em Ceuta de mais de 8000 pessoas, em poucas horas, não é uma crise migratória, mas um inaceitável desafio estratégico que Marrocos lança à Espanha”, escreve El País em editorial. Acrescenta no Politico.eu o jornalista Sam Edwards: “Agora, que a mensagem foi enviada, as tensões entre Rabat e Madrid deverão baixar, mas o incidente revela a fragilidade da dependência da Europa perante Marrocos.”

A atenção da Europa está centrada na pandemia. Mas a questão migratória vai reacender-se. A Itália já sente os primeiros sintomas. A UE continuará a depender de acordos com os países mediterrânicos e acaba de descobrir que são uma arma de dois gumes.»

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Cinismo e indignidade

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 20/05/2021)

Alexandre Abreu

A situação em Ceuta é um caleidoscópio de iniquidades da política internacional. Do lado europeu, mostra o muito que temos para andar até que o respeito pelo direito internacional prevaleça sobre o cinismo da realpolitik.


São múltiplas as camadas de cinismo e indignidade em torno no que se tem passado em Ceuta nos últimos dias. Para quem esteve menos atento, desde o início desta semana alguns milhares de migrantes e requerentes de asilo, originários de Marrocos e de países da África Subsariana, alcançaram o enclave espanhol de Ceuta, em território marroquino, em números recorde. Beneficiaram para isso do beneplácito das forças de segurança marroquinas, que habitualmente garantem a segurança da fronteira do lado de Marrocos.

Saiba mais aqui

Segundo a maioria das análises, este fechar de olhos marroquino é uma represália por Espanha ter alguns dias antes aceitado acolher para tratamento médico o líder da Frente Polisario Brahim Ghali, de 73 anos, que está infetado com Covid-19. Marrocos está por isso a jogar a mesma cartada que Erdogan tem por diversas vezes utilizado nos últimos anos e que também tem precedentes no caso marroquino: utilizar populações especialmente vulneráveis como peões da política externa.

Claro que este cinismo por parte de Marrocos (ou, em tantas outras ocasiões, por parte da Turquia) só tem condições para funcionar a partir do momento em que existe uma indignidade prévia e maior por parte da União Europeia: a ausência de uma política migratória e de asilo funcional, decente e assente em princípios humanitários e de direito internacional. Duas das características mais funestas da política europeia para o asilo e migrações, na prática, são a ausência de mecanismos seguros de acesso ao território europeu (porque é que tantos migrantes pagam milhares de euros para atravessarem os mares com enorme risco de vida, transformando o Mediterrâneo e a costa atlântica de África num cemitério?) e a externalização do controlo das fronteiras externas para países como Marrocos, a Turquia ou a Líbia, que tantas vezes envolvem violações dos direitos dos migrantes e requerentes de asilo.

Outro aspeto sinistro da prática europeia em matéria de migrações e asilo é o recurso à expulsão coletiva dos migrantes e requerentes de asilo imediatamente após a entrada no território, sem atenção às circunstâncias individuais e sem permitir que um eventual pedido de asilo seja apresentado e devidamente processado. Esta prática, conhecida por “push-back”, é contrária ao direito internacional, incluindo a diversas convenções de direitos humanos ratificadas pelos países europeus, e constitui na prática uma negação do direito de asilo e proteção. Ao que tudo indica, também isto ocorreu nos últimos dias – a maioria dos milhares de pessoas que alcançaram o território de Ceuta foi imediatamente expulsa pelas autoridades espanholas, sem que lhes fosse dada a oportunidade de apresentarem pedidos de asilo.

Por sua vez, o pano de fundo geopolítico é uma indignidade com longas raízes históricas: a ocupação colonial ilegal do território do Sara Ocidental por parte do Reino de Marrocos, que remonta ao final da ocupação espanhola em 1975. À luz do direito internacional e de diversas resoluções das Nações Unidas, o Sara Ocidental é um território não-autónomo, ocupado, cujas legítimas aspirações à auto-determinação estão por realizar. Marrocos espera que a situação de torne de facto irreversível, povoando e controlando militarmente o território e tornando inviáveis as condições de vida para a população sarauí, boa parte da qual se encontra em campos de refugiados em território argelino. E se a situação já era muito difícil e precária para os sarauís, ainda mais se agravou nos últimos meses, com o fim de um cessar-fogo de três décadas, o regresso dos confrontos e o reconhecimento por parte da Administração Trump das pretensões marroquinas em dezembro passado como moeda de troca para que Marrocos feche os olhos à política agressiva e criminosa de Israel nos territórios ocupados – outra indignidade e desumanidade bem presente na ordem do dia.

Poderia continuar a desfiar este novelo de indignidades da realpolitik na qual poucos saem bem na fotografia – apesar de, no caso europeu, não se coibirem de proferir grandes discursos sobre liderança moral. Dispensaríamos essa liderança: seja em relação à política europeia para as migrações e asilo, à criminosa situação na Palestina, às legítimas pretensões sarauís ou à política externa em geral, bastaria o respeito pelos direitos humanos e pelo direito internacional. 

