Translate

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Há uma emergência em Lisboa. Há mesmo?

Posted: 23 May 2021 03:15 AM PDT

 


«Lisboa é a minha segunda cidade - tenho família, amigos, trabalhei alguns anos na capital. Por isso as três situações covid que me reportaram esta semana fazem recordar janeiro: problemas covid numas filmagens; turma enviada para casa com casos covid; problemas na organização de um jogo de futebol distrital este domingo porque foram detetados jogadores com covid. Serve de amostra? Não. Mas ao ler a notícia TSF de que a Administração Regional de Saúde de Lisboa ainda só tomou conhecimento de um caso na qual que é admitido como provável os festejos do Sporting, julgo que fica demonstrado como é impossível o trabalho dos rastreadores em circunstâncias destas. Ao mesmo tempo, torna-se evidente a culpa de se participar num evento assim e admiti-lo a seguir.

Esta loucura podia estar pintada de verde ou azul - ou até de vermelho (veremos o que sucede logo à noite). Haveria, erradamente, sempre alguns milhares na rua. Mas regresso a ela porque ela reflete mais do que futebol: a desigualdade social e regional da pandemia.

Três dados enquadram o que se passou: Lisboa é de longe a cidade com mais teletrabalho (calcula-se que 60% do total do emprego). Isso ajuda muito a evitar a propagação da doença e aumenta a sensação de segurança. Não fosse o absurdo natalício e Lisboa e Vale do Tejo nunca teria ultrapassado o Norte - onde o teletrabalho vale menos do que a ida para as fábricas e construção.

Em segundo lugar, a enorme presença de emprego ligado ao Estado, com rendimento assegurado, ou emprego em grandes empresas, diminui significativamente o stress de quem está a viver a pandemia - e isso permite ir para a rua festejar títulos porque o emprego não está em causa, mesmo que se fique duas semanas de baixa covid.

Por fim, os dois primeiros pontos traduzem-se num rendimento per capita na Área Metropolitana de Lisboa de 30 por cento acima da média europeia. Todas as outras regiões portuguesas estão abaixo, com o Norte em último lugar - 25 por cento abaixo da média europeia. Uma loucura assim é mais fácil quando o rendimento não é um problema na agenda. Ou não - e Portugal é um caso de insanidade de Norte a Sul. Falta provar.

Na ressaca da festa ficam em causa, em Lisboa, os trabalhadores que estão nas obras e fábricas, os que vivem do comércio e dos shoppings, do turismo, etc. Todos a um passo de sofrerem consequências muito graves se o alastramento da doença não for estancado de imediato como uma emergência.

Uma vez mais será despejado dinheiro num incêndio totalmente previsível, negligenciado no topo da pirâmide pela ministra adjunta Mariana Vieira da Silva (que substitui António Costa na covid), pelo inevitável ministro Cabrita e, claro, pelo presidente da Câmara de Lisboa - que não quis enfrentar sozinho a omissão do Governo ao "não" ao Marquês. Quanto ao Sporting, como ouvimos esta semana, fez tudo bem...

Que os infetados covid da festa fiquem em casa a receber 100% do salário, apesar da sua loucura, nada a dizer, é Portugal. Mas os números de contágio são "apenas" estes? O Governo quer mesmo saber o que se passa? Há realmente uma diminuição de testagem, apesar de um evento daquela magnitude? É desesperante darmo-nos ao luxo de falhar no mais fácil. Imaginem o impacto em Lisboa (e na imagem do país) de um recuo do confinamento na capital portuguesa. É de fugir.»

Daniel Deusdado 

Povo pronto para todo o serviço

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 23/05/2021)

Clara Ferreira Alves

Portugal regressou ao seu destino primordial, ser o oásis da Europa quando os outros estão fechados. Ser o país amável e vassalo que recebe os estrangeiros de avental e com um sorriso.


Portugueses com vinte e poucos anos que não saibam explicar a razão do desembarque num aeroporto do Reino Unido e o que tencionam fazer no país, e não saibam responder que tencionam dar uma espreitada nas joias da Coroa e ouvir as badaladas do Big Ben, têm à espera a deportação imediata ou a espera da deportação num centro de alojamento de migrantes ilegais. Será, na melhor hipótese, um daqueles edifícios de tijolo vitoriano, com arame farpado e vidros baços e sujos. Como outros jovens europeus na mesma situação, gregos, espanhóis, italianos, os latinos e sulistas do costume, para não mencionar os de Leste que são logo detetados e manuseados, não terão acesso a um advogado, direitos ou quaisquer serviços jurídicos até o país decidir o voo da devolução, e muito menos poderão pernoitar na casa de um familiar se o tiverem. Falar num familiar é má ideia, aí o interrogatório aperta e o jovem metendo os pés pelas mãos admitirá que teria ou gostaria de ter uma hipotética entrevista de trabalho ou um quimérico trabalho como ama ou criado de mesa. Uma cidadã espanhola com o namorado no Reino Unido passou três dias detida e foi devolvida a Espanha, tão traumatizada com a experiência que não tenciona voltar a Londres nunca mais. Aconteça o que acontecer, convém não mencionar a palavra trabalho, que implica um visto inacessível, e convém não ser jovem. Jovem cheira a migrante ilegal depois do ‘Brexit’.

Saiba mais aqui

À parte a experiência de dar aos europeus uma ideia do que é ser ilegal ou refugiado, ainda que breve, nada se retira deste tratamento a não ser a dissuasão pela violência. Supõe-se que um jovem sueco ou dinamarquês não sofrerá a humilhação reservada para os países que maltratam a população jovem obrigando-a a fugir e emigrar, abandonado um país habitado por velhos cujas reformas outros imigrantes, brasileiros, ucranianos, asiáticos miseráveis legalizados, ajudarão a pagar.

Entretanto, por cá, os jornais e telejornais entraram na alucinação turística. Vêm aí os ingleses, uma invasão com libras frescas para nos salvarem de nós mesmos e da relassa incompetência para nos governarmos. São uma distração das pornográficas audiências do Novo Banco, onde cada interrogatório serve para demonstrar a impunidade de um número fixo de pessoas, as do costume, que obtiveram crédito de milhões com um aperto de mão e um almoço regado a tinto. E ficaram com o dinheiro. Apetece logo apanhar um avião para Inglaterra.

Quanto aos ingleses, jovens, velhos, não importa. Terão à espera no aeroporto de Faro, que serve as praias, não os serviços de imigração, o velho SEF que não se percebeu o que é ou será quando renovado, umas ofertas. Duas máscaras coloridas, um frasco de álcool-gel e um folheto informativo. O pormenor das máscaras coloridas é tocante. Uma pincelada de cor no que um motorista de táxi chamou “uma lufada de ar fresco”, estamos no reino do lugar-comum, filtrado pela máscara durante a viagem. E, de repente, Portugal regressou ao seu destino primordial, ser o oásis da Europa quando os outros estão fechados. Ser o país amável e vassalo que recebe os estrangeiros de avental e com um sorriso. A entidade de turismo ofereceu ainda aos passageiros dois números de telefone para qualquer esclarecimento. Ele há testes, ele há hotéis reabertos antes do tempo, ele há euforia numa região duramente punida pelo vírus e o confinamento e que morre de fome sem os britânicos.

As autoridades esfregam as mãos e, em mais um exemplo de solidariedade europeia, dizem que estamos a apanhar os turistas dos concorrentes que ainda não abriram plenamente. “Estão cá todos”, congratulou-se o diretor da Região de Turismo do Algarve, que aparece nalgumas notícias escritas como director, com a consoante muda, porque neste ponto do inútil e inutilizável Acordo Ortográfico, ninguém sabe bem como se escreve ou pronuncia a língua portuguesa que, ao contrário das línguas anglo-saxónicas, cortou as suas raízes latinas na ortografia e na fonética e aderiu ao patois africano e brasileiro, países onde ninguém sabe bem o que é e para que serve o Acordo Ortográfico. E onde ninguém compra ou lê livros.

Entretanto, nos jornais e telejornais deixámos de ter contabilidade diária da covid a que se seguiu a contabilidade dilatada e diária dos vacinados de primeira dose e de segunda dose. Convém não espantar a caça. Criámos as “condições de segurança para manter os turistas”, diz o preclaro diretor ou director. O passado nunca existiu, as variantes perigosas também não, apesar de a variante indiana preocupar os ingleses mais do que a nós, que importamos os ingleses e os da variante brasileira. A festinha do Sporting e a reação cobarde das autoridades que falharam, com a desculpa de terem perdido o e-mail da polícia a alertar para o risco, demonstra que só confinámos para um fim, voltar a receber turistas e amparar as tribos do futebol. “Criar as condições de segurança para receber os turistas.”