 Cimeira Social da UE e a miopia política

Posted: 19 May 2021 03:51 AM PDT

 


«A Cimeira Social do Porto foi considerada o momento mais importante da Presidência Portuguesa da União Europeia (UE) tendo sido definida a agenda social da Europa para a próxima década.

No entanto, o cumprimento dos objectivos assumidos – que são meritórios - depende mais dos governos nacionais do que da UE. A União está a alimentar expectativas nos cidadãos que não dependem de si satisfazer sendo possível inferir que muito pouco mudará para o cidadão europeu, porque é preciso transformar declarações proclamatórias em acções concretas.

A “Declaração do Porto” é uma declaração de intensões com uma lista de generalidades e um somatório de desejos que todos podem subscrever. Não foi decidida nenhuma medida concreta porque a Comissão Europeia não tem competência para agir nessa área, mas foram definidas metas que os governos dos Estado-membros (EM) têm de atingir até 2030. Porém, o comissário europeu Nicolas Schmit disse, sem rodeios, que “integrar os direitos sociais nos tratados será muito difícil”.

Existem ainda dois aspectos que me levam a não ser muito optimista. Por um lado, a experiência do passado diz que ao serem definidos objectivos muito ambiciosos como os da Estratégia de Lisboa – a Europa iria ser a economia mais competitiva e dinâmica do mundo até 2010 -, acabaram por não se concretizar; e, por outro, existe uma repartição de poder entre as instituições europeias e os EM que detém as competências sociais.

A estagnação e crescente divergência económica e social têm colocado em causa a forma tradicional de legitimação da integração europeia. A “Declaração do Porto” é apenas o último exemplo dum ciclo vicioso, que compensa a sua aparente ineficácia com promessas de um futuro glorioso. E o excesso de promessas contribui para a desacreditação das instituições.


A verdade é que há diferentes noções do que é a Europa Social entre os diferentes EM e essas divergências impedem a União de adoptar iniciativas concretas neste domínio. Para os países mais ricos a Europa Social significa, sobretudo, proteger o seu modelo social da concorrência económica dos outros EM. E há outros países que gostariam que Europa social fosse uma Europa mais solidária entre EM, com a criação de novas prestações sociais financiadas com dinheiro europeu, mas isso é o que os Estados mais ricos não querem. Perante este impasse, a UE faz declarações de direitos e objectivos sociais sem medidas concretas que os garantam.

A crise sanitária colocou os assuntos económicos e sociais de curto prazo à frente dos temas demográficos de longo prazo, que mereciam um grande debate e discussão alargada no âmbito da UE. Com efeito, a Cimeira do Porto surgiu numa altura em que a UE já atravessa um período de profundas mudanças sociais e demográficas. A prioridade daquela cimeira europeia devia ter sido sobre o grave problema da demografia, pois a UE vive um verdadeiro “inverno demográfico” (Gérard Dumont) com consequências sociais e económicas catastróficas. Os efeitos serão severos e duradouros.

Este cenário de proporções inusitadas é alarmante, mas “ninguém na Europa fala abertamente deste problema e menos ainda se prepara para o enfrentar”, de acordo com investigadores da Fundação “Robert Schuman”, havendo um entrave ao crescimento económico e ao bem-estar das futuras gerações. Isto só acontece por existir alguma miopia política na UE perante a enorme crise demográfica.

A demografia é o resultado combinado de três factores: natalidade, esperança de vida e fluxos migratórios. Ora, no longo prazo, são esperadas mudanças demográficas de enorme escala em Portugal e na Europa. Na UE o número de nascimentos não é suficiente para assegurar a renovação das gerações e com a população em declínio, a Europa acabará por perder 50 milhões de habitantes em idade activa até 2050. E no final do presente século, a UE apenas representará 4% da população mundial com um enorme declínio da população activa.

A Comissão Europeia admite a gravidade do problema, mas o assunto continua a não estar no centro da discussão. E, apesar de recomendar alterações no mercado de trabalho e nos sistemas de protecção social, alerta que essas políticas competem a cada EM. Contudo, estes não definem objectivos nem tomam medidas no âmbito de políticas de prevenção e de resposta à baixa natalidade, bem como política de vizinhança em que as migrações assumem um papel decisivo. Ou seja, falta uma estratégia europeia de médio e longo prazo. Podemos, a esse respeito elencar todo um conjunto de medidas e acções em vários domínios que vão das finanças públicas, ao crescimento económico, emprego e mercado laboral, educação, formação ao longo da vida e serviços de saúde.

Acresce que o envelhecimento da população desafia a sustentabilidade financeira dos sistemas de segurança social devido ao aumento das despesas em pensões, serviços de saúde e de cuidados. Uma população mais idosa terá impacto na concepção de políticas públicas, sobretudo da política fiscal, imigração, segurança, planeamento do território, habitação, transportes, ambiente, educação, cultura, relações industriais, família e lazer.