Interessa pouco saber se o grosso de população portuguesa ainda não está vacinada, e não está, interessa ainda menos saber que só uma pequeníssima parte da população tem as duas doses protetoras. O risco é a nossa profissão, a mendicância é o nosso talento.

Se as coisas correrem mal, os portugueses cá estarão para se sacrificarem no inverno, passada a proteção estival conferida pelo calor e o ar livre. Oscilamos entre ficar em casa e servir os estrangeiros, e pelo meio pretendemos ser um país europeu avançado e civilizado com uns milhões oferecidos pela Europa para, mais uma vez, nos levantarmos do chão.

Os que vêm a seguir que paguem a dívida. Ao fechar-lhes a porta, o Reino Unido faz-nos o enorme favor de os impedir na fuga para lugares mais prósperos, obrigando-os a guiar o tuk-tuk e aprender a cantar o fado.

Entretanto, em Londres e noutras cidades do Reino Unido, os portugueses que não querem regressar a Portugal e não têm a vocação serviçal barata e sustentada a gorjetas, esperam que o Governo britânico os aceite no pedido de settlement, assentamento, que lhes garantirá uma vida melhor e longe da pátria. São os que entraram antes de a porta ser fechada na cara dos ingénuos que ainda não perceberam que a porta está fechada e bem fechada. Por cá, se a Europa autorizar, vamos poder arranjar um corredor especial para os britânicos não terem de se maçar na fronteira. Nas fotografias dos jornais ingleses, as praias do Algarve aparecem sempre num esplendor esmeralda e turquesa com areia branca e reluzente, graficamente manipuladas. A realidade é um pouco diferente, como sabemos. Não se vê o lixo, não se veem as garrafas vazias nem os desacatos noturnos do álcool e das festas onde as máscaras coloridas jamais serão usadas. E em Lisboa, os cruzeiros vão desembarcar, com a cauda poluída e o contributo para o mercado de bugigangas, fonte da riqueza nacional juntamente com o ubíquo pastel de nata.

Assistir ao antiquíssimo, pelo menos desde que Lord Byron o descreveu, espetáculo de subserviência, atraso e dependência é deprimente. Mas, nas notícias portuguesas, o que não é deprimente? Portugal nunca foi bem feito para os portugueses. 

 

Nenhum silêncio sobre Rui Moreira

por estatuadesal

(José Soeiro, in Expresso Diário, 21/05/2021)

José Soeiro

Rui Moreira tem vários talentos. Um deles foi conseguir construir para o Porto uma nova imagem, uma nova marca, que tornou a cidade um produto mais apetecível, sobretudo para investimentos privados e turistas. Ao mesmo tempo que acentuou a dinâmica da cidade-negócio, numa linha de continuidade, agora em maior escala, com os mandatos anteriores da Direita, Moreira teve a capacidade de incorporar na atividade da Câmara um conjunto de iniciativas, de projetos e de pessoas que contribuíram para a colorir de cosmopolitismo, de contemporaneidade e de uma aparente diversidade. Por outro lado, a sedução hábil de Moreira daqueles a quem chama “os seus vereadores” (nos quais inclui de forma humilhante, mas aparentemente sem reação dos próprios, os vereadores da oposição), foi-se fazendo quer através do resgate de grandes bandeiras da oposição a Rui Rio (a devolução do Rivoli, ou as ansiadas e importantes requalificações do Bolhão ou do Batalha, por exemplo) quer de pequenos gestos de aliciamento, como o recente programa camarário de comemoração dos 100 anos do PCP.

Saiba mais aqui

Nesse processo, Moreira conseguiu duas proezas. Através de uma espécie de “corporativismo municipal” embrulhado na narrativa do Porto como uma unidade “acima dos Partidos”, levou a cabo um intenso trabalho de neutralização social e de diluição do conflito político, sem nunca deixar de ser, contudo, o intermediário da velha burguesia dos negócios e dos novos especuladores do imobiliário, como voltou a demonstrar esta semana, quando foi a um encontro dos Promotores Imobiliários afirmar, enquanto Presidente: “temos de ser facilitadores de negócios”. No campo social, conseguiu transformar uma parte da intervenção e do discurso críticos da cidade, cooptados pela omnipresente programação da responsabilidade da Câmara, não no contrário do processo de gentrificação, mas no seu duplo.

É possível que estes hábitos de Moreira ajudem a explicar o modo como reagiu à decisão do Tribunal de Instrução, o qual considerou haver provas sólidas para incriminá-lo e levá-lo a julgamento no caso Selminho. E talvez expliquem o teor das entrevistas em que se desdobrou. É certo que quem acompanha o debate público no Porto já deita esta história pelos olhos. Eu também. Contudo, como ficar em silêncio perante os factos conhecidos, mesmo que seja à Justiça que caiba decidir se houve crime ou não?

Há factos que estão fixados e consolidados. Quando Moreira foi eleito, havia um conflito entre uma empresa da sua família e a Câmara. Essa empresa, a Selminho, viu sempre recusada, ao longo de anos, a possibilidade de construir num terreno da escarpa da Arrábida, com cerca de 12 mil metros quadrados. Mas depois de Moreira ter sido eleito, o conflito resolveu-se através de um acordo estabelecido com a CMP, que atribuiu à Selminho o direito a uma indemnização que poderia chegar, segundo o que veio público, aos 12 milhões de euros. Tendo em conta que esse direito à indemnização nunca foi discutido ou aprovado pela CMP, pela Assembleia Municipal ou por qualquer tribunal, e que as possíveis alterações ao PDM que fundamentam a “necessidade” de tal acordo são da exclusiva responsabilidade da Assembleia Municipal, a que propósito, com que legitimidade e em nome de que interesse público pôde a Câmara, através de uma procuração, obrigar-se a tal compromisso à margem dos órgãos municipais? E como foi sequer possível que um acordo deste tipo nunca tenha passado pelo vereador do Urbanismo?

A isto soma-se ainda o que ocorreu depois. Há cerca de cinco anos, ficou provado que afinal o dito terreno não era da Selminho, mas da própria Câmara, porque havia sido ilegitimamente apropriado por usucapião por uma outra empresa, que depois o vendera à Selminho. Como é possível que Rui Moreira, como Presidente da Câmara, não tenha então proposto a anulação imediata do tal acordo com a Selminho? E não é estranho que a própria Selminho não tenha reclamado junto desses supostos proprietários anteriores a devolução do valor pago pelo terreno, dado que se veio a constatar que este não lhes pertencia, tratando-se assim de uma venda de coisa alheia?

Esse método grave de apropriação de bens públicos perante a conivência ou a passividade da Câmara tem outros exemplos, como o dos terrenos junto à Ponte da Arrábida, onde um enorme edifício chegou a ser embargado mas continua a ser construído porque a autarquia se conformou com o facto, invocando o avultado valor das indemnizações que teria de pagar ao privado, caso fizesse prevalecer o interesse público.

Mas o terreno da Selminho envolve diretamente a família do Presidente, e o próprio. E existe uma posição não apenas do Ministério Público mas também da juíza de instrução, para quem existe uma “maior probabilidade” de Moreira ser considerado culpado e perder o mandato. O atual Presidente não devia continuar à frente do Município.

Moreira fica fora de si com quem tem esta opinião política, mas ela não só é legítima como parece mesmo ser a mais sensata. Dizê-lo não é transformar a próxima campanha num debate judicial, o que seria um erro e um desperdício, porque a cidade tem coisas mais importantes para discutir sobre o seu futuro. É, simplesmente, não ficar mudo agora. Os silêncios políticos neste caso não são sinal de elevação ou de maturidade democrática. São, pelo contrário, o reflexo de uma falta de exigência e de um empobrecimento cívico que o Porto não merece.

sábado, 22 de maio de 2021

 

 A reforma das Forças Armadas (FA) e a emersão da múmia Cavaco Silva

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 22/05/2021)

Tenho dúvidas sobre a bondade da reforma que o PS e o PSD acordaram aprovar, dada a tradicional inaptidão do PS para lidar com as FA e a desconfiança que nutro pelo PSD, e, independente da decisão, é de registar o desprezo do PSD pelo seu antigo líder e feliz contemplado com a vivenda Gaivota Azul, na Praia da Coelha.

Cavaco Silva, um salazarista que deve tudo à democracia e tão pouco lhe deu, não é figura simpática. É um ativo tóxico, alguém que se tornou patinho feio, até no PSD, ao serviço do qual se propôs sacrificar a CRP para perpetuar Passos Coelho no poder, ao arrepio da vontade da AR.

Há neste homem azedo, nesta figura que os acasos da sorte içaram aos mais altos cargos do Estado, um ódio visceral a tudo o que se afasta da sua matriz conservadora, e a todos os que se colocam à sua esquerda. Não tem adversários, só vê inimigos. Nunca foi um estadista, foi sempre um chefe de fação, sectário, vingativo e videirinho, no Estado e na vida privada. É o único ex-PR civil que terminou a vida política abandonado, sem cargo internacional, isolado, a escrever Roteiros que ninguém lê e a destilar fel que já nem os apaniguados suportam.

A reforma das Forças Armadas foi o pretexto para uma vingança, contra o PS e o líder do seu partido, não porque discordasse da submissão à Nato, porque quis fingir-se vivo, a combater o PS e a demolir o líder do PSD, onde preferia o venal Passos Coelho, mais próximo da sua estatura ética e intelectual, do que de Rui Rio, sem mácula reputacional.

Querendo atacar António Costa e condicionar Rui Rio, esquecido das últimas vezes em que foi notícia, pela deselegância em não cumprimentar o PR na cerimónia de posse do segundo mandato e na ausência previsível à celebração do 25 de Abril na AR, surgiu no espaço mediático a considerar "chocante" e "um erro grave" o PSD aprovar a reforma das Forças Armadas proposta pelo Governo.

Não contava com o desprezo generalizado do espetro partidário, com exceção do PSD, e este para o zurzir através do seu coordenador para a defesa nacional, Ângelo Correia, um seu antigo ministro com pensamento e negócios próprios.

Ângelo Correia pediu mesmo ao antigo PR e PM, que "não fale" por ser "uma pessoa que desta área não sabe nada”, e aconselhou-o a fazer um pequeno esforço para se ajudar a si próprio, que é estar calado quando não sabe do que está a falar. E insistiu, na TVI, que, “neste caso não tem qualquer sentido tático nem técnico nem político, são palavras de uma pessoa que desta área não sabe nada”.

Haverá quem pense que é um sábio noutras áreas, mas, quando o seu próprio partido o manda calar, é porque pretende pôr uma rolha no frasco de veneno.

Triste fim!

 


Por que razão há tanta indiferença face aos grandes devedores?

por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 22/05/2021)

Pacheco Pereira

Para onde foram as centenas e centenas de milhões de euros, eles que não têm bens e que, os que têm, a banca acha que é melhor “não serem executados”? A essa pergunta sei responder; para o seu bolso e dos seus cúmplices. E, retiradas as despesas de “contexto”, ainda lá estão.


“Onde está o teu tesouro, aí estará o teu coração também. Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há-de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.”
Evangelho de S. Mateus

Em primeiro lugar, porque, não sendo políticos, o populismo toca-lhes muito pouco. Não são jogadores de futebol, nem cantores, nem personagens do jet-set, nem nobreza ou realeza. Dito em bruto, é isso mesmo. E quando lhes toca é por que o rastro das suas actividades empresariais vai ter ao poder político de forma mais ou menos explícita.

Em segundo lugar, porque alguns deles têm outras protecções, a começar pelo mundo dos grandes clubes de futebol, como é o caso do presidente do Benfica que continua lá. Podem referir que deles se dizem cobras e lagartos, mas se formos a ver é a disputa futebolística e clubista que explica essa má-língua, não os casos em si. São os partidários dos candidatos que perderam, são os adeptos do clube A contra o clube B que clamam vigorosamente contra o homem do clube alheio e são muito silenciosos sobre os seus. É o colectivo das claques prolongado pelas redes sociais, e é também porque o mundo do futebol, cheio de ilegalidades, de contratos esquisitos com jogadores, de offshores, de despesas sumptuárias, de corrupção e de violência, não suscita no populismo muita condenação.

Assine já

Em terceiro lugar, porque os partidos, a imprensa, os comentadores com proximidade com o mundo dos negócios “liberais” tendem a desvalorizar aquilo e aqueles sobre os quais fazem um cordão sanitário, dizendo que “eles” não são o retrato do capitalismo português, “eles” são a fruta podre de um cesto limpo e sadio. Tomá-los pelo todo é fazer a propaganda do BE e do PCP contra os empresários “criadores de riqueza”.

Sim, tomá-los pelo todo é injusto com alguns dos grandes e muitos dos pequenos, mas a sua ganância, a sua falta de escrúpulos com os dinheiros alheios, a sua promiscuidade com políticos corruptos, o seu insulto a gozar com os que não foram lá buscar centenas de milhões de euros, mas que os vão pagar, e, nalguns casos, os seus crimes, são a regra. Eu, aliás, ainda estou para ver a Iniciativa Liberal falar destes homens sem ser só sob o chapéu dos malefícios do Estado (que existem) e as confederações empresariais, ou a alta finança, que, pelos vistos, sabiam de tudo, mas não disseram nada.

Em quarto lugar, porque os grandes devedores não caíram do céu ou exclusivamente do regaço de rosas de Ricardo Salgado, conluiado com José Sócrates, mas comprometem gente altamente “reputada” e qualificada do mundo da banca, gestores “de topo” que circulam de administração para administração, que fazem parte do círculo de confiança que manda neste país e que fazem de conta que não tiveram nenhuma responsabilidade com o que se passou.

Em quinto lugar, por que muita da imprensa económica, e não só, reflecte este mesmo tipo de preocupações, chamemos-lhe “de classe” para irritar com um vocabulário marxista, e tem dependências muito pouco transparentes. Seria muito interessante, por exemplo, conhecer como actuam as agências de comunicação, pagas a peso de ouro pelas grandes empresas e empresários individuais, e como é que elas, sem indicação de publicidade paga, controlam quem aparece e quem não aparece nas páginas dos seus jornais e como aparecem.

Em sexto lugar, a economia das indignações é dúplice em vários escalões. Atinge muito mais os que vêm de baixo do que a gente fina, que é de facto “outra coisa”. E aqui entramos por um processo mais vasto do que os protagonistas actuais visto que remete para as enormes diferenciações sociais em Portugal e o modo como elas se incrustam inconscientemente no populismo. Os “que sobem na vida” quando caem fazem-no com muito mais fragor, porque a inveja social é muito horizontal e eles são da mesma extracção e mundo dos escrevinhadores das redes sociais. Os de cima estão sempre mais protegidos. É um remake de uma tese que foi propagandeada por esse pai do populismo nacional que foi o Independente, que execrava os novos-ricos das “meias brancas” e não dizia uma linha sobre os grandes lobistas que estavam sossegadamente nos seus tempos livres na Assembleia da República e que sabiam comer à mesa com os talheres todos. E o Chega é muito selectivo nas suas indignações porque tem lá gente desta, como se sabe.Até breve. Até que os especialistas da “resiliência” ou, se quiserem, de disparar bazucas, não comecem a vir engrossar a lista dos grandes devedores e tudo se repita outra vez

Podia continuar até ao infinito, “enésimo lugar” por cada milhão de euros e não acabava. Claro que estes homens são os que hoje são atirados às feras, que periodicamente precisam de ser alimentadas com os “maus” para não irem comer os “bons”. Desde aparecerem como atrasados mentais, ou esquecidos profissionais, até à arrogância ingénua de Berardo e a arrogância insuportável do homem da Ongoing, confortável no seu exílio brasileiro, depois de ter comprado deputados que “não sabiam o que era a Ongoing” e depois ficaram a saber muito bem, tivemos de tudo. Para onde foram as centenas e centenas de milhões de euros, eles que não têm bens e que, os que têm, a banca acha que é melhor “não serem executados”? A essa pergunta sei responder; para o seu bolso e dos seus cúmplices. E, retiradas as despesas de “contexto”, ainda lá estão.

Até breve. Até que os especialistas da “resiliência” ou, se quiserem, de disparar bazucas, não comecem a vir engrossar a lista dos grandes devedores e tudo se repita.

Historiador