Apesar de não constar da agenda política, a demografia é considerada o maior motor de um país com um forte impacto na economia. Na realidade o envelhecimento fará diminuir para metade o potencial de crescimento económico da Europa até 2040. E a tecnologia não será suficiente para o contrariar.

O problema, porém, está longe de ser apenas económico, havendo o risco de ocorrer uma convulsão social e cultural. A pressão migratória sobre a UE será maior do que nunca, provocada por um aumento da população em África, crescimento de 1,3 mil milhões de habitantes nas próximas três décadas, dos quais 130 milhões no Norte de África. Haverá um choque demográfico: uma implosão dentro da UE e uma explosão fora das suas fronteiras, sendo de lamentar que as instituições europeias não actuem de forma proactiva.

A imigração poderá contribuir para absorver o impacto do declínio demográfico, embora se reconheça que não seja suficiente. A integração dos imigrantes é, precisamente, um dos principais desafios da Europa – veja-se a triste realidade que se instalou em Odemira -, que se tornará cada vez mais premente, tendo em conta a dimensão avassaladora do fluxo migratório previsto para as próximas décadas.

Convém recordar que perante a falta de mão-de-obra, os imigrantes serão cada vez mais necessários e será inevitável virem de regiões do globo onde os valores são muito distintos dos europeus. O problema é que, quando há quebra demográfica e recessão, como tem sido o caso da UE, a imigração não é vista como um activo, mas encarada como uma ameaça, o que tem feito crescer a extrema-direita e os nacionalismos, num cenário assustador, que mistura a crise demográfica com xenofobia.

A evolução demográfica na Europa vai também criar tensões e conflitualidade entre os EM com a perda de milhões de habitantes em idade ativa. Por isso, alguns desses EM terão e procurar a mão-de-obra qualificada que necessita noutros países. As consequências serão dramáticas, porque é sabido que, sendo a emigração um fenómeno seletivo, são sempre os mais qualificados os primeiros a partir, enfraquecendo as regiões de origem do seu recurso mais precioso que se tornará escasso. E isto é um problema Europeu.

A Europa está mergulhada em vários problemas de grande dimensão e complexidade, sendo envelhecimento da sua população, porventura, o mais grave de todos, pelas consequências económicas, sociais e, sobretudo culturais. Para o contrariar a UE terá de encontrar um ponto de equilíbrio que permita garantir controlo, confiança, compromisso e estabilidade, pois o futuro depende do crescimento demográfico sustentado.»

 Ser o oásis turístico da Europa é um perigo

Posted: 18 May 2021 03:40 AM PDT

 


«No dia em que milhares de turistas britânicos aterravam no aeroporto de Faro, o director da Região de Turismo do Algarve deixava no ar uma constatação que tanto serve de regozijo, como assusta. “Toda a Europa está a falar na vantagem de Portugal”, dizia João Fernandes. Depois de longos meses de isolamento que levaram o sector do turismo ao limite e causaram danos irreparáveis na economia, verificar que a Europa olha para o controlo da pandemia como uma “vantagem” para as suas férias é animador. Depois de nove meses de estados de emergência e de situações de calamidade até que o esforço dos cidadãos foi capaz de vergar o número de infecções para uma dimensão invejável à escala europeia, o assalto de estrangeiros a praias, hotéis ou restaurantes é uma preocupação.

É caso para se recordar que não podemos ter o sol na eira e a chuva no nabal, como é caso para dizer que Portugal está a beneficiar do seu sucesso e pode tornar-se vítima dele. Ser o primeiro país da Europa do Sul com a pandemia controlada torna o país um oásis; estar nessa condição torna-o um refúgio.

Não se trata de ser pessimista ou de recusar a oportunidade de recuperar a um sector crucial da economia. Trata-se apenas de perguntar se o desconfinamento não está a ser rápido de mais. Se o Governo não está a confundir a calmaria, que existe, com o fim da tempestade, que não aconteceu; se depois da desobediência patrocinada pelo laxismo dos poderes públicos na festa do Sporting não haverá uma tendência geral para o facilitismo; se a abertura de portas a turistas da forma descontrolada (deixando de fora na Europa apenas dois países importantes, a Holanda e a Suécia) não será um daqueles casos em que a ânsia se sobrepõe à prudência e a necessidade económica à protecção dos cidadãos.

Ter a situação controlada exigiu um preço elevadíssimo. É esse preço que justifica a discussão sobre se abrir as fronteiras sem outras exigências senão um teste a turistas vindos de países ainda em sobressalto, onde as taxas de vacinação continuam baixas e nos quais a disseminação de variantes como a indiana gera ainda aflição foi ou não uma boa escolha. Estamos, obviamente, a insistir numa discussão especulativa por incapacidade de prever o que vai acontecer. Há bons argumentos para defender a escolha feita. O que não podemos negar na realidade actual é que, com esta abertura escancarada de fronteiras, o nível de risco da pandemia no país aumentou. Oxalá em Julho, no auge da temporada turística, haja razões para dizer que a “vantagem” de hoje foi bem aproveitada.